terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5469: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (10): As palmas das vitórias de uma Guerra que não era nossa

1. Mensagem de José Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 14 de Dezembro de 2009:

Olá amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena história da minha vivência no Palácio.
Este pequeno episódio deu-me para conhecer uma faceta mais humana do General Spínola.

Das terras geladas dos States, com votos de boa saúde para todos, e um abraço amigo,
José Câmara


Guerras palacianas: As palmas das vitórias de uma Guerra que não era a nossa

Enquanto Sargento da Guarda ao Palácio do Governador da Guiné, os meus contactos com o General Spínola foram, sempre, esporádicos.

Esses encontros davam-se quando ele se dirigia à Casa da Guarda para ali deixar, para limpeza, o seu cinturão com as cartucheiras e granadas de mão ofensivas M63 e a sua G3.

Outras vezes cruzava-me com ele junto dos portões de estrada quando ele, quase sempre na companhia da esposa, dava um passeio nos arredores do Palácio, ou se dirigia ou vinha do clube dos oficiais da Força Aérea que ficava nas redondezas do Palácio.

Sempre fiz acompanhar o meu cumprimento de continência militar ao velho General com um cumprimento civil sobretudo em atenção à esposa. O General sempre correspondia ao cumprimento com um leve sorriso. Julgo que era apreciativo desta forma de eu o(s) cumprimentar.

Um Domingo, com a noite já avançada, o encontro foi diferente.

Pelo intercomunicador do posto de sentinela que servia o portão de serviço geral recebi a informação que um estafeta dos CTT tinha uma mensagem dirigida ao Governador da Guiné. De imediato dirigi-me àquele posto de sentinela. Cumpridas as formalidades com o estafeta dos CTT, reparei que a mensagem era do tipo relâmpago. Era a primeira que me acontecia. Sabia o que tinha que fazer.

De imediato dirigi-me aos escritórios de apoio ao palácio. Para meu desepero não encontrei ninguém no escritório. Tinha a consciência da importância daquele tipo de mensagem que tinha de ser entregue, nem que tivesse que fazer o nosso General saltar da cama.

Aventurei-me nos corredores sem acender a luz na esperança de ver alguma réstea de luz por debaixo de alguma das portas. A ideia era boa, o resultado foi pobre. Decidi bater a uma das portas. Para surpresa minha a porta entreabriu-se Na minha frente estava o próprio General Spínola. Ao aperceber-se quem eu era de imediato transpôs a porta, fechando-a atrás de si.

Cumprimentei-o e disse-lhe o que me levara ali. Uma mensagem relâmpago dirigida a ele. A nossa conversa foi, essencialmente esta:

- Abra e leia - disse-me ele.

- Meu General eu não posso nem devo ler esta mensagem. É uma mensagem relâmpago - retorqui.

- Pode, pode… abra, abra… leia, leia. Sou eu que lhe estou dizendo que pode. - Disse ele um pouco impaciente.

Abri a mensagem e comecei a ler:

- O Conselho de Ministros em sua reunião de... aprovou o...

Hoje não tenho a certeza se a comunicação se referia à aprovação do Orçamento Geral da Guiné, ou apenas de um suplemento.

O General enquanto pegava na mensagem deu-me um pequeno toque nas costas e disse:

- Hoje é um dia grande para a Guiné!

Levantando a mensagem ao ar, como quem levanta um troféu, reabriu a porta e ouvi-o dizer:

- Está aqui…

Um coro de palmas ecoludiu naquela sala. Foi aí que pude reparar que o General estava rodeado pelos seus colaboradores mais directos na Guiné, deduzi.

Fechei a porta e dirigi-me à Casa da Guarda. Ia pensativo. Por causa daquelas palmas.

Afinal aqueles homens também eram capazes de exultar com as suas vitórias. Eram vitórias de um tipo de Guerra que não era a nossa, mas sem as quais as nossas vitórias seriam muito mais difíceis de obter.

Cruzei-me mais três vezes com o General: no destacamento de Bassarel, no destacamento de São João e no DA, em Brá, no dia da despedida.

José Câmara
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5434: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (16): Guileje não caiu, foi abandonado (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 27 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5356: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (9): Histórias palacianas: tiros indiscretos...

1 comentário:

Juvenal Amado disse...

José da Câmara

Esta tua pequena estória quanto mim muito bem contada, serve também para vermos para além do homem, que só conhecíamos de relance a sua severa postura.
Também ele tinha anseios, fazia planos e festejava quando de alguma forma eles se concretizavam.
Estória sobre um homem que não era insensível como às vezes parecia.
Na altura para mim e possivelmente para os "praças", era uma figura distante, inacessível donde normalmente, só esperávamos chatices.
Um abraço

Juvenal Amado