1. Em mensagem do dia 11 de Outubro de 2011, o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta outra memória da sua guerra.
Caros camaradas
Confesso que não sinto prazer algum em divulgar esta história. Diria mesmo que era preferível esquecer que isto aconteceu. Porém, vejo-me na obrigação de contribuir para o registo das memórias da nossa guerra colonial.
Um abraço do
Silva
Outras memórias da minha guerra (9)
Oficial não Cavalheiro
Como é do conhecimento geral, durante a Guerra do Ultramar, salvo raras excepções (“ricamente” trabalhadas), todos os jovens eram aproveitados para prestação do serviço militar obrigatório. Por isso, não é de admirar que tenham aparecido indivíduos das mais variadas aptidões e estranhas características. Efectivamente, estava ali, exceptuando os “fugidos”, o retrato real da juventude portuguesa. De soldados básicos a oficiais, eram inúmeros os casos estranhos que chegavam ao nosso conhecimento.
Havia quem lhe chamasse Alferes Chanfrado e outros até diziam que era o “Atraso de Vida”. Porém, não fora a seu mau desempenho de militar graduado e os incómodos que causou aos seus camaradas, poderia até, ter uma denominação sinónima de “Chico Esperto”.
Veio de uma das ilhas onde a beleza, a poesia e a pacatez são reinantes. Trouxe o inconfundível sotaque que tanto caracteriza aquele nobre povo. O aspecto de imberbe e frágil e o comportamento nervoso denunciavam evidente imaturidade.
Digamos que era um jovem que, ali, estava deslocado. Não se adaptava ao ambiente militar e, também, parecia nada fazer para isso. Colocado na posição de alferes, sentia imensas dificuldades em impor-se aos seus comandados. Valeram-lhe os Furriéis, especialmente um, militarmente mais preparado, que comandou efectivamente o Pelotão nas Operações.
Amedrontado e (talvez) mal preparado, não ajudava nada, antes pelo contrário. No mato, acusando o medo ia quase sempre em último do seu Pelotão. Por isso, logo num dos primeiros combates, constava ter atingido com um tiro, um militar do seu próprio Pelotão. Constava que para os seus subordinados ele, de arma nas mãos, era um perigo. Tentou sempre “desenfiar-se” (doenças, idas prolongadas a Bissau, etc.). O Capitão, que parecia tolerá-lo, acabou por lhe mostrar algum descontentamento.
O Capitão lidava com o tal Furriel (que era bem aceite pelos militares) para os aspectos operacionais. O Alferes, quando presente, acusando insegurança, chegou a não levar arma para as Operações, e assim se foi passando o período de Intervenção.
Em Cabedu, apesar da realidade existente, já era, pelos militares, quase considerado descanso, antes da partida para o norte (Canquelifá). Aí, e já depois do Capitão ter sido ferido e evacuado da Operação Bola de Fogo (construção de Gandembel), passou-se por alguns apertos devido ao entusiasmo guerreiro do seu substituto temporário, um Alferes do quadro, seguidor da sigla – morte ou glória. Por esse motivo, a situação “inoperacional” do tal Alferes, manteve-se.
Porém, quando a Companhia seguiu para norte, este Alferes ficou com o seu Pelotão, durante dois meses como Comandante de um destacamento. Sem o Capitão, que o controlava, sem guerra e sem os outros colegas para o referenciar, entrou numa de verdadeiro Comandante.
Agora, de botas engraxadas tipo cavaleiro, de varinha na mão e a bater nas botas, corria o Destacamento de um lado para o outro, a meter-se em tudo, da cozinha à enfermaria e, até, com os familiares dos milícias. E para mostrar a sua autoridade, começou a chatear e a abrir processos disciplinares aos militares mais destacados, incluindo o próprio Furriel, conhecido por ter estado sempre ao lado de todos. Este teve um processo, dirigido ao Ministro da tutela, acusando-o de ter ... “alterado o talhe de barba” (usava “ pêra”)”. Uns sete ou oito militares também tiveram processos ridículos que seguiram para a base da Companhia, para o novo Capitão lhes dar seguimento.
Valeu-lhes uma posição colectiva dos graduados, junto do Capitão, lá na sede da Companhia, esclarecendo-o sobre o Alferes e o Furriel visado, visto que, para o novo Capitão, eram, ainda, desconhecidos.
São várias as histórias ali passadas que, ainda hoje, quando recordadas, se reflectem em comentários agressivos e condenatórios do comportamento do dito Alferes.
Para amedrontar os subordinados e, em especial, o Furriel, que sabia ser anti-salazarista, gritava amiúde, ameaçando:
- Vão parar a "Penamacor!” (aludindo ao estabelecimento prisional lá existente).
