sábado, 19 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5503: Notas de leitura (44): Memória dos Dias Sem Fim, romance de Luís Rosa - I (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2009: 

 Malta, Temos finalmente escritores com obra firmada centrados na nossa guerra. Luís Rosa tem vastos créditos, acaba de prestar uma grande homenagem revisitando com boa prosa os tempos que todos nós ali vivemos. Envio o resto da recensão no princípio da semana. 

 Um abraço, Mário 


  Em Sangonhá, entre Gadamael e Cacine 

por  Beja Santos


  "MEMÓRIA DOS DIAS SEM FIM" é o romance mais recente de Luís Rosa (autor de "O Claustro do Silêncio", "O Terramoto de Lisboa e a Invenção do Mundo", "O Amor Infinito de Pedro e Inês", "Bocage – A Vida Apaixonada de Um Genial Libertino" e "O Dia de Aljubarrota"), são as suas recordações da Guiné, onde terá combatido entre 1964 e 1966. 

Terá combatido, na justa medida em que a estrutura da obra não leva o autor a apresentar-se autobiograficamente, há distâncias que são propositadamente confundidas entre o relator e o experimentador das memórias. É um livro com uma enorme carga poética e em que se procura responder ao acervo de inquietações de quem combateu e aprendeu a crescer, guardando saudades e regressa ao teatro dos acontecimentos sem rancores nem pedidos de explicação. 

São sucessivos episódios, balizados pela cronologia de quem parte para a sua viagem no cais do Pidjiquiti e regressa à Guiné reencontrando-se em Lisboa com um comandante de uma unidade de guerrilha do Sul da Guiné. É desse cais do Pidjiquiti que ele partirá para Sangonhá, o seu destino era a fronteira sul, além-Cacine, que ele assim define: “Um corredor estreito de cerca de três quilómetros, esganado entre o rio Cacine e a linha imaginária da fronteira. Terra de imprevistos, onde a guerrilha se movia à vontade, e se construía uma linha de quartéis, tentando conter a infiltração”. 

Durante a viagem, dá-se uma versão da revolta que ocorreu em 3 de Agosto de 1959, o que historicamente está provado que não foi assim, já havia movimentos independentistas em gestação, o massacre de 3 de Agosto foi mais um detonador de consciências de que o fermento da luta armada. 

O narrador fascina-se com o relato do comandante Nalu sobre os acontecimentos do Pidjiquiti e rende-se às belezas das florestas, ao rendilhado das águas, ao imputo do tornado e, enfim, a sua embarcação chega a Cacine. 

Sabemos agora que o narrador é alferes, coube-lhe a missão de construir um quartel em Sangonhá, entre Gadamael e Cacine. A partir de agora, os acontecimentos precipitam-se. Entra em cena o Costa, o mais importante comerciante de Cacine, dono do “Paraíso”, o bordel local. 

Mais tarde, por detrás das defesas sólidas do quartel de Sangonhá, onde se misturavam “soldados, população, galinhas, cabras, crianças correndo inconscientes, armas montadas, camiões e tudo mais da ordenada desordem da guerra”, o alferes vai ver um clarão enorme sobre a floresta para os lados de Cacine, ficará a saber que o “Paraíso” estava a arder, bidões de petróleo e aguarrás, panos e óleos ajudaram ao extermínio rápido. 

Luís Rosa vai desfiando tudo aquilo que nós vivemos: os casamentos entre nativos, a exploração colonial; o corpo jazente de um guerrilheiro com a massa encefálica ao lado; as populações obrigadas ao jogo duplo; as morteiradas vindas da República da Guiné; os abastecimentos e a coexistência entre os barcos de guerra e as embarcações de pesca. Mas também a chegada de grandes contingentes, a apresentação dos outros participantes daquele mesmo palco, os de Ganturé, Buba, os fulas de Gabu, veteranos de cavalaria de Aldeia Formosa, uma vasta força que se movia para criar uma linha de quartéis até Cacine. 

O nosso alferes fica em Sangonhá onde, num frenesim se construíram as defesas, espessas paredes de chapas abertas de bidão, profundas fossas circulares, abrigos. São dias e noites em que os blindados Fox andarão de um lado para o outro, seguir-se-ão flagelações, emboscadas, haverá mortos. Um ferido agonizante será despachado com um tiro de misericórdia. 

O alferes de Sangonhá vai ganhando familiaridade com a morte. Ele vai descobrindo que a guerra é loucura, que entre esta e a normalidade há uma fronteira imprecisa, que há prisioneiros indomáveis e outros resignados, há gente que parte para o mato com a resolução de enveredar pela guerrilha, há gente que regressa e tem que jogar o jogo do bom. O alferes assiste aos impulsos sexuais de quem o cerca, descobre que a intolerância não resolve nada, vê Muçulmanos a beber álcool às escondidas, aprende os temores do Irã, força todo-poderosa venerada pelos animistas. 

O alferes assiste ou tem notícia da brutalidade que vai escorrendo por aqueles que descobrem que são carrascos, verdugos a quem nunca se pedirá contas, como o caso daquele alferes que vai punir um denunciante que levou informações para a guerrilha e que depois confessou tudo: o homem depois vai cavando a pequena vala que haverá depois de ser a sua sepultura, o carrasco manda deitar o condenado na cova, soa depois um tiro, o carrasco corta uma orelha à vítima. 

