terça-feira, 11 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11691: Blogpoesia (345): War is over, baby [ A guerra acabou, querida] (Luís Graça)

War is over, baby
[ A guerra acabou, querida]

por Luís Graça


A guerra acabou…
E depois ?
Depois,  os avós contarão aos netos,
tintim por tintim,
como foi a última batalha de bagdade
que não chegou a haver
mas que rimava com liberdade,
e com bombas de mil sois
(Ou foi hiroshima, meu amor ?)

Ou talvez não contem a história assim,
talvez prefiram antes arrumar as botas,
e até calar-se para sempre
e poupar os netos,
que esses, afinal, são muito mais espertos,
e têm jogos de guerra bem mais divertidos
no último modelo da sua playstation.
E sobretudo já não têm mais pachorra
para aturar os cotas,
infoexcluídos,
e com a rede neuronal avariada
(Como é  triste ser velho,
infoexcluído
e com sinais de alzheimer!)

De qualquer modo,
disse o repórter português,
o carlos fino,
foi a primeira das batalhas da história
transmitida em direto.
(O fino, o carlos, estava lá,
foi politicamente correto,
e isso é um motivo de orgulho nacional,
disse alguém,
assessor de belém).

Uma batalha anunciada,
uma cruzada de cruzados,
logo com princípio,  meio e fim,
como no jogo do xadrez,
com cheque-mate  ao rei e às suas odaliscas.
Uma história das arábias
onde sobraram as espadas de deus
e dos homens faltaram as palavras sábias.
(Ó carlos fino,
tal como em quinhentos, 
somos tão poucos,
para cobrir a imensão do globo
e calcorrear todas as picadas e os sete mares!).

Mas tu, baby, lembras-te,
tínhamos comprado pipocas,
no cinema do nosso bairro
de classe média arruinada.
Sentámo-nos no chão
entre camelos e beduínos
à espera da queda do saddam.
(Ou de satã?,
já não me lembro;
lembro-me, isso sim,  como se fosse hoje,
que já estavas meio pedrada,
do pó marado do casal ventoso;
e  campo de ourique ali tão perto!).

Éramos colecionadores de quedas e de quebras,
do PIB,
do moral da nação,
da moral de todos nós,
da bolsa da valores,
dos valores da bolsa,
de meteoritos,
de aeronaves,
de cabeças coroadas;
e a última queda, essa, fora a do muro de berlim
em mil nove oitenta e nove.
Regámos com vodka e coca-cola
o anúncio do recomeço do reich dos mil anos.
(Ou era licor beirão ?!,
ai, a minha cabeça!)

Depois os soldados regressarão
a casa.
E casarão.
E terão filhos que vão à escola,
pública, privada ou social,
conforme os escalões do irs.
Ou talvez não.
Os soldados proletários,
mercenários, 
voluntários,
patriotas,
partirão para outra guerra.
Que a guerra  sempre foi uma profissão.
(Disseste procissão ?
Ah, sim, a da vida e da morte!).

Os bisnetos dos escravos
das plantações de algodão do sul,
os afros,
os chinas,
os hispânicos,
os filhos dos imigras
de várias raças, credos e nações,
do grande melting pot americano,
os ex-colarinhos azuis
das linhas de montagem do taylorismo-fordismo,
no museu industrial de michigan.
Na fotografia amalareda tinham um ar de idiotas,
usavam grandes jeans
e chapéus à texano.
(Mas podia ter sido na região de tombali,
meu amor,
muito mais perto de ti,
em linha reta,
no carreiro do povo,
no corredor da morte!).

Enfim, só sei que eles guardarão a espingarda,
a baioneta,
o capacete,
o cantil
e a marmita,
no bengaleiro
ou, talvez melhor,
no sótão,
no baú, herança dos tretavós,
arrebanhados do cacheu ao cunene.
E o canhão sem recuo, esse, guardá-lo-ão
no jardim, em miami.
E o clarim,  em nova orleães.
E, na casa branca, o cartão do tio sam que dizia:
I wanto you for u.s. army!

Em abono da verdade,
não escondo
que alguns morrerão.
Talvez de solidão.
Ou de tédio.
Ou de falta de fé em deus.
Ou na humanidade.
Ou em deus e na humanidade ao mesmo tempo.
No criador e na sua criatura.
Ou de stresse pós-traumático de guerra,
como dizem hoje os psis
que vivem dos despojos de todas as guerras.
(Apanhado do clima, dirias tu,
meu tuga,
meu nharro,
que no tempo da guerra colonial da guiné
estava por inventar a palavra stresse.)

Morrerão simplesmente de solidão
como as carcassas dos tanques
nos jardins suspensos da babilónia.
(Ou na estrada de madina do boé;
não importa, ou que importa ?!,
sentados ou de pé!,
nas berliets, gê-ème-cês, unimogues,
à sombra dos bissilões).

