1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Outubro de 2012:
Queridos amigos,
Para os investigadores, estas Crónicas dos (Des)feitos da Guiné serão um manual de consulta obrigatória, não havia nada de tão detalhado, trata-se do testemunho de um participante direto, o diplomata que ia alertando as autoridades de Lisboa, estiveram sempre a assobiar para o lado até à eclosão do conflito. Estão aqui as peças principais que levam a perceber como o PAIGC tinha entrado numa deriva, Nino Vieira perdera autoridade e se tornara, aos olhos da população, como o responsável pela imensa corrupção e inércia a que chegara o país, e, simultaneamente, assiste-se à ascensão de um poder militar que posteriormente passou a ser dominado pela etnia Balanta.
Um abraço do
Mário
Crónica dos (Des)feitos da Guiné (2)
Beja Santos
O levantamento militar desencadeado em 7 de Junho de 1998, vai deixar Bissau sitiada e transformada numa interminável carreira de tiro. Um pouco ao jeito da “guerra do Solnado”, havia pausas negociadas pelas partes beligerantes no sentido de haver mobilidade com um mínimo de segurança. A embaixada de Portugal, a partir de 8 de Junho, está a abarrotar com refugiados, há pessoas a pedir o impossível, felizmente um cargueiro pôs-se à disposição para evacuar os cidadãos portugueses. No seu relato dos acontecimentos, o livro “Crónicas dos (Des)feitos da Guiné”, Edições Almedina, 2012, Francisco Henriques da Silva confessa-se: “Foi o pior dia de toda a minha vida”.
Nos dois dias anteriores à evacuação, que decorreu em 11 de Junho, procura-se acertar com o comandante Hélder Almeida, do cargueiro “Ponta de Sagres” o mais relevante para que a evacuação se pudesse efetuar com o mínimo de segurança e organização. Henriques da Silva conta ao detalhe como se preparou a evacuação e como, na prática, tudo acabou por ser extremamente difícil de gerir, temia-se perdas de vidas humanas, caso se bombardeasse o porto de Bissau. Escrevo num estado de ansiedade indescritível: “Bastava a explosão de um só míssil ou morteiro no cais de Bissau, abarrotado de pessoas, para termos uma tragédia de dimensões incomensuráveis, leia-se, pelo menos 50 mortos e mais de 120 feridos”. O primeiro-ministro telefona-lhe a assumir a responsabilidade pelo que viera suceder e pede-lhe para se manter em contacto permanente com o seu gabinete. Os refugiados e ele atravessam uma cidade em pé de guerra: tropa senegalesa recém-desembarcada a instalar ninhos de metralhadoras, a bandeira portuguesa tremula à frente do desfile, segue-se o embarque com a turbamulta frenética para ter lugar no cargueiro. Um tipo sem vergonha tenta embarcar vestido de mulher e com lenço na cabeça. Ele escreve: “Nestas situações, a natureza humana revela-se em todas as suas dimensões. Por vezes, no meu íntimo, interrogava-se quanto ao pânico de certas pessoas, porque eu não o sentia da mesma forma, nem tão pouco o compreendia”.
Vai suceder-se um período de intoxicação da informação, os próprios jornais portugueses caíam facilmente nas manobras de contrainformação. As missões diplomáticas da China, França, Comissão Europeia, Rússia e EUA foram fortemente atingidas por mísseis, morteiros e fogo de artilharia, nos dias 13 e 14. A França dava a rebelião como perdida, fazia a leitura de que a intervenção estrangeira faria recuar as tropas fiéis de Ansumane Mané, e as evacuações continuaram, incluindo os diplomatas da Rússia, Egito Líbia e Palestina. Numa breve trégua entre combates, um carro foi recolher o embaixador russo e três membros do seu pessoal, a situação na embaixada tornara-se crítica: sem eletricidade, sem alimentação decente, sem água, viviam todos refugiados na cave.
