sábado, 1 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7541: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (7): Dia 25 de Novembro de 2010

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2010:

Malta,
Hoje foi um dia mais apaziguado, depois do reencontro com o Príncipe Samba.
O Xitole dá que pensar, ainda tem condições para ser preservado, é bom não esquecer que já tinha bastante vida antes do desencadear da guerra, daí ter sido um quartel bem embebido dentro da povoação, com bons resultados à vista.
Amanhã e depois, vou dar cumprimento a duas rotas de exaltação: Madina e a Ponta do Inglês. Com agradáveis e gratificantes surpresas pelo caminho: o Enxalé devia aparecer dentro de uma rota de turismo militar; vou ser reconhecido em Madina do Gambiel, na fronteira do Cuor com Mansomine e Joladu. E a viagem à Ponta do Inglês foi toda ela feita com um frémito de emoção.

Um abraço do
Mário


OPERAÇÃO TANGOMAU - ÁLBUM FOTOGRÁFICO (7)

DIA 25 DE NOVEMBRO DE 2010

Por decisão do homem grande Fodé Dahaba (acertada e de acordo com as precisões sentimentais do Tangomau, acrescente-se) o dia será passado para os lados do Corubal, mais propriamente na região do Xitole. É irresistível não ir ao encontro do Príncipe Samba, um dos seus mais dilectos colaboradores. Albino Amadu Baldé de seu nome, deu-lhe uma colaboração infatigável, comandando bem o pelotão de milícias de Missirá. Tudo quanto havia de bom aconteceu: era intérprete, conselheiro, professor, até contabilista. A sorte foi madrasta com o Príncipe: alguém roubou os salários dos milícias, em Finete, teve um processo, ouviu insinuações escabrosas, não conheceu descanso. E depois da independência, não lhe reconheceram os méritos. Como era da praxe, antes de partir, Fodé Dahaba partia mantenha com os visitantes. Hoje apareceu Mamadu Baldé, o filho de Queta Baldé, mas são visíveis Madjo, Djiné e Silá Sani, que vive agora em Maná onde em breve vai receber o Tangomau nesse dia exultante de visitas a Madina Gambiel, Sansão e Canturé.

Depois da viagem ao Xitole, depois da nova visita a Finete e à estrada de Canturé, procede-se à última visita ao que resta da Bambadinca de há quarenta anos. Trata-se de um itinerário mítico, à porta de todos estes estabelecimentos havia muita vida: máquinas de costura em movimento, gente abancada a beber e a conversar, comércio variado, gente a entrar e a sair dos diferentes estancos da Ultramarina, Casa Gouveia, lojas do Tavares e do Rendeiro. Aqui se encontravam velas, botões, carrinhos de linhas, lanternas, preciosas vitualhas, desde bifanas a leite condensado. Este universo extinguiu-se, o que era estrada tornou-se carreiro, ouvem-se as crianças na escola e pouco mais. Por isso se captou a imagem da ruína e da incompreensão porque de espaços sólidos se está a falar, agora são escombros definitivos, dentro de meses ou escassos anos, com chuvadas torrenciais ou tornados alucinantes, estes vestígios caíram por terra.

O Tangomau regressou apressado, quer apanhar o pôr-do-sol no Bairro Joli. Prevêem-se dois dias de excitação, de acordo com o contrato feito com Lânsana Sori: amanhã incursão pelo Enxalé e Madina; depois de amanhã a Ponta do Inglês, Madina de Gambiel, Sansão e Maná, entre outras gratas surpresas. Falando de surpresas, elas são como as cerejas. Apareceu Aliu Baldé, das milícias de Finete, tal e qual como há 40 anos; enquanto descia pelo que foi a tabanca de Bambadinca, o soldado Jabalu Baldé veio cumprimentá-lo. Por exigência de Madiu Colubali, o Tangomau e Calilo foram até Canjara, é ali a sua tabanca. Agora, importa pôr alguma ordem nas emoções, estão praticamente satisfeitos todos os pedidos a partir de Lisboa, só falta visitar Binta Seidi, a mulher de Cherno Suane, no Bairro do São Paulo, em Bissau. Mas o Tangomau sai com nova incumbência, a de contactar em Lisboa a mulher de Madiu, de nome Ale, tem estado hospitalizada em Lisboa, está agora convalescente na Quinta da Mocho. É provável que o leitor fique indiferente a esta bola de fogo pronta a despedaçar-se no interior da mata. Mas para o Tangomau é a quintessência do fim do dia tropical.

