Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 11 de novembro de 2008
Guiné 63/74 - P3438: Histórias de Vitor Junqueira: (9): O Líbio e o alferes gazeteiro
1. Em 9 de Novembro de 2008, o nosso camarada Vitor Junqueira, Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 - Os Barões - Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72, deixou este comentário no P3411:
Carlos,
Muito obrigado pelo teu esclarecimento.
E, sendo assim, prepara-te que aí vai aço! Quero dizer, ainda hoje vou alinhavar mais uma história - com agá e deixemo-nos de tretas -, que te enviarei para publicação, se achares que tem merecimento para tal.
Sabes Carlos, eu não consigo escrever nada em que não ponha um pouco da pessoa que eu sou. Por vezes, uma ponta de ironia ou o linguajar da minha infância, dão aos meus escritos um certo colorido que, ao relê-los (quando o faço), pergunto a mim próprio: Quem é que pode interessar-se por esta porcaria!? E zás, reciclagem com eles! Têm escapado aqueles que, a seguir ao impulso da escrita, seguem imediatamente para o correio. Nesse caso, não há recuo possível! Quanto aos temas, só tenho uma preocupação, a de que tenham subjacente a verdade.
Amigo Carlos, não respondas a este e-mail porque não é necessário. Estou a ouvir-te neste momento.
Até breve,
VJ
2. Caro Vitor, não te respondi, como querias, mas publicamente te digo que vales tanto pela tua coragem, honestidade intelectual, que a outra não é discutível, e franqueza, que só me ocorre dizer que te admiro por seres quem és e como és.
Não deites para o caixote aquilo que expontaneamente te sai pela ponta da caneta. Promete.
Aos restantes companheiros, não me canso de repetir que qualquer trabalho que venha de quem quer que seja, com a qualidade do Vitor ou parecido com aquilo que eu prórpio escrevo, menos boa, mas genuíno, é sempre bem-vindo e será publicado de certeza. Não se acanhem camaradas perante a qualidade de alguns prosadores e escrevam o que sentem e o que lhes vai na alma. Estamos aqui para receber e publicar as vossas histórias, mesmo sabendo que os seus autores jamais serão candidatos ao prémio Nobel da literatura.
3. No dia 10, recebemos do Vitor Junqueira esta reflexão sobre a época de Natal que se aproxima, seguida de duas curiosas histórias.
O Líbio e o Alferes gazeteiro…
Vitor Junqueira
Estimados amigos e camaradas,
Estamos quase chegados ao mês do Natal, como se diz por aqui e em muitos outros sítios. Por um lado é bom. Significa que estamos cá, com mais ou menos achaques completámos outra longa viagem de 365 dias em volta do sol, à velocidade de 29.784,2 Km/seg. Vamos entrar numa quadra que, além de festiva, todos dizem que é mágica, sem que ninguém saiba explicar exactamente porquê. É como o próprio tempo, sentimo-lo, mas quem é capaz de o definir? E como ele corre! Ainda ontem estávamos em fim de Festas e ei-las de novo à porta. Aí reside o por outro lado da questão; para os homens e mulheres da minha geração, torna-se cada vez mais pesado o sentimento de que no contador da vida, a cada Natal que passa, mais um ano é retirado ao nosso prazo de validade. Damos connosco a afirmar com toda a naturalidade: Para o ano, se eu cá estiver... É duro mas é assim mesmo e não há volta que se lhe possa dar. Quem correu, já não tem muito para caminhar.