Afinal, que importam os detalhes
se um dia todos temos de morrer,
presas e predadores,
caçadores e leões,
escravos e senhores,
soldados e generais,
de uma merda qualquer,
de peste, sida,  ébola,
gripe das aves,

radiações ionisantes,
insolação, raiva, insónia,
desidratação,
febre hemorrágica,
bê-esse-é,
tiro da bófia,
pneumonia atípica,
cancro,  
gás mostarda,
sari,
trombose,
avêcê,
tsunami,
ou aperto da aorta.

O repórter de serviço diz,
na têvê do berlusconi,
que esta foi a última campanha de caça
ao leão da mesopotâmia.
Ou da abissínia,  tanto faz,
que o berlusconi tem gê-pê-esse
e borrifa-se  na geografia,
agora com as autoestradas da globalização,
dando largas ao delírio
e à livre circulação do capital.
(Estranho: eu imaginava-o extinto,
ao leão da abissínia,
na época dos últimos glaciares.)


Ah! se eu não fosse um sem-abrigo,
Ah! se eu não fosse um desertor da guerra colonial,
Ah! se eu fosse poeta proactivo,
um repórter reformado da guerra fria,
com pensão,  cama e roupa lavada,
um gajo decente
com sensibilidade social
e uns restos de testosterona
na ponta mais ocidental da G3…
Ah!, se eu fosse tudo isso,
eu escreveria um grafito
no meu epitáfio,
nas paredes do meu bunker:
- Deus é grande,
e maomé o seu profeta!
Estive em badgade,
mas não vi nada, meu irmão.
Não rezei na tua mesquita azul.
Não rezei por ti nem por mim nem por nós.
Apenas tive pena do teu povo,
curdos,  xiitas,  sunitas,  árabes
e todos os outros filhos bastardos de abraão
e  das tábuas e tabus de  moisés.
Fulas, mandingas, tugas, felupes, balantas, nalus,
filhos pródigos da humanidade achada e perdida.

Mais te direi por e-mail
que morri com um estilhaço de granada.
A meu lado, um capitão dos marines
afogou-se num poço de petróleo,
coberto com a bandeira dos states,
como na batalha de iwo jima.
Verde e vermelha,
como a imaginava o poeta,  jorge de sena,
a cor da liberdade,
em 1961.
(Angola… é nossa!,
que importa a cor da liberdade,
quando a joia da coroa está em perigo?!).
Era um caixa de óculos como o o’neil,
poeta, obscuro,
que nem para contínuo serviu
do ministério dos negócios estrangeiros.

Mas hão-de morrer mais.
Conta, baby,  conta até mil
e lê o jornal.
É a astróloga do ano que tudo viu
na sua bola de cristal.
Italianos dos carabineiros,
espanhóis da secreta,
espiões do efbiai,
judeus errantes da diáspora,
goeses de damão e diu,
mexicanos do pancho villa,
lusitanos da diáspora,
talvez do luxemburgo,
onde nem sequer há poilões
nem acácias
nem jagudis.
Hão de morrer, todos,  de puro terror,
estampado nos olhos.
Tudo por causa de um homem-bomba
que foi visto visto a sobrevoar
a estátua da liberdade agrilhoada.

Mas agora és tu, private jessica lynch,
baby-doll em camuflado
a nova namoradinha
dos tele-espectadores globais.
Ou por breves instantes foste
a heroína,
a heroinazinha.
Que a fama e a glória são
deusas vãs, avaras e cruéis.
Quiçá na próxima guerra te verei
ao serviço da bandeira da cnn,
ou doutro xogum qualquer dos mass media,
embeded com os bravos da mítica 7ª cavalaria,
mobilizada pelo ral 7,
ali à calçada da ajuda.
No país do show business,
das fábricas de sonhos e de fadas de carne e osso,
e em que o sucesso é um pudim instâneo
e a medida de todas as coisas,
está tudo a condizer.
Tu estás a condizer, minha joia,
o carlos fino está a condizer,
mais o pobre ministro da propaganda,
de seu nome mohamed saeed al-sahaf
que que queria resistir ao apocalipse now
com um microfone na mão.
A gnr dos portugas em nassíria está a condizer

com a batalha de nassíria.
Tu e eu estamos a condizer
no tempo em que éramos todos telegénicos,
e até o bush, my friend george, caraças!,
por deus e pelo diabo protegido e ladeado,
segurava um perú de plástico
no dia de ação de graças.
(Poupem o perú, seus cabrões,
mas deem-me cabo do império do mal!)

Tu, my darling, minha querida,
ouvi dizer que eras filha
de um condutor de camião,
daqueles que atravessam a américa,
de lés a lés.
Uma heroína do povo sem pedigree,
escriturária,
amanuense,
anjo da guarda,
carinha larocas,  teenager,
de uma qualquer terra saloia da américa profunda,
da américa larga, comprida e funda.
Ferida em combate por engano,
sorry que numa lady americana,
não se bate,
diz o puro sangue árabe, 
com sotaque português.
Baleada mas logo resgatada,
que um camarada morto ou ferido
nunca se deixa para trás,
muito menos acima do paralelo 38
das linhas do fogo inimigo.
Muito menos,  já se vê,
num hospital de retaguarda do eixo do mal,
diz o pentágono.

