Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Um dia alguém irá estudar o nosso humor de caserna, aqui tão bem tipificado por esta e outras deliciosas historietas do Fernando Barata... Legenda da foto: "Aspecto parcial da Enfermaria, vendo-se um militar (pela nuca parece ser o Alferes Barros) entregue aos cuidados das mãos milagrosas de um fisioterapeuta estagiária, natural de Paiai Numba e que, na altura, estava a recibo verde"...É claro que não havia enfermaria nenhuma em Dulombi, e muito menos fisioterapeutas com mãos de fada, oriundas de Paiai Numba (que ficava a sul de Padada, vd. carta da Padada, e que era zona de guerra).
Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Um pote de fumos
Fotos: Fernando Barata (2007). Direitos reservados.
IV parte do resumo da história da CCAÇ 2700 (Dulombi, Maio de 1970/ Abril de 72), unidade que pertenceu ao BCAÇ 2912, e foi render a CCAÇ 2405 do BCAÇ 2852 (1968/70). O autor do texto é o ex-Alf Mil Fernando Barata, da CCAÇ 2700 (1).
3 - HISTORIETAS
Delírios etílicos
3.1. Numa altura em que o nosso Capitão tinha ido a Bissau e porque o Alferes Correia se encontrava de férias na Metrópole, eu assumi a chefia da Companhia.
Durante a noite aparece-me no abrigo uma alta patente, muito esbaforida, alertando-me para o facto de estar eminente o ataque dos turras ao nosso aquartelamento, pois tinha visto no ar um Boro Naice (*) que seguramente funcionaria como sinal para um ataque concertado.
Rapidamente contacto os sentinelas que, para meu espanto, referem não terem visto nada, o que foi corroborado por outros soldados que se encontravam acordados. Depois mais calmo e perante o bafo do visionário, conclui que o tintol deveria ter LSD. Só me apeteceu dar-lhe uma pantufada.
Uma boleia de jipe até Galomaro
3.2. Volta e meia, aparecia no nosso aquartelamento um fotocine que projectava um filme para distracção das tropas. Terminada a sua função e como não estivesse prevista qualquer coluna que o recambiasse, o indivíduo já começava a desesperar. Até que o Alferes Correia (estava na altura a comandar a Companhia) me propôs que levasse o dito a Galomaro no jeep do Comando.
Perante o fascínio de dar uma volta a sério, lá me meti a caminho acompanhado pelo Meirim com a sua G3 e pelo Mesquinhata com o seu morteiro. Hoje arrepio-me ao pensar no perigo em que me constitui e os constitui (embora fossem voluntariamente) só pelo prazer de ter um volante nas mãos.
O jipe que andava sozinho
3.3. O jeep do Comando tinha a deficiência (uns diriam característica) que se traduzia no facto de quando se virava totalmente o volante para a direita a direcção ficava presa.
Um dia, aproveitando tal característica, pus o dito jeep a descrever círculos no campo de futebol, sem que alguém o conduzisse. Fui chamar o Semba para que este me explicasse este fenómeno paranormal. Após alguns segundos de verificação, saltou para o jeep impulsionado como que por uma mola, endireita o volante e grita:
-Alfero, era demónio não, era volante preso.
Um médico mais doido que o doido do soldado
3.4. Um soldado a partir de determinada altura desequilibrou, tornando-se extremamente agressivo chegando mesmo a apontar a arma a alguns colegas.
Perante este quadro, o médico do Batalhão, Dr. Vítor Veloso (2**) , passa--lhe uma credencial para que se apresente nos Serviços de Psiquiatria do Hospital Militar.
Qual não é o meu espanto quando passados 4/5 dias, o doentinho já se encontrava em Galomaro, vindo de Bissau e pronto a seguir para Dulombi. Assim que me vê, remata:
- Oh meu Alferes, o médico que me atendeu era mais doido que eu.
- Porquê? - retorqui.
- Então não quer lá saber que me perguntou o que me apetecia fazer naquele momento. Disse-lhe que me apetecia deitar a secretária dele pela janela fora e o que me espantou é que ele se levantou para me ajudar o fazê-lo, pegando logo num dos bordos da mesa. Nunca mais lá ponho os pés.
Na realidade foi uma terapia espectacular, o moço nunca mais deu problemas.