O Natal toca-me, mexe comigo, como se diz nesta nova linguagem que todos andamos a aprender. Vêem-me à memória recordações de infância, tantas. Repousando ao ar do borralho, o alguidar das filhozes da minha mãe, confeccionadas com muita abóbora menina e açúcar, a tigela com o pão de ló bem batido, de onde eu fanava bocadinhos de massa na ponta do dedo enquanto ela untava a forma. O pirum bêbado, a desfazer-se na assadeira em leivas de carne, batatinhas novas a boiar na sua gordura olorosa. O presépio, construído com tabuinhas das caixas de sabão offenbach e musgo arrancado aos troncos das oliveiras. Até o Menino Jesus deitado nas palhinhas era bem mais simpático do que um empregado Seu que para aí anda, a quem chamam Pai Natal. Empanturra os putos com consolas e telemóveis que eles já têm, Barbies, skates, BTT’s e mais uma montanha de lixo. Coisas pelas quais perdem todo o interesse, mal acabam de as desempacotar. Pode-se dizer que hoje em dia, o êxtase da criançada dura aqueles poucos instantes que levam a abrir os presentes. É o preço a pagar por vivermos numa sociedade consumista. O meu Menino Jesus porém, era bruxo, adivinhava sempre o que eu queria. Tanto me contentava com uma bola, como recebia com enorme excitação, uma caneta de tinta permanente, uma mala nova para os livros ou umas reluzentes botas de ensebar com orelha e rasto de pneu. E a dose de felicidade era tamanha que durava o ano inteiro.
Foram Natais bem mais felizes, os da minha meninice. Como numa conta de somar, junto-lhes a lembrança daqueles que vivi com os meus filhos quando eram pequenos. Quantas saudades, chega a doer! Hoje, depois de tanto peido de cigano e cornadas da vida, é-me cada vez mais difícil libertar a tal criança que supostamente nos acompanha do nascimento até à cova. O Natal já não tem força para me aquecer a alma, talvez a amorne. Entre a excitação e uma espécie de melancolia pegajosa difícil de sacudir, fico apenas contente, é quanto me basta. Evoco memórias de familiares e amigos que já lá vão, dos camaradas dos tempos de emigrante e da tropa. Em breve chegarão à minha caixa do correio os postais da praxe. Eu não escrevo, prefiro o telefone. Mas não para mandar aquelas mensagens predefinidas, idiotas. Uma praga para uns, uma mina para as operadoras. Na noite de consoada, recebo e faço meia dúzia de telefonemas. Gosto de ouvir a voz dos amigos que o são de verdade, sem motivo nem explicação. Daquele amigo em particular que, em dado momento, nos caiu no goto e, passada uma eternidade, continuamos a achar que só por capricho do destino não é nosso irmão de sangue.
Tenho um amigo assim, o alferes Quintas, gazeteiro encartado, o maior que passou pelo exército português, zeloso quanto ao bom estado de conservação da primeira camisa que a mãe lhe deu, contestatário militante, exímio jogador de King, lerpa, sete e meio e montinho, discípulo de Bacco, amparo de solteiras, viúvas, divorciadas e mal casadas.
Mas, permitam-me que antes vos fale de outro amigo e colega (de escola), Kahled o Líbio.
Estava eu a iniciar o primeiro ano do curso superior de pilotagem da Escola Náutica e tendo as aulas começado havia umas duas semanas, aparece na turma um matulão de vinte e poucos anos a falar com sotaque fortemente abrasileirado. Cabelo curto e ligeira carapinha, tez de um moreno carregado e dentes resplandecentes, parecia o Omar Sharif dos velhos tempos. A sua simplicidade, o olhar franco e leal, conquistaram de imediato o resto da turma. Muçulmano fervoroso, frequentava as aulas com assiduidade e nos intervalos, falava-nos da família, dos lugares por onde passara e dos amigos que lá ficaram. O pai tinha desempenhado as funções de Adido Comercial da Líbia no Brasil, nos últimos nove anos, até à sua recente transferência para Lisboa. Tinha dois irmãos, o Sam um pouco mais novo, que enveredou pelo curso de máquinas marítimas e um outro, ainda chavalo com cerca de doze anos de quem não recordo o nome. Relativamente