Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Centro de Instrução Militar de Contuboel > Junho de 1969 > A dolce vita dos dois primeiros meses de comissão... Em primeiro plano, Luís Graça (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) e Renato Monteiro (CART 2479 / CART 11), em passeio pelo Rio Geba. Ao fundo, a velha ponte e açude, de madeira, sobre o rio Geba Estreito, onde o Renato Monteiro, um dia, esteve prestes a morrer afogado, à minha frente!...
Como legenda a esta foto, do meu álbum, eu escrevi o seguinte em 2005:
"Nunca mais encontrei o meu amigo Monteiro que, segundo creio, é o coautor de um livro que li e apreciei muito sobre a guerra colonial (Renato Monteiro e Luís Farinha - Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: D. Quixote, 1990, 307 pp)"...
Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Este texto esteve guardado, durante quase um ano, até ser publicado em 23 de junho de 2006 (*)... Não o fiz por respeito à vontade (tácita) do seu autor, que eu conheço de Contuboel, do Centro de Instrução Militar de Contuboel, dos brevíssimos meses de junho e julho de 1969, e de quem perdi depois, completamente, o rasto (mas não o rosto)... O rosto vim a reconhecê-lo na contracapa de um livro (Renato Monteiro e Luís Farinha - Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: D. Quixote, 1990, 307 pp)... Enfim, uma estória singela de encontros e desencontros já aqui evocada no nosso blogue, em 23 de junho de 2006 (**)...
"O misterioso homem da piroga", que me conduzia, rio Geba Estreito abaixo, havia embarcado para a Guiné em 18 de fevereiro de 1969, três meses antes de mim. Fazia parte da CART 2479 / BART 2866 (***)... Passou por Contuboel (Junho/Julho de 1969) e depois por Piche, acabando por mudar de companhia, por motivos disciplinares...
A porrada (, dez dias de detenção,) valeu ao Renato a mudança de companhia: foi colocado no Xime e depois no Enxalé, na CART 2520 (1968/70)... Por pouco tempo, já que o paludismo apressou-lhe o fim da comissão: evacuado do Hospital 241 foi transferido para o HMP, em Lisboa, em 4 de Setembro de 1969.
Tudo para justificar a quebra de um compromisso e dar a conhecer, aos restantes camaradas e amigos da Guiné, uma camarada da Guiné, com uma história de vida e uma sensibilidade singulares, um homem "desalinhado" como alguns de nós, e sobretudo que sabe pôr em palavras muito daquilo que sentimos e vivenciámos na tropa e na guerra, ou não fosse ele um poeta, um artista, um fotógrafo.
O Renato há muito que me perdoou eu ter-lhe retirado um pouco do seu mistério... (LG)
Amigo Luís:
Apesar dos inúmeros apagões (alguns intencionais) sobre o capítulo da minha história (desde o embarque ao regresso), tenho a ideia de, nesse tempo, ser sempre dos últimos a chegar à formatura. A falta de pontualidade acabava sempre por constituir motivo sério de repreensão (inúmeras vezes repetida) pelo Comandante da Companhia [, cap mil art Analido Aniceto Pinto (1934- 2014), foi funcionário da Galp Energia):
Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Estrada Xime - Bambadinca > CART 2530 (1969/70) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma >1969 > "Lembro-me de poucos momentos, desse tempo, a cores… Ponte do Rio Udunduma onde nos banhávamos e, à falta de um aparelho de pesca capaz, houvesse quem apanhasse peixe à granada… Vê-me, Luís, esse par de bidões, e diz-me se não são uma ternura!"...
Ponte do Rio Udunduma. A segurança desta ponte era vital para as NT. Ficava a 4 km de Bambadinca e a 7 do Xime. No célebre ataque a Bambadinca, em 28 de maio de 1969, a guerrilha tentara dinamitá-la. Desde junho de 1969 a ponte era defendida por 2 secções da CART 2520 (Xime) e, mais tarde, por um Gr Comb da CCAÇ 12 (a partir do final do ano de 1969), alterando com o Pel Caç Nat 52, comandado pelo alf mil Beja Santos (transferido de Missirá para Bambadinca em Novembro de 1969, sendo substituído em Missirá pelo Pel Caç Nat 54, do alf mil Correia). Havia apenas abrigos individuais, extremamente precários: bidões de areia com cobertura de chapa de zinco, e valas comunicando entre os abrigos individuais.