Um mecânico (improvisado) de helis
3.5. Como devem estar recordados, éramos frequentemente visitados por helis, quer para nos trazer frescos, quer para transportar algumas individualidades que nos visitavam. Certo dia, um desses helis estava com dificuldade em pegar. Perante este facto e como o Rosa, que era mecânico, estava a presenciar a situação, o nosso Capitão disse-lhe, a brincar, para ir buscar a mala da ferramenta. Aquele tomou a ordem a sério e lá foi buscar a mala, sem que antes não dissesse:
- Meu Capitão, mas olhe que eu de helicópteros não percebo nada.
Claro, quando o Rosa chegou com a mala já o héli ia ao nível de Duas Fontes. Ficou-me na memória o respeito por uma ordem dada.
O ronco do Pelotão de Milícias
3. 6. Naquela fase final em que já não queríamos correr riscos, incumbiu o nosso Capitão o Pelotão de Milícias de fazer um patrulhamento ao Vendu Qualquer-Coisam [ havia várias localidades começadas por Vendu, a sudoeste de Dulombi: por exemplo, Vendu Cachitol, Vendu Coima, Vendu Bambadela...].
Passados alguns minutos de terem saído, ouvimos um tiroteio imenso. Logo aquele espalhafato nos pareceu mise-en-scène.
Quando chegou o Pelotão ao aquartelamento, depois de algum aperto, o Comandante acabou por confessar que não havia turra nenhum e que era só para fazer ronco e para puderem justificar uma quantidade de munições que tinham em falta.
É só fumaça!
3.7 . Certo dia, fumo intenso é detectado a sair do paiol. Perante o eminente rebentamento de todo o arsenal que lá se encontrava armazenado, rapidamente o quartel é abandonado por todos nós para além do arame farpado, não fosse presentear-nos algum estilhaço ou mesmo o sopro que iria gerar.
Como passados bons minutos a deflagração não acontecesse, o Alferes Ravasco, perdoem-me mas não encontro neste momento expressão mais apropriada, teve tomates e a serenidade necessária para enfrentar a situação. Que acontecera? Um pote de fumos ao cair no chão - que se encontrava alagado - entra em reacção química com a água, gerando o espectáculo que acabo de referir.
Chegámos a pensar que seria um acto de sabotagem do inimigo. Pena é que o Almirante Pinheiro de Azevedo, na altura ainda não tivesse pronunciado a célebre frase O povo é sereno, isto é só fumaça. Na realidade vinha mesmo a propósito.
O dialecto de Cabeçudos
3.8. Em determinada altura, um indígena pretendia reclamar ou peticionar algo junto do nosso Comandante. Como aquele tivesse certa dificuldade em se fazer compreender, alguém sugeriu que se fosse chamar o Carneiro Azevedo para servir de intérprete.
Estiveram seguramente cinco minutos numa troca de jametus, tá na mala e sapodidis, arregalando, o Mamadu, cada vez mais, os olhos na tentativa de entender o que o Azevedo lhe dizia. Até que passados os tais cinco minutos, o fula chega à brilhante conclusão que aquele arrevesado do Azevedo não seria dialecto fula, mas sim dialecto de Cabeçudos (terra natal do Azevedo).
O padeiro de Trancoso
3.9. Mal chegados a Dulombi logo se abeirou de mim o Cândido Nunes disponibilizando o seu know-how em matéria de panificação para exercer a função de padeiro da Companhia. Argumentou que em Trancoso era a profissão que exercia. Falei com o nosso Capitão, sendo o Nunes admitido de imediato, mesmo sem prestar provas, na função que ele dizia conhecer tão bem.
Ao longo da comissão desempenhou a sua tarefa cabalmente e com o benefício de ser dispensado da actividade operacional a qual encerrava alguns riscos e grande esforço físico, como todos sabem.
No final da comissão, já em Bissau, diz-me:
- Meu Alferes, de padaria eu só conhecia o local por lá ter entrado nas poucas vezes que a minha mãe me mandava comprar pão.
Sorri e dei-lhe os parabéns pela sua astúcia.
Eu, pecador, me confesso: A tentação das ostras do Pelicano
3.10. E para acabar. Adivinhem qual era o Alferes que já tinha carta de condução civil e foi tirar a militar só para ter motivo para passar pelo menos mais uma semanita em Bissau? É que aquelas ostras no Pelicano mereciam qualquer estratagema.
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Notas de F.B.:
(*) Queria-se referir a um Very-Light
(**) Hoje, Presidente do Conselho de Administração do do IPO/Porto - Instituto Português de Oncologia, Porto.
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Nota de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
22 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1541: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (1): Introdução: a 'nossa Guiné'
26 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1550: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (2): A nossa gente
15 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1595: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (3): minas, tornados, emboscadas, flagelações e acção... psicossocial
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