aos costumes, o Kahled era exemplar. Único vício patente: o do tabaquito. Não dizia palavrões, não bebia álcool nem comia carne de porco. Quanto a sexo, seguia à risca os ditames da sua religião. Porque segundo os mandamentos, sexo era uma coisa muito séria e a pila, não era propriamente uma chouriça que se pendurasse em qualquer fumeiro. Estávamos no mês de Outubro. Pois bem, antes do Natal, já o Kahled tratava pelo nome as putas todas do Bairro Alto, comia lentriscas grelhadas acompanhadas com Reguengos e iniciava as suas incursões predadoras pela margem sul, por tudo quanto era bas-fonds onde cheirasse a bichana. Da nacional, porque na altura ainda não se consumia chicha do leste ou sul americana! Não raras vezes, utilizava nesta incursões a viatura CD, onde se fazia transportar com os comparsas para além das galdérias e muito álcool. O que pode explicar nunca terem ido todos parar à choldra. Ou seja, aquilo que os liberais brasileiros não almejaram em nove anos, o tresmalhe de uma boa ovelha, os portugas conseguiram em poucas semanas. Claro que, com o andar desta carruagem, outra coisa não se poderia esperar que não fosse o completo desinteresse pelo curso. Faltas às aulas, as manhãs na choça a curtir a ressaca das noitadas e as tardes passadas a preparar a caldeira para a soiré, acarretaram chumbo atrás de chumbo. O Kahled nunca mais passou do 1.º ano. Um dia de finais de Julho, tendo eu concluído o curso, dirigi-me à escola a fim de tratar da documentação para o meu primeiro embarque. Encontro o Líbio no bar a despejar umas bejecas para cima de um lastro à base de amendoins bem torradinhos.
- Ora viva, Kahled! Estás bom, meu? O que é que estás aqui a fazer?
- Ói cara, tudo jóia. E você?
- Numa boa. Vim pedir a certidão para a capitania. Mas ainda não me disseste porque é que não estás a gozar umas merecidas férias!?
- Fiz hoje o exame de Márinhária – a disciplina mais acessível do curso –. Assim já vou podê mi mátriculár no segundo ano!
- Oh pá, parabéns. Então e a nota, já saiu?
- Saiu não, mas mi correu muito bem, estou contando com uma boa nota.
Uns dias depois volto à Escola para levantar a certidão. Passo pelo bar e encontro o Khaled nos mesmos preparos.
- Olá, companheiro! Tratando da matrícula
- Não, não. Chumbei.
- Não passaste???
- Nããão, o cara mi fodeu!!!
Nota: O “cara” era o comandante Marques da Silva, o mais estimado e justo professor daquela escola. Foi durante mais de trinta anos capitão da pesca do bacalhau tendo comandado algumas das velhas glórias nacionais nas suas derradeiras deslocações à Terra Nova, enquanto navios pesqueiros à vela.
O José Manuel Coutinho Quintas, era um dos alferes de uma companhia a banhos na zona de Bula. Natural de uma aldeia próxima de Barcelos, já era casado e pai de um filho ou dois quando foi bater com os costados na Guiné. Baixote, vivaço, simpático, era o protótipo do bom malandro. Tinha um defeito, estava sempre no contra, pelo menos no princípio. Esperto que nem um rato de celeiro, não tinha dificuldade em enfileirar argumentos para justificar a sua pouca ou nula adesão à causa. Porque a sua mãe não o tinha criado para ir morrer em África, porque aquele país era deles e nós não passávamos de reles ocupantes, à força etc., etc. Possuía retórica extensa, fecunda, e não via com bons olhos aqueles que não comungavam do seu ponto de vista. As críticas e aleivosias que tive que aturar àquele desgraçado!
Fiel aos seus princípios, decidiu em dada ocasião em que estava escalado para uma segurança nocturna nas imediações do quartel em Bula, que o seu sangue, nessa noite, não seria pasto para mosquitos. E vai daí, deu parte de doente. Ficou no quarto e ordenou ao impedido que fosse à messe de oficiais aviar o tratamento adequado à sua situação clínica: uma bifana no pão, uma sandocha mista de queijo e fiambre e duas cervejolas! O coronel não sei quantos, com todo o respeito, chefe daquela guerra, entra no bar e topa o soldado junto ao Balcão.
