quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12628: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (9): Mafra e Porto, como em casa (Fernando Gouveia)

Convento de Mafra 
Foto tirada da NET, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarada Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec Inf, CMD AGR 2957, Bafatá, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2014:

Carlos:
Não contava escrever sob este tema “A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG", porém depois de tu contares a tua viagem de comboio para as Caldas não posso deixar de contar a minha para Mafra.

Para melhor se compreender o meu estado de espírito quando, pela primeira vez dei de caras com aquele mostrengo do Convento, vou começar um pouco antes e contar um episódio passado comigo que, a meu ver, predestinou toda a sorte que tive em relação à tropa e à guerra.

Estava eu no RI6 no Porto a dar a minha terceira ou quarta recruta quando fui escalado para “levar”, num comboio especial, uns duzentos soldados a Sta. Margarida, com destino à então guerra colonial. O comboio saiu de Campanhã cerca da meia noite e iria chegar, ao destino, de madrugada.
Em determinada altura, ainda noite escura, já perto de Sta. Margarida o comboio parou e assim esteve largos minutos.

Como “chefe daquela guerra” achei que algo se estaria a passar, relacionado com o transporte dos mancebos. No intuito de saber, junto do maquinista, o porquê de o comboio não andar, desci à linha.
Vindo de dentro da carruagem iluminada, com a escuridão da noite não via nada lá fora. Com os meus vinte e poucos anos, ginasticado como andava, não estive com meias medidas. Mesmo sem ver, saltei do estribo para o que eu julgava ser a berma da linha.

Acontece que o comboio estava parado em cima de uma ponte, daquelas que não têm passadiço, mas só uns ferros de onde em onde. Quando senti que por baixo era o ”vazio”, numa atitude instintiva estiquei-me e acabei por ficar preso com uma mão num ferro e um pé noutro. Uns cinquenta metros lá em baixo ainda pude ver a Lua reflectida nas águas do rio.

Com os músculos doridos, icei-me para o estribo da porta, entrei na carruagem e fui sentar-me no meu lugar, sem ninguém se ter apercebido do que me tinha acontecido. Imagine-se o que seria aquela “tropa” chegar ao destino sem Comandante, guias de marcha, etc.
Enquanto não encontrassem o corpo, não tenho dúvidas que levantariam um auto do caso de um Aspirante que teria desertado.

Ponte, das que não têm passadiço. (esta, no vale do Douro)

Depois disso, e não sendo minimamente supersticioso, entendi que na guerra que se avizinhava tudo me iria correr bem, o que efectivamente aconteceu.

Para chegar ao impacto que Mafra teve para mim, onde estive seis meses a fazer a recruta e a especialidade, tenho que começar um pouco atrás.

Fui à inspecção em Bragança. Estava atento aos editais das incorporações, mas como entretanto tive que vir com a minha família para o Porto, deixei lá uma pessoa encarregada de ir vendo esses editais. Azar. O meu nome não foi visto, nem por mim nem pela tal pessoa.

Descansado da vida, continuei os meus estudos no Porto.
Passado cerca de um ano recebo uma contrafé da polícia.
Às nove da noite e pensando que se trataria possivelmente de uma multa de trânsito fui à Esquadra. Lá chegado entreguei o papel ao graduado de serviço. Ele olha para o papel, olha para mim e como que explode: O senhor está lixado, foi dado como refractário e tem que se apresentar imediatamente em Mafra, onde já se devia ter apresentado há cerca de um ano.

As guerras estavam a decorrer. Muita coisa passou pela minha cabeça. Refractário igual a desertor, despromoção dum possível curso de oficiais, presídio militar e tudo o que se possa imaginar.
Com esse estado de espírito, no dia seguinte às sete da manhã estava a caminho de Mafra, de mala aviada. O percurso foi em parte o que o Carlos Vinhal descreveu para as Caldas, só que o meu era mais longo.
Do Porto até Alfarelos, para apanhar a linha do Oeste e no meu caso com destino à Malveira, onde soube que teria de apanhar um táxi para me levar finalmente a Mafra.

Cheguei a Mafra cerca das cinco da tarde e, deprimido como ia, pensei que naquele dia, já não me iam receber, atender, ou o que fosse. De mala na mão entrei por onde me indicaram ser a porta de armas, pensando que não ia sair dali tão cedo, e dirigi-me à secretaria.
Entrei para um gabinete onde estava um Capitão com idade de general. Este pegou no papel que me tinham dado na polícia e vendo o ar de aterrorizado com que eu estava disse-me:
- Tenha calma que nada lhe vai acontecer pois é só fazer um requerimento a pedir o levantamento da nota de refractário.

Depois de lhe entregar o requerimento ele só disse:
- Agora vai-se embora e espera que o chamem novamente.

Nesse dia e a essas horas já não consegui sair de Mafra. Hotéis e pensões não havia.
Consegui que uma velhinha me alugasse um quarto e, no dia seguinte, estava a caminho do Porto para prosseguir os meus estudos.