Avesso ao desporto, não queria que se jogasse futebol. Um dia, verificou que 3 dos 4 militares que estavam a jogar à malha, eram dos tais bons militares de quem ele não gostava (porque não o respeitavam, à sua maneira). Aproveitou estar na hora do almoço, dirigiu-se para a sineta, pendurada no embondeiro e tocou violentamente para que se desse início ao almoço. O jogo, que terminava aos 30 pontos, estava em 28-27 e, claro, fizeram mais uma jogada para acabar. Fez três participações por desobediência e retirou uma - a do... que lhe era mais humilde.
E, percebendo que alguém o pudesse acusar, chegou a proibir o estafeta (que era “Gila”) de levar para a sede da Companhia outro correio, para ser enviado, que não fosse o seu.
O ambiente no destacamento era já insuportável. Esperava-se ansiosamente a substituição do Pelotão e o regresso à sede da Companhia. Os dois meses de Destacamento, que se poderiam considerar um tempo de férias, foram-se transformando numa espécie de “degredo”, comandado por um louco.
Um dia, ouviram-se gritos do Alferes:
- Acudam, acudam, que me querem matar!
E ninguém se aproximava. Voltava ele, a gritar:
-Simões, Furriel Simões, acuda-me que me querem matar!
O Furriel correu para a parada, ao encontro do Alferes que, agarrado ao pulso por um soldado, o acusava:
- Acuda-me que este gajo me quer matar.
- Este gajo não! - respondia o soldado, ao mesmo tempo que o abanava energicamente, através do braço preso.
- Diga Salvador Martins Domingues, pai de duas filhas e mais homem que o senhor. Repita comigo. - Salvador Martins... Repiiiiita, seu cobarde!
O soldado, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces, virou-se para o Simões:
- Meu Furriel, fui ferido em combate, participei em todas as operações que pude, nunca recuei um metro sequer, e agora, a poucos meses de ver as minhas filhinhas, posso ficar desgraçado para toda a vida, por culpa deste garotito, que não vale nada.
E elevando a voz:
- Este cobarde não tem qualquer categoria para ser soldado, repito, ser soldado, do nosso Pelotão!
O Simões acalmou-o e indicou-lhe o caminho para a caserna.
Quando se virou, para trás, já o Alferes se tinha afastado. Porém, o Simões apressou-se, foi apanhá-lo e avisou-o:
- Nem pense em fazer mais qualquer participação. - Acabou!!! - Repito: - A... ca... bou!!! - Salvei-o desta vez, mas não o salvarei na próxima!
Pouco tempo depois, já na Companhia e em tempos de paz, antes de uma saída, para patrulhamento de rotina, o Furriel Sousa informou o colega Simões de que o Alferes mandara dizer que a partir de agora, não deveria ir no Pelotão e ficar no Quartel.
- O quê? – diz o Simões revoltado. Depois de nunca ter faltado a uma única Operação, salvo o tempo de um mês de férias e de ter estado sempre na frente, durante os combates, vem este anormal, querer mostrar-se em tempo de paz? A quem? Ao novo Capitão?
- Penso que te quer premiar. – Diz o Sousa.
- Não, não abandonarei nunca os meus verdadeiros camaradas de guerra! Sabes que saímos juntos, que sofremos juntos e que terei muito orgulho em regressar com eles.
O Simões, acabou de tomar o pequeno almoço. Depois dirigiu-se para a parada, onde o Pelotão já estava alinhado para sair.
Quando se aproximava, vê o Cabo “Rio Tinto” dar dois passos em frente e:
-Meu Alferes, dá licença?
-Sim.
- Ouvimos dizer que o nosso Furriel Simões já não nos vai acompanhar até ao fim. Quero dizer-lhe, em nome de todos os meus camaradas do Pelotão, que preferimos o Furriel Simões ao nosso Alferes. Ele é que nos acompanhou e orientou sempre na guerra e o Alferes não nos faz falta alguma, nem nunca fez.
- Não?! Anda aí confusão e não é verdade?! – Respondeu o Alferes, cabisbaixo e meio comprometido.
Silva da Cart 1689
(Nota: Este Alferes fez toda a viagem de regresso, sem vir ao convés do navio. É que estava convencido que havia militares com coragem para o lançarem ao mar. E eu também.)
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 1 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8844: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (24): Os Bravos do 13.º Pelotão sob o Comando do Furriel Montana
Vd. último poste da série de 23 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8466: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (8): O grande choque
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Amigo josé Silva é tempo de baixar as armas, eu fui melitar em 72-74 e oficiais sargentos cavalheiros era coisa rara, em vias de extinção, que me perdoêm quem quiser mas é mesmo verdade tive um comandante de companhia super humano e mais não digo porque hoje somos todos amigos, era o fruto do sistema do Salazarismo do cabo de um martelo fazia um sargento, do cabo de uma marreta fazia um oficial e ainda por cima com maior nota do que um da academia, um abraço a todos josé eduardo alves
Amigo Ferreira da Silva:
Situações como a que relatas existiam de facto, mas mais não eram que excepções.