- O que é que o nosso pronto está aqui a fazer?
O soldado, coitado, todo tremeliques, não sabendo o que fazer com o taleigo onde levava a medicação, responde:
- Meu comandante, eu estou aqui por mandado do nosso alferes Quintas.
- ????
- Então mas não é o pelotão do alferes Quintas que está escalado para ir emboscar?
- Era, meu comandante. Era, mas o nosso alferes está doente.
Ao coronel não passou despercebida a volumosa receita acabada de aviar. Vira-se para o médico que ao fundo da sala seguia a conversa enquanto se batia estoicamente com um interminável crapaud e dá a seguinte ordem:
-Ó Dr, vá lá ao quarto do nosso alferes, veja o que é que ele tem e apresente-me um relatório.
O médico, por mais camarada que desejasse ser, não pôde senão atestar em letra de relatório a saúde de cavalo de que gozava o alfero.
Processo disciplinar em cima e, catrapus, dez dias trancadito no quarto findos os quais, o Quintas recebe guia de marcha e vai de vela até ao K3.
Travámos conhecimento num fim de tarde em que regressava do mato. Roto de cansaço, negro da fuligem do capim e das tabancas a arder, farto de tiros e tiras, avisto-o junto ao quarto dos alferes, à paisana, envergando calções e uma imaculada T-shirt branca. Com um pé em cima de um mocho acompanhava-se à viola, cantando qualquer coisa que soava assim:
Oh when the sens
Oh when the sens
Oh when the sens, oh ma-tchi-ni
- Quem é o artista? Perguntei ao portalegrense 1.º sargento Leão, Leanito para os amigos, já falecido, que me esclareceu.
Na semana seguinte, fomos ambos fazer uma operação. A coisa esteve preta! À chegada, atira-se para o chão à frente da porta da secretaria e diz:
- Oh Junqueira, tu és louco, pá!
Foram cócegas para o meu ego e, o início de uma amizade tão forte quanto improvável.
O Quintas vive na Suiça onde depois de vinte anos a trabalhar na Swatch, se tornou proprietário e gerente do melhor restaurante da região. Veio visitar-me este verão, como faz sempre que vem a Portugal. É um daqueles manos com quem contacto na noite da consoada.
Quando lá forem, batam ao ferrolho e digam que vão da minha parte. Vão conhecer o significado da palavra hospitalidade em Quintanês.
Aqui vai o endereço:
Zé Manel Quintas,
Restaurant Griland
Route Cantonale, 26
1964 Conthey
Obs: Isto fica em Sion a cerca de 150 Km de Genève.
Já agora, toparam a ligação entre estes dois retalhos de vida?
Cá para mim, acho que ambos si foderam!
Espero que tenham apreciado, até breve
VJ
OBS:-Itálicos e negritos da responsabilidade do editor
____________________
Nota de CV
(1) Vd. postes da série de:
18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753
23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim
27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas
31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto
5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida
31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação
6 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1567: Histórias de Vitor Junqueira (8): Operação Larga Agora, na região do Tancroal, com a CCAÇ 2753
(2) Vd. poste da última participação do Vitor Junqueira no nosso Blogue com data de 5 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3411: O meu baptismo de fogo (22): A minha primeira vez... (Vitor Junqueira)
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3 comentários:
Oh Vitor,nunca mais tenhas esse
pensamento"quem pode interessar-se
por esta porcaria?"Escreve e envia,
pois se pensares estás a privar-nos
de excelentes histórias escritas
com uma linguagem que tão bem
cultivas.
Grande abraço
Paulo Santiago
O que é que se pode dizer depois de ler isto... excelente! Mais um a juntar a outro dos mais bonitos posts que já vi neste Blog “à chacun sa putain”.
Abraço Henrique Matos
E já agora Vitor, não há por aí uma estoriazinha das tuas aventuras marítimas?
Malandrice!
Abraços
Jorge Picado
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