sexta-feira, 1 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16256: Nota de leitura (853): Notícias da safra de 18 de Junho na Feira da Ladra (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Junho de 2016:

Queridos amigos,

Se é certo e seguro que gosto de desencantar imagens de combatentes, na procura de que fiquem registadas no mais impressionante álbum fotográfico da guerra da Guiné, que é o nosso blogue, não escondo o desconforto destas fotografias e por vezes correspondência comprada pelos feirantes às famílias dos militares desaparecidos ou rejeitados por uma separação, por exemplo.

Sei que o assunto não tem solução, o Arquivo Histórico Militar tem feito apelos à recolha deste preciosíssimo acervo mas a insensibilidade pesa muito mais.

Naquele sábado gostei muito de me reencontrar com o envelope esverdeado da Agência Militar, foi ali que acabei os meus estudos, guardo as melhores recordações da camaradagem e ainda hoje sinto arrepios quando me lembro que saía da porta principal do Banco de Portugal a segurar um malão de couro com três milhões de contos, uma pistola à cintura, o 1.º Cabo Silva com outra mala e sempre a perguntar-me o que é que devíamos fazer se houvesse assalto à mão armada...

Um abraço do
Mário


Notícias da safra de 18 de Junho na Feira da Ladra

Beja Santos


Ainda não desisti de escrever longamente sobre a minha experiência como oficial na Agência Militar. Todos os dias úteis, tinha como uma das minhas obrigações era entrar num jipe aberto, com uma cobertura de lona, acompanhado por um 1.º Cabo que pegava pelo fuste uma G3, ele que nunca tinha dado um tiro depois da instrução, trazia uma mala de couro e ia até ao Banco de Portugal buscar de mil a três milhões de contos. A Agência era o Banco do Exército, pagava religiosamente as pensões aos familiares dos combatentes que vinham à rua D. Estefânia (é hoje uma igreja com um nome estranhíssimo) desciam uma escada de madeira sobre uma rampa e traziam um subscrito igual a este que encontrei na Feira da Ladra, era sempre esta cor, a importância variava, como é óbvio, de acordo com a patente do militar. Podíamos deixar dois terços na metrópole. Vezes sem conta imaginei-me apanhado num golpe de mão com largos milhões de contos, na rua do Comércio. Estes passeios diários eram também educativos: aprendi a comprar moedas comemorativas e a visitar cambistas; e apercebi-me de que havia um desenlace trágico no nosso sistema financeiro quando a partir do último trimestre de 1973 vi uma autêntica multidão a comprar e vender ações a preços irrealistas junto do Banco Totta & Açores, a polícia bem pretendia afugentar as pessoas, sem resultado. Estavam a vender as ações das empresas que apareceram falidas a seguir ao 25 de Abril.




Dois dos meus “fornecedores” combateram na Guiné. Do Eduardo Martinho, que esteve em Bissorã, e é amigo do nosso confrade Armando Pires, já aqui falei várias vezes. Tudo quanto é revista, mapa, publicação avulsa onde apareça a palavra Guiné, é religiosamente guardado para me surpreender, em situação alguma esqueço esta elevada prova de consideração. E quando não trago na bolsa algo sobre a Guiné é muito capaz de virem estudos sobre Fernando Pessoa ou aparentados.

O outro fornecedor combateu em Encheia, prefere o anonimato, está à espera que a ex-mulher lhe devolva o seu património de combatente, quer pôr tudo por miúdos, aceitou o convite que lhe fiz para falarmos da sua comissão. Compra espólios, o mesmo é dizer que traz tudo aquilo que as famílias não querem, incluindo álbuns de fotografias, peças de vestuário, penicos, tenho visto de tudo. Mostrou-me estas duas fotografias, indignado, para ele estas imagens não são comercializáveis.

José Martins Pereira aparece em pose em Bissau, a data é de 15 de Janeiro de 1965. Escreve no verso: “Zé, Como vês, continuo a estar magro mas da maneira que estou a comer espero engordar dentro em pouco. O edifício que vês ao fundo é o mais importante do quartel-general. É o Estado-Maior, sala de operações. Não tem elevador. A pistola está aqui porque tinha chegado de uma reportagem perto de Bissau e fora de Bissau anda tudo armado”. Assina com garatujado.

Temos agora a última fotografia, alguém que se assina “Belo”. No verso escreve-se Bigene e diz-se que é uma imagem do descanso da porrada. E solta-se um palavrão.



Trata-se de uma edição da Afrontamento, Setembro de 1974, trata-se da reedição de uma publicação clandestina policopiada. Diz-se na nota introdutória: compilação de textos significativos, procurando dar uma visão de conjunto sobre o colonialismo português e as guerras coloniais, com o intuito de fornecer um instrumento de trabalha para a luta anticolonial.

Luís Moita e Nuno Teotónio Pereira são dois dos editores, o que faz supor que era uma açã clandestina os católicos de vanguarda. O leitor encontra os seguintes dossiês: a expansão colonial portuguesa com o tratamento do comércio ao longo da costa, a partilha de África e a ocupação militar e um documento sobre a evolução da escravatura aos trabalhos forçados; o segundo dossiê tem a ver com dados coligidos pelos autores sobre trabalho forçado, dados sobre a saúde na Guiné nos anos 1950 e a saúde em Angola nos anos 1960, o ensino e a cultura, o racismo, o papel da igreja católica e o sistema económico; o terceiro caderno, seguramente o maior, tem a ver com a luta pela independência em Angola, Guiné e Moçambique; o quarto prende-se com solidariedade em torno das lutas de libertação, o quinto é dedicado às vítimas de guerra, o sexto perspetiva a luta nos anos seguintes e o sétimo documento comporta anexos, desde mapa cronológico à bibliografia.

Dá relevo às fases da ocupação portuguesa na Guiné entre 1878 e 1936, cita abundantemente passos de livros de Basil Davidson, Gérard Chaliand e relatórios de Amílcar Cabral. O livro tem aspetos muito melindrosos na medida em que apresenta nomes de militares e polícias de segurança política, designadamente em Angola, associados a crimes gravíssimos, trata-se da citação de um documento clandestino que teria sido elaborado por estudantes portugueses. O mapa cronológico dos acontecimentos ligados à guerra parece bem elaborado.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16241: Nota de leitura (852): Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

antonio graça de abreu disse...

Três milhões de contos numa mala de couro?
Em notas de mil escudos, de um conto, portanto, ( a nota máxima que existia na época), são três milhões de notas transportadas num mala de couro. Li bem?
Será mesmo verdade?

É que, neste blogue desde camaradas com penicos na cabeça até três milhões de notas de conto transportadas em malas de couro, eu já não sei o que hei de dizer.

Abraço,

António Graça de Abreu