E mesmo estes casos de excepção temos de os situar num contexto de guerra, talvez na vida civil o seu comportamento e relacionamento com os outros fosse diferente.
Um abraço.
Manuel Reis
"The wrong man in the wrong place"... [O homem errado no sítio errado]... Quem não conheceu, na tropa (instrução) e até na frente de batalha, casos desses ? E alguns com consequências trágicas, fatais... Falo também, como tu, do que vi, observei, registei, passei... De Tavira a Bambadinca...
Temos sido, no entanto, discretos e cautelosos no relato dessas situações, porque uma das nossas máximas é justamente... "não somos juízes em causa própria"...
De facto, temos evitado denunciar situações em que camaradas nossos não estiveram (ou não estavam notoriamente) à altura das suas responsabilidades no teatro de guerra, por erro de "casting", seleção, treino, perfil de liderança, formação ética, etc. Desse ponto de vista, falta-nos uma avaliação independente, exterior...
Escolher os oficiais e sargentos milicianos apenas com base num critério social (as "habilitações literárias", por exemplo), continua a ser discutível, ainda hoje, aos olhos dos teóricos da formação militar... Claro que havia as "provas de seleção", teóricas e práticas, mas provavelmente no Estado Novo e durante a guerra colonial, "devoradora de mão de obra", não havia muitas mais alternativas ao que se praticava nos nossos COM e CSM...
Concordo com o Manuel Reis: entre os milicianos (oficiais e sargentos), havia de tudo, bons e maus líderes, bons e maus comandantes operacionais...
Mas devemos tomar estes casos como "outliers", do ponto de vista estatístico... Felizmente, que foi uma "guerra de baixa intensidade", como é fino agora dizer-se... e que eu não sei o que é exatamente. Mas adiante: também não sei (nem pretendo saber) qual é a fórmula mágica para se fazer "um bom soldado", "um bom comandante", "um bom líder"... Se é que essa fórmula existe: no que diz respeito aos "paisanos", há uma muita teoria, e poucos algoritmos... Falo da liderança nos negócios, na política, na gestão da coisa pública, etc.
Mas o nosso blogue não é uma academia militar, nem sequer uma tribuna, muito menos um tribunal... Felizmente!... É apenas um espaço, onde à volta de um simbólico poilão, contamos e ouvimos histórias e memórias...
Mais uma vez, gostei da tua história, "boa", da guerra, com um único senão: a referência à insularidade... O teu "alfero" tanto podia ser um transmontano como um alentejano, um tripeiro ou um alfacinha... O "terroir" só é importante nos vinhos... Cuidado com os preconceitos da gente do norte em relação aos do sul... da Europa!
Isto apenas tem a ver com carácter e personalidade.
Encontrei na vida militar algumas "aventesmas" destas,felizmente poucas,sem distinção de classe, miliciano ou de carreira.
É o que se chama abuso dos "pequenos poderes",que sempre existiu e existirá seja na vida civil ou militar.
Um dia na parada, em formatura para distribuição de passaportes de fim de semana, fiquei só com "olhar de parvo" em frente ao capitão..então nosso cadete o que faz aqui?
Desfeitas as dúvidas,fui com ele ao seu gabinete.
Oh nosso 1.º o passaporte do nosso cadete?
Rasguei-o porque não cortou os zeros.
Vi o capitão fuzilar com o olhar o dito cujo..e de imediato me deu um para eu preencher, no qual cortei os zeros, e que foi assinado por ele.
Após ter saído ainda ouvi os impropérios do capitão para com o "manga de alpaca".
Já "aspiranteco" e colocado noutra unidade militar, estava de "oficial de dia".
Batem à porta do gabinete...mando entrar..quem era..o "manga de alpaca", que tinha sido colocado nessa unidade e vinha apresentar-se.
Sentidos.. continências..está apresentado..pode sair.
Durante o resto de minha permanência naquela unidade, aquela "alminha" fazia questão de, sempre que me via, seguir rigorosamente as normas militares..intrigados os outros sargentos perguntavam-me o porquê daquele comportamento..e eu..não faço a mínima ideia.
Quando fui mobilizado..tive o grato prazer de praticamente todos os elementos da unidade, desde o comandante aos soldados se despedirem de mim..até o "manga de alpaca".Tive então a oportunidade de lhe dizer que jamais me passou pela cabeça mover-lhe qualquer perseguição.
Soube posteriormente que continuou a ser um f.p. para com os subordinados.
C.Martins
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