Li nos jornais velhos  que acumulo no wc
que já te ofereceram um milhão
(de dólares, entenda-se).
Queriam fazer um filme
com a história da tua curta vida,
de heroína por equívoco.
Tu que só tens 19 anos.
Não mais.
E já tanto (ou, afinal, tão pouco) para contar
aos netos que hão de vir.
Perdi-te o rasto, meu amor,
minha bajuda,
my baby,
nas voltas que o mundo dá.
A guerra acabou, dizem,

war is over.
O problema agora é de polícia
e do homem-bomba
ou da mulher do tchador
Adeus, querida,
adeus às armas,
adeus, iraque,
adeus, guiné…

E depois ?
Bem, depois é amanhã,
não há azar,
que não é sexta nem treze.
E amanhã há mais,
cantemos o hino.
A vida pode parar,
a vida pode esperar,
a vida pode até perder-se.
O espetáculo é que não, my god!
O espetáculo, esse, continua,
tem de continuar...
Só vou ter saudades é do carlos fino!


11/1/2004. Revisto em 10/6/2013

_____________

Nota do editor:

Último poste da série > Guiné 63/74 - P11690: Blogpoesia (344): A minha Pátria (J.L. Mendes Gomes)

7 comentários:

Anónimo disse...

Olá Camarada
Hoje decididamente não estás bem...
Amanhã estarás melhor.
Vais ver que é assim.
É sempre assim.
Um Ab.
António J. P. Costs

Luís Graça disse...

É verdade, António, o 10 de junho faz-me azia...

Henrique Cerqueira disse...

Na verdade
Ainda hoje não me passou a azia e o Luís não compensou (compensâ ?) Eu sei lá como se chama...eles foram medalhas a rôdos ,foram cruzes e cruzetas com fitas e alfinetes...Foi lindo de se ver eles todos a se auto-medalhar.Não meus amigos ,não é muito diferente dos outros tempos. Pelo menos dantes iam as viúvas e filhinhos.
Eu pela primeira vês fui assistir em Matosinhos ao lançamento da primeira pedra ao monumento dos combatentes locais. Foi "giro" até um tanto ó quanto deprimente (mas isso se calhar era porque não me sentia lá muito integrado no grupo)que desde já se diga que muito se têm esforçado pelo reconhecimento de antigos combatentes. Até foi dado um nome novo a uma rua de Matosinhos « Rua dos Combatentes do Ultramar 1961-1974 »
Os nossos camaradas estavam lá e eu também.O presidente que não foi á tropa estava lá e até contou uma estória de guerra em que não esteve lá...é simpático o presidente se morasse em Matosinhos votava nele...desculpem lá o mau feitio o Luís apegou-me mais azia á já existente.Só espero que o presidente não se fique pela pedra.
Um abraço e por favor nada de más interpretações a este comentário.É que só me irrita mesmo o caminho que foi dado ao DEZ DE JUNHO.

Anónimo disse...

Gostei e aqui o amigo Luis Graça. até diz a cousas bem ditas. Mas só não achei graça quando fala ali de mim, quando diz:
"Como é triste ser velho
infoexcluído
e com sinais de alzheimer"
Parabéns, está óptimo. Um abraço do
Veríssimo Ferreira

Anónimo disse...

A Guerra acabou Luís?


Quando o Livro, como me perguntas.


Belo Poema!

ABRAÇÃO.

J.Cabral

Luís Graça disse...

Jorge:

Tu tens uma dívida para comigo... que é o teu livro de estórias cabralianas... para o qual já "rabisquei" um prefácio...

Eu,por minha vez, tenho uma dívida para com o meu filho, que quer um livro de poemas meus, autografado, no dia em que fizer 30 anos (21 de janeiro de 2014)...

Como vês, estou entalado... Ando a mexer e a remexer no "material do baú" e às vezes lá descubro uma coisa mais apropriada para o blogue...

PS - Ah!, quero essa estória da Titina Silá aqui contada, tim tim por tim tim... Como a guerra acabou (, só dentro de nós é que não...), já não corres o risco de ir parar a tribunal militar...

Carlos Alberto Alves Soares disse...

Amigo Luis Graça,eu sou Carlos Alberto Alves Soares ex Furriel Miliciano da Compª de Caçadores 1585,gostaria de saber o seu contacto telefónico para o contactar e falar da situação que a minha Companhia viveu na Guiné de Agosto de 1966 a Maio de 1968 e levar o livro verdadeiro que contém toda a vida da 1585,pois fui eu próprio que a escrevi e a cópia da que foi enviada ao Ministério do Exército,sou eu que a tenho.
No passado dia 27 de Maio de 2017 efectuámos mais um almoço convivio em Caldas Rainha correu tudo bem.Duas semanas antes escrevi á Srª D.Claudina Cravidão a convidá-la para assistir ao convivio já que no próximo dia 4 de junho faz 50 anos que o esposo faleceu a Srª escreveu-me dizendo da sua impossibilidade. A Companhia tem um site no GOOGLE com alguma atividade ( muito pouca .) O meu contacto telefónico é 918 245 449 e o email é : carlitosarelho@gmail.com. Os meus cumprimentos fico aguardar o v/contacto.