Reservou-se para este álbum a fotografia mais imponente do Príncipe Samba, em Sinchã Indjai. O encontro abalou as cordas afectivas da cordialidade do Tangomau. O que dói sempre mais é a impotência perante um talento, um recurso humano brutalmente desaproveitado. O Príncipe mantém a sabedoria, a cordura, a temperança e até a resignação, para lá de todos os revezes. Nada tem e disfarça o limitar da subsistência, essa linha ténue que em África separa a ausência da qualidade de vida da capacidade de resistir até ao dia seguinte. Aqui e acolá ainda há pessoas que oferecem uma galinha ao Tangomau. Este, conhecedor das realidades, sempre que possível pede polidamente para não levar o que faz falta, o bem que entra no tal limiar da subsistência. Momentos houve em que chorou convulsivamente, quando lhe pediram uma pequena ajuda, muito discretamente. Chora-se porque não se pode ser dadivoso a torto e a direito. O Tangomau enfureceu-se consigo próprio, devia ter previsto uma consideração excepcional com este príncipe, que não esperava encontrar na indigência total.

Aguarda-se, na mais viva das expectativas, que os confrades da tertúlia, aqueles que habitaram o Xitole, desvendem a utilidade desta habitação. O Xitole, de tudo quanto o Tangomau viu, só tem equivalente com o Enxalé, que irá visitar exactamente no dia seguinte. Já se viu como está Bambadinca, o que melhor resiste, para além das casernas, são as instalações de índole civil; Fá está a cair aos bocados; a Missirá da guerra praticamente desapareceu; do Xime restam as construções civis, todas as edificações militares foram terraplanadas; Mato de Cão deixou escassos vestígios, etc. Ora o Xitole, por razões que o Tangomau não sabe atinar, mantém a presença do passado, foram derrubados os abrigos e desapareceram as vedações do arame farpado. Mas o essencial do seu casario persiste e, coisa estranha, ainda podia ter utilidade e não este vil abandono como se fosse uma recordação nefanda que todos evitam.

Aqui e acolá aproximavam-se pessoas, identificavam.se sem pejo, casos houve em que perguntavam pelo capitão, alferes ou furriel. De olhos nos olhos, diziam: “Tomei farda em 1965, só a tirei quando acabou a guerra”. Este senhor chama-se Asimo Candé, estava a caravana no Xitole, ele assistiu a tudo à distância, quando a comitiva passou pela tabanca interpelou o Tangomau e apresentou-se. E deu ordens: “Tira fotografia, este é o meu neto”. Onde quer que estejas Asimo, quero que saibas que respeito a tua sinceridade e guardo sigilo quanto aos teus desabafos.

Foi finalmente desfeito um equívoco com mais de quarenta anos. Todos aqueles que patrulharam Mato de Cão a partir de Missirá, regra geral passaram por Canturé, era um cruzamento naquela que fora, até à guerra, a mais luxuriante e aprazível horta do Cuor. Pois bem, não poucas vezes se passava por ali com sede transcendente e uma fome devoradora. Por exemplo, sair de Missirá depois de almoço na expectativa de vigiar embarcações com passagem previsível pelas 16 horas. Podia dar-se o caso do barco encalhar devido às marés, havia que ali permanecer até aos alvores da manhã. Imagine-se a fome e a sede. No regresso, alguém suplicava: “Vamos comer as laranjas azedas de Canturé”. E assim ficaram baptizadas. Mas elas não são laranjas azedas, são toranjas. A verdade veio ao de cima no Bairro Joli, imagine-se. Dada, a anfitriã, mostrou uma toranja, tendo acrescentado que naquela manhã o Tangomau iria beber um sumo misturado com goiaba e cabaceira. Palavra puxa palavra e iluminou-se o espírito: em Canturé há toranjas e não laranjas. Por isso mesmo, e com enorme reverência, se fotografou uma das muitas árvores ali existentes. A despeito do gosto amargo, aligeiraram o sofrimento de muita gente. Quanto se agradece a estas toranjas que foram maltratadas como laranjas azedas…