Há episódios indiscritíveis das evacuações que envolveram transportes portugueses, franceses e senegaleses. Calcula-se que cerca de 200 mil habitantes de Bissau terão abandonado a capital, foi um êxodo por etapas, as povoações na periferia de Bissau rebentavam pelas costuras. Henriques da Silva pega num trecho do romance “Jardim Botânico”, de Luís Naves (de que já aqui s fez recensão), lapidar dessas fugas numa atmosfera de tragédia: “Na cidade, nas primeiras horas, instalou-se uma espécie de estupefação geral marcada por um silêncio trágico. Então, como se obedecessem a uma ordem automática, as pessoas começaram a avançar na direção da estrada e formaram-se espessas colunas de civis em fuga. Tudo o que tinha rodas avançou rumo ao interior (jipes, camiões, toca-tocas, bicicletas e carrinhos de bebé). Mas o grosso da coluna marchava. Havia mulheres de trouxa à cabeça e crianças agarradas às saias; um formigueiro em marcha, com fanatismo de insecto: os do meio sem saberem porque seguem aquele caminho, os da frente nunca se sentindo os da frente; pois que cada um vai atrás do outro, esse outro de ainda outro, e assim sucessivamente, numa correnteza. Viam-se pernas finas e pés descalços, braços empunhando objetos inúteis, um rádio, a ruína de um motor, ripas de madeira, colchões, pedaços soltos, a cadeira viajando no topo do monte de roupa, como se fosse um trono”.
Com o decorrer da guerra, tornou-se claro que o presidente da República dispunha de um frágil apoio, a maioria do país apoiava os rebeldes. Nino Vieira e os seus apoiantes dispunham do controlo do centro de Bissau, de parte do Leste e o arquipélago dos Bijagós, o resto do país tinha caído sobre o controlo da junta militar. A 22 de Julho, na chamada “batalha de Mansoa”, as forças senegalesas inimistas sofreram uma pesada derrota, a partir daí o caminho para Leste estava aberto. O avanço só foi contido pela assinatura de um Memorando de Entendimento entre o Executivo de Nino e a Junta Militar, a bordo da fragata “Corte Real”. No princípio de Agosto o chefe do Estado-Maior da Armada e uma dezena de soldados senegaleses que tentavam desembarcar no Xime foram mortos. Em Outubro, Bafatá caía sem combate e a seguir o Gabu. A situação estava realmente caótica para Nino Vieira e nisto o ministro dos Negócios Estrangeiros português chega a Bissau e propõe um novo encontro entre Nino e Ansumane Mané que virá a ter lugar no final do mês em Banjul, na Gâmbia, a que se seguiu, pouco depois, o Acordo de Abuja.
Todo este vasto e complexo processo negocial é detalhado por Henriques da Silva, descreve igualmente as violações do cessar-fogo e comenta criticamente as fragilidades do Acordo de Abuja. A embaixada é atingida por um míssil em 21 de Julho, dia que o presidente Jorge Sampaio lhe escreve manifestando a expressão do maior apreço pela coragem e serenidade do embaixador e do pessoal da missão. Então, a imprensa portuguesa desdobra-se em elogios, tratam-no por um homem abnegado, o resistente, o embaixador que resolveu ficar.
"Crónica dos (Des)feitos da Guiné" é um documento indispensável para os estudiosos e sobretudo os historiadores. Fica-se com uma visão sobre a ajuda humanitária, o processamento das evacuações, o quotidiano de Bissau durante a guerra civil, a paz intermitente em que se viveu depois do Acordo de Abuja, a pesporrência da diplomacia francesa, os problemas colocados ao novo governo dirigido por Francisco Fadul.
E temos a derradeira etapa, a contraofensiva de 31 de Janeiro a 3 de Fevereiro de 1998, a artilharia pesada fazia-se ouvir em toda a cidade de Bissau. Em 9 de Fevereiro chegou a força da ECOMOG prevista no Acordo de Abuja, as tentativas de desmilitarização falharam e no início de Maio a Junta Militar procedeu ao assalto final ao Bissauzinho que levou à rendição incondicional de Nino Vieira que se refugiou na embaixada de Portugal. Estes meses de guerra deram azo a que Henriques da Silva se espraiasse a contar historietas e instantâneos da guerra.