Por vezes, o alferes sai de Sangonhá, descreve as belezas envolventes, mas também as vicissitudes e os trabalhos quotidianos: 

Gadamael servia de ancoradouro e descarga das lanchas de desembarque e batelões vindos de Bissau com o abastecimento. Uma vez por mês surgiam no horizonte do rio. Os homens das lanchas tinham pavor do mato e ficavam sempre temerosos de que uma emboscada surgisse no imprevisto da floresta... Para além do som arrastado do rádio, apenas o avião de ligação, à quarta-feira, sobrevoava o quartel. Olhávamo-lo como ave que vinha da terra de gente onde não havia tiros. Desenhava um círculo e atirava o saco de correio cheio de aerogramas. Depois fazia um abanar de asas e afastava-se, como ave-do-paraíso regressando ao seu mundo sonhado”. 

 No isolamento, contam-se os dias, rasga-se uma pista de aviação a pensar em melhorar o abastecimento e para evacuar os feridos. O alferes interroga-se sobre a ideia de Deus, sobre a presença do padre, o papel das crenças e as manifestações da religiosidade. Por vezes, o alferes é açoitado pelo destino e marcado pelas perdas irreversíveis. É o caso da morte do Braga, homem de sete ofícios. O Braga fez ao alferes uma bela cadeira em pau-rosa, modelo único: 

Sem um prego ou parafuso, apenas o conjunto suportado por espigas, harmoniosamente concebidas, num equilíbrio e estabilidade perfeitos, desencaixando-se num ápice e ficando reduzida a um molho de pequenas travessas, enroladas num pano, que um alfaiate nativo tinha feito, para servir de assento e embrulho”. 

Depois o Braga parte para uma retaliação com uma força comandada pelo capitão Garcia Leandro. 

Antes, recorda o alferes, houvera um pungente episódio de um morticínio de um bando de macacos-cães, atingido em cheio por uma granada de morteiro:

 “Os corpos aos bocados, às dezenas, espalharam-se em volta. Os outros, os que escaparam e os semivivos, lançavam gritos lancinantes, enchendo o espaço, ecoando na floresta, como se fossem gente”. 

Pois bem, os homens de Sangonhá vão até Marela, um santuário do PAIGC, em manobra punitiva. Os guerrilheiros são apanhados de surpresa, Marela torna-se, na confusão e protecção de um dia que amanhece, um campo juncado de cadáveres. A força comandada por Garcia Leandro retira com o Braga, morto em dia aziago. Ao alferes fica a cadeira do Braga: “A obra está sempre completa no ponto em que a deixamos”. 

 Há ainda muito mais coisas a dizer do alferes e o livro é merecedor da nossa atenção (“Memória dos dias sem fim”, por Luís Rosa, Editorial Presença, 2009). É pena os excessos de quem apresenta o livro dizendo que “Rasga novos horizontes, simultaneamente mais vastos e profundos, reveladores da própria dimensão humana. É a realidade da guerra em toda a sua desconformidade e falta de sentido, capaz de denunciar as muitas faces ocultas do homem, desnudando-o e mostrando-o como realmente é – sofredor, idealista, solidário, cruel”. 

Quem isto escreve nunca deve ter folheado o que já se escreveu sobre a guerra colonial, lança-se impunemente num dislate quem nem serve para vender mais livros. Seja como for, Luís Rosa é um muito digno camarada da Guiné, mesmo que, por hipótese, esteja a escrever pelo seu punho o relato de outro.

 __________ 

 Nota de CV: 

3 comentários:

Anónimo disse...

Duas notas:
Ao Beja Santos.Excelente recensão.Parabéns.
Ao Luís Rosa
Que grande prazer encontrar o teu novo livro num blogue como o "nosso".Se bem te conheço vais-te juntar brevemente à nossa Tabanca Grande. Recebi hoje o teu livro, que tiveste a gentileza de me enviar.Vou obviamente recordar os velhos de tempos da Guiné em que trocávamos aerogramas semana sim semana não para recordar Alcobaça e Aljubarrota.
Um grande abraço.
J.Eduardo Oliveira
C.Caç. 675 /Binta/ 1964-66.
PS- Já agora aproveito para recomendar aos "utentes" do nosso blogue os outros livros do Luís Rosa.Quem ler um dos seus livros ficará fascinado com a força da sua narração e com a informação fundamentada até ao pormenor. Depois me dirão.

Antonio Graça de Abreu disse...

Em Cacine, uma terra tão pequena, existiu mesmo um bordel?
E que dizer desta afirmação?...

"Aquele alferes que vai punir um denunciante que levou informações para a guerrilha e que depois confessou tudo: o homem depois vai cavando a pequena vala que haverá depois de ser a sua sepultura, o carrasco manda deitar o condenado na cova, soa depois um tiro, o carrasco corta uma orelha à vítima."

Depois, depois, admirem-se de nós, ex-combatentes na Guiné, sermos ostracizados e tratados abaixo de cão pelos actuais poderes vigentes e por uma parte, creio que minoritária, da sociedade portuguesa.
Eu sei que todas as guerras são sujas, mas isto foi mesmo verdade?


Um abraço,
António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Quanto a bordeis?Para alem do
"B.M.C.",Bordel Móvel de Campanha, do poste(P-3512) e de algumas Reparticoes de Comando,outros por certo haveria. Quanto ás "aparências" perante a sociedade actual portuguesa,sem dúvida que é má publicidade. Mas,infelizmente,as "orelhas nas garrafas de vidro"...existiram. Alguns de nós tiveram a oportunidade de as Ver e é algo que se nao esquece com facilidade. Um abraco.