Em praticamente todas as circunstâncias, o Tangomau fez o jogo limpo, nada de exigências, chegou a dialogar em alta voltagem com o homem grande Fodé Dabaha quanto a itinerários e errâncias espúrias. Insistiu em ir a Demba Taco e até Moricanhe, rendeu-se às evidências, não voltou a insistir. Mas não deixou de ter procedimentos manhosos. Esta foto atesta a sua paixão incondicional por terras de Finete e Canturé. Não resistiu ao contraste dado pelo sombreado da árvore, a luminosidade do verde e o fundo da mata, trata-se de um disparo da bolanha de Finete onde, inacreditavelmente, se perderam imagens soberbas (na percepção estética do Tangomau, claro). Todo o fotógrafo amador tem as suas decepções profundas, range os dentes perante certas perdas. Uma doeu-lhe muito: a perda da foto que apanhava a rampa alcantilada de Finete, o Unimog saía ajoujado e a resfolgar trepava aquela rampa antes de se lançar na bonita avenida de poilões que conduz a Canturé. Pois bem, subsiste dessa visita a panorâmica da bolanha com a floresta ao fundo. Do mal o menos!

As negociações para os dois últimos dias úteis do Tangomau foram muito ásperas. Constatada a impossibilidade de ir de Amedalai a Demba Taco, a impossibilidade de descer com a viatura até Samba Silate, negando-se o Tangomau a viajar até Bafatá ou fazer as tabancas de Cossé e Badora, tudo parecia caminhar para o impasse, era indispensável voltar ao Cuor, o Tangomau recusava aceitar as dificuldades postas pelo mau estado da estrada para Madina e Belel. Providencialmente, Calilo Dahaba sugeriu um contacto com Alassana Bari, um jovem da Guiné Conacri proprietário de uma motocicleta. O homem grande Fodé Dahaba espumava: “Não vais sozinho para Madina e Belel, e se há um desastre, qual é a minha responsabilidade?”. Pois bem, o Tangomau negociou diferentes prestações de serviços frente a um Fodé Dahaba alvoraçado pelo pânico: de manhã, amanhã muito cedo, depois das compras em Bambadinca, vamos até ao Enxalé, o Tangomau quer percorrê-lo a pente fino; depois viajar, inebriado, para as profundezas do Cuor, Cabuca, Madina e Belel; no regresso, se possível, passar novamente por Finete, mas antes parar um pouco nos palmeirais de Chicri. Amanhã será um dia de grandes surpresas. A maior, é o prazer de viajar de motocicleta, conversar em Francês ao ouvido de Lânsana Bari, de quem vai ficar amigo. E sem qualquer receio de se estar a fazer publicidade encapotada ou comunicação comercial agressiva, informa-se a todo e qualquer visitante da Guiné-Bissau que queira chegar aos lugares mais ermos, inacessíveis a qualquer tipo de viatura de 4 rodas, o Lânsana vai lá, entre poças de lama, charcos esverdeados e estradões perigosos, o Lânsana satisfaz a clientela mais exigente. Basta telefonar para 002456353016, falando em crioulo da Guiné ou francês.

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7514: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (6): Dia 24 de Novembro de 2010

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro "viajante da saudade" Mário

A tua foto-reportagem continua interessante, pelas paisagens, pelas pessoas, pela constatação de que, excepção feita às dificuldades dos caminhos, é possível ir 'a todo o lado', mas ao mesmo tempo também nos transmite a angústia de alguma impotência sobre o que se pode (ou não) fazer para minorar ou até emendar as dificuldades humanas.

Continua, amigo.

Abraço
Hélder S.

Unknown disse...

Caro Beja Santos.Estive no Xitole em 70/72. A foto que vem referida como sendo do Xitole, tudo indica que tenha sido a residência de um comerciante libanês de nome Jamil Nasser e que já ficava fora do aquartelamento, mas muito próximo deste.