Enfim, temos aqui um depoimento avassalador sobre um conflito dramático que, por um lado, revelou a tenacidade e o heroísmo dos habitantes da Guiné-Bissau que repeliram as forças estrangeiras e que, por outro lado, deixou fracturas que chegam à sociedade atual.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 19 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10694: Notas de leitura (430): "Crónica dos (Des)Feitos da Guiné", por Francisco Henriques da Silva (1) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Vivi esse tempo, lá na Guiné, como jornalista.
Deixo aqui os meus cumprimentos ao Embaixador.
armando pires
1. São portugueses como o embaixador Francisco Henriques da Silva, nosso camarada, e o comandante Hélder Costa Almeida, que nos reconciliam com Portugal e reforçam o nosso orgulho de ser português, apesar de tudo e contra (quase) tudo...~
2. Acrescente-se o seguinte apontamento do nosso camarada José Martins (... mesmo sabendo que uma Torre e Espada vale o que vale):
(...) "Apesar de não ter sido atribuída no período a que anteriormente aludimos, é de realçar a atribuição da Ordem da Torre e Espada a um civil, HELDER COSTA ALMEIDA, que comandava o navio 'Ponta de Sagres' da Marinha Mercante Portuguesa, por ter retirado do cais do porto de Bissau, na Guiné-Bissau, cerca de duas mil e quinhentas pessoas, no inicio de Junho de 1998, enquanto se davam combates na cidade, entre as tropas do Presidente João Bernardo 'Nino' Vieira e Ansumane Mané que comandava os militares revoltosos." (...)
Swegunda feira, 8/11/2008 >
Guiné 63/74 - P3432: Efemérides (13): A Ordem Militar da Torre e Espada faz 200 anos (José Martins)
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2008/11/guin-6374-p3432-efemrides-13-ordem.html
Recorte de imprensa, DN, 6/5/2012
http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=2486388&seccao=CPLP
GUINÉ-BISSAU
Comandante recorda como retirou 2000 refugiados num cargueiro para 20 pessoas
por Filipa Parreira, Lusa06 maio 2012
Após o golpe de Estado de 1998 na Guiné-Bissau, mais de 2.000 pessoas saíram de Bissau num cargueiro com capacidade para 20 e estiveram 24 horas "como numa lata de conserva", algumas comer nem beber, até ao Senegal.
Hoje, o comandante do navio recorda as horas de tensão que viveu enquanto esperava um cessar-fogo temporário que lhe permitisse atracar em Bissau, quando constatou que em vez de mil havia mais de 2.000 pessoas à espera de embarcar e quando ameaçou recorrer à mangueira de alta pressão para impor a ordem na entrada dos passageiros.
"É claro que tive medo. Na véspera não sabia como ia correr, não sabia se seria respeitado o cessar-fogo", contou Hélder Costa Almeida, numa altura em que um novo golpe de Estado ameaça a estabilidade na Guiné-Bissau.
Em entrevista à Lusa no seu último dia no ativo, o comandante recordou que o navio que comandava, o Ponta de Sagres, estava em Cabo Verde, última escala da sua rota habitual para Bissau, quando se deu o golpe de Estado, a 7 de junho de 1998.
A proprietária do Ponta de Sagres "ofereceu o navio, que era português", para uma eventual evacuação e o governo aceitou, uma vez que, por causa do 10 de junho, "estava tudo concentrado em Lisboa" e os navios da armada demorariam dias a lá chegar.
O Ponta de Sagres chegou às 9:00 de dia 11 a Bissau, mas, devido ao contínuo tiroteio, só pôde atracar cercas das 15:00, depois de Lisboa convencer as partes em confronto a fazerem umas horas de trégua para permitir o embarque. (...)
Obrigado pelas palavras simpáticas que me dirigiram. Limitei-me, em 97-99, a cumprir a minha missão, como na década de 60 e 70, todos nós cumprimos a nossa. É claro que, desta feita, era uma missão diferente, mas nada fácil e com permanentes riscos de vida. É o que descrevo com algum pormenor nas "Crónicas dos (des)Feitos da Guiné" (passe a auto-publicidade).
Francisco Henriques da Silva
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