Foto (e legenda): © Renato Monteiro (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]-
A Ponte de Rundunduma, próximo daquela aldeia (e que se encontra igualmente ilustrada na tua página), foi ocupada inicialmente pela secção de que fazia parte. [Trata-se de Amedalai, LG...]
No dia em que lá chegamos, a preocupação prioritária foi a de cavar uma vala, vertiginosamente, operação deveras penosa mercê da dureza do terreno, e de no dia seguinte tratarmos de construir uns frágeis abrigos, com os usuais bidões, enchidos com pedra e areia cobertos por folhas de zinco.
Imaginarás como nos sentíamos tão vulneráveis, sobretudo à noite, face a uma hipotética investida do IN. A expectativa de sermos atacados, com os parcos dispositivos de defesa e o reduzido número de homens que dispúnhamos, causava-nos uma grande intranquilidade... Alturas houve em que apenas dormitava durante o dia, por temer a probabilidade de virem a incomodar-nos de noite, estando ainda por perceber a que razão de não nos terem visitado... Ora, para serem bem sucedidos, nem precisariam de grande ousadia!
À volta do rio, nos charcos, o insistente coaxar das rãs era-me tão insuportável que a custo simulava junto da Guida a irritação que me provocava o pitoresco e pacífico som daquelas sujeitas quando, mais tarde, as surpreendíamos nos lagos do nosso namoro!
Apesar de partilhar com os demais aquele sentimento permanente face à iminência das emboscadas e flagelações aos aquartelamentos (que acabaram episodicamente por suceder) onde me senti, apesar de tudo, menos desconfortável (se assim posso dizer) foi no Enxalé, para onde fui destacado.
Aí, tive a oportunidade de retomar o contacto com as comunidades africanas, balantas e mandingas, que coabitavam, paredes meias, com o destacamento. Através da leitura recente que fiz a registos dessa altura, soube (para minha surpresa) que cheguei a ter perto de cem alunos aos quais procurava ensinar a falar e a escrever a língua portuguesa, utilizando como espaço lectivo um antigo armazém de um colono, que se pôs em fuga no início da Guerra... [Trata-se do Pereira do Enxalé, pai da nossa grã-tabanqueira Maria Helena Carvalho. ]
Mas o pior de tudo foi ter sido incumbido de gerir a logística e de me ver obrigado a aplicar as formas de camuflar o saldo negativo que ingenuamente (?) herdara do camarada anterior, enquanto aguardava, ansiosamente, pela nossa transferência para a ilha de Bissau, onde viria a ser internado no Hospital com uma infecção que me proporcionou o regresso, dois meses antes do previsto, a Lisboa.
Logo no início desta longa resenha falava-te da falta de pontualidade em chegar às formaturas. Amigo Luís, essa lacuna mantém-se até hoje. Não apenas em relação às coisas que se comparam com a seca das formaturas, mas também com as que envolvem prazer, como o simples acto de responder-te...
Em parte, este deixar para amanhã o que deve ser feito logo, prende-se com a falta de tempo ou, melhor dito, com a forma como o ocupo...
Disso te darei notícia, tão breve quanto possível, aproveitando para responder às tuas últimas palavras.
Um grande abraço,
Renato
Lumiar, 28 - 7- 05 (****)
______________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 23 de junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)
Acabei pro receber, passados uns tempos, em 4 de julho de 2005, a seguinte mensagem, assinada pelo Renato Monteiro:
"Amigo Luís: Muito surpreendido por me rever numa piroga no rio Geba. Na verdade, não me lembrava desse episódio. Não menos espantado por rever a picada do Xime e outros locais que, passado tanto tempo, ainda se encontram bem presentes na minha memória... Lamento, ao contrário, não ter reconhecido ninguém nas fotos nem, sequer, te referenciar. Não sei a explicação. Sou, na realidade, coautor do livro que referes. Fico ao teu dispor para o caso de quereres comunicar, e feliz pela Internet ter possibilitado este reencontro. Um abraço, Renato Monteiro".
Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Este texto esteve guardado, durante quase um ano, até ser publicado em 23 de junho de 2006 (*)... Não o fiz por respeito à vontade (tácita) do seu autor, que eu conheço de Contuboel, do Centro de Instrução Militar de Contuboel, dos brevíssimos meses de junho e julho de 1969, e de quem perdi depois, completamente, o rasto (mas não o rosto)... O rosto vim a reconhecê-lo na contracapa de um livro (Renato Monteiro e Luís Farinha - Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: D. Quixote, 1990, 307 pp)... Enfim, uma estória singela de encontros e desencontros já aqui evocada no nosso blogue, em 23 de junho de 2006 (**)...
"O misterioso homem da piroga", que me conduzia, rio Geba Estreito abaixo, havia embarcado para a Guiné em 18 de fevereiro de 1969, três meses antes de mim. Fazia parte da CART 2479 / BART 2866 (***)... Passou por Contuboel (Junho/Julho de 1969) e depois por Piche, acabando por mudar de companhia, por motivos disciplinares...
A porrada (, dez dias de detenção,) valeu ao Renato a mudança de companhia: foi colocado no Xime e depois no Enxalé, na CART 2520 (1968/70)... Por pouco tempo, já que o paludismo apressou-lhe o fim da comissão: evacuado do Hospital 241 foi transferido para o HMP, em Lisboa, em 4 de Setembro de 1969.
Tudo para justificar a quebra de um compromisso e dar a conhecer, aos restantes camaradas e amigos da Guiné, uma camarada da Guiné, com uma história de vida e uma sensibilidade singulares, um homem "desalinhado" como alguns de nós, e sobretudo que sabe pôr em palavras muito daquilo que sentimos e vivenciámos na tropa e na guerra, ou não fosse ele um poeta, um artista, um fotógrafo.
O Renato há muito que me perdoou eu ter-lhe retirado um pouco do seu mistério... (LG)
2. Diga se me ouve, escuto!
por Renato Monteiro
[ex-fur mil, CART 2439 /, CART 11, Contuboel e Piche, 1969/ CART 2520, Xime e Enxalé, 1969/70); licenciado em história pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi professor do ensino secundário; tornou-se um notável fotógrafo do quotidiano, com obra feita (vários álbuns publicados desde 1998; e tem pelo menos 20 blogues de fotografia). Nasceu em 1946, no Porto, vive em Lisboa]
por Renato Monteiro
[ex-fur mil, CART 2439 /, CART 11, Contuboel e Piche, 1969/ CART 2520, Xime e Enxalé, 1969/70); licenciado em história pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi professor do ensino secundário; tornou-se um notável fotógrafo do quotidiano, com obra feita (vários álbuns publicados desde 1998; e tem pelo menos 20 blogues de fotografia). Nasceu em 1946, no Porto, vive em Lisboa]
Amigo Luís:
Apesar dos inúmeros apagões (alguns intencionais) sobre o capítulo da minha história (desde o embarque ao regresso), tenho a ideia de, nesse tempo, ser sempre dos últimos a chegar à formatura. A falta de pontualidade acabava sempre por constituir motivo sério de repreensão (inúmeras vezes repetida) pelo Comandante da Companhia [, cap mil art Analido Aniceto Pinto (1934- 2014), foi funcionário da Galp Energia):
- Ó Monteiro, um dia destes, dou-lhe uma porrada!
É bem provável que te recordes do sujeito: um tipo excessivamente baixinho, que nunca foi capaz de fazer uma meia volta - volver sem criar a impressão de mover-se numa matéria adesiva, impedindo a rotatividade livre dos calcanhares. Era também conhecido por filtrar as sílabas e as vogais através do cornetim nasal, em vez do uso comum das cordas vocais quando comunicava com o pessoal...
comandante:
Não vale a pena adicionar, a estas, outras características inerentes ao sujeito para perceber como, a partir de certa altura, o regime, com um número cada vez mais insuficiente de quadros permanentes, não teve outro remédio senão mandar para as urtigas os manuais de selecção de pessoal para as três frentes... Em determinada fase do campeonato, os recursos humanos deixaram de se preocupar com a questão dos perfis: servia qualquer um.
Como não alterei, em nada, esta inclinação espontânea para o desalinho, acabei por propiciar o cumprimento