Vieram a chamar-me para a tropa passado mais um ano e entretanto fiz mais um ano do meu curso. Durante o tempo que estive em Mafra ainda fui ao Porto fazer algumas cadeiras e no regresso, agora de noite, para não faltar à instrução, ao chegar à Malveira, por volta das cinco da manhã tinha que ir acordar o taxista, a sua casa, para me levar a Mafra.

Em relação à povoação de Mafra pouco direi pois como todos os fins de semana ia ao Porto pouco deambulei por lá. Tinham-me dito que a Biblioteca do Convento era um bom local para se estudar, mas nunca cheguei a saber onde era, como também nunca soube onde eram os chuveiros de água quente. Até no segundo dia de estadia tive que pedir que me ajudassem a encontrar a caserna, tal era a monstruosidade do edifício, aliada à simetria provocada pelo claustro central e aos muitos pisos.

Parte da Biblioteca. (foto tirada da NET, com a devida vénia)

Em conclusão, Mafra para mim nem foi boa nem má, talvez indiferente.
O Porto, o outro local onde estive, no RI6, antes de ir para a Guiné, foi como estar em casa. 

Abraços.
Fernando Gouveia
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12623: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (8): Beja, Mafra, Évora e Cachil (José Colaço)

6 comentários:

Paulo Raposo disse...

Olah rapaz. Ex Alf. da CCac 2405 em Galomaro e Dulombi. Conheci bem do Agrup de Bafata O Tem. Cor Felgas e Major Pedrosa. Não me lembro de ti, mas devemos ser da mesma incorporação de Mafra. Um ab Amigo
Herdade da Ameira.
Montemor o Novo
Paulo L Raposo

Luís Graça disse...

Este podia ter sido o duplo segredo... do Fernando Gouveia: (i) desertor e, para mais desaparecido nas águas do rio; (ii) refratário e quiçá soldado raso...

Mas Deus, ao menino e ao borracho põe a mão por baixo... Fernando, foste um menino sortudo: alf mil com a especialidade de info e oper, o que para um refractário não era nada mau... Sempre tivestes mais sorte do que eu: jornalisat, mandaram-se para armas pesadas de infantaria, ou seja, atirador, na Guiné...

Salva-te o teu sentido de humor... e o teu talento para a escrita.
A tua históris merece antologia.

Um alfabravo.Luis

PS - Provelmente nunca tinhas contado este duplo segredo a ninguém... Ainda bem que o blogue também serve para a gente "desabafar"

Luís Graça disse...

Paulo Raposo: E as tuas peripécias por Mafra e pelo seu convento ? Ficamos à espera... Um quebra-costelas. LG

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caro camarada Fernando Gouveia

Interessante... Muito nervo em várias estórias num só post. Parabéns.

Quanto ao "calhau", assim lhe chamávamos quando ao longe o avistávamos, depois das longas caminhadas, não era de facto um local muito agradável para viver; Rapei muito frio nas carreiras de tiro, ao fim da tarde e pela noite adentro, com um vento cortante, que enregelava e secava a pele, fora o resto...

Também tenho um episódio de aventura que mete comboios, Malveira e taxista, mas nada que se assemelhe a este teu caso a caminho de St. Margarida; Aquilo foi mais do que aventura!...
Dizes não seres supresticioso; Penso que também o não sou, mas, também não acredito no acaso. Se tivesse sido comigo, também ficaria dorido e sem pinta de sangue, mas teria agradecido à minha mãezinha, por nas suas orações sempre implorar e confiar, à Mãe Excelsa, a minha protecção.
É assim que considero a sorte que me acompanhou na Guiné: Protecção Divina.

Um Abraço
JLFernandes

Fernando Gouveia disse...

Paulo raposo:
É natural que nos tenhamos cruzado, por Bafata e até por Galomaro, pois dormi lá no dia 13JUN69 (dia do segundo ataque a Bambadinca. Aquele ataque, que cheguei a ouvir não ter existido mas sim só uma reacção de um sentinela periquito sobre um elefante que se aproximou do arame farpado) !
Nesse dia treze dormi num celeiro da mancarra onde dormiam também desde o capitão Gerónimo, da tua Comp. 2405, até ao último soldado. Ia a caminho de Madina Xaquili, onde estive quinze dias. Sorte a minha que o IN fez o 1º ataque só passado um mês de eu ter de lá saído.
Fui para Mafra em Abril de 68 e saí de lá em Agosto. Quanto ao Cor. Felgas estive com ele todo o tempo em que ele lá esteve. O Maj. Pedrosa cheguei a estar com ele, há dois anos, num almoço do Agrupamento, em Lisboa.
Conta mais coisas.
Um abraço.
Fernando Gouveia

Fernando Gouveia disse...

Paulo Raposo:

Tenho que corrigir o que te disse:
Fui para Mafra em Abril de 1967 e não de 1968.

Um abraço.
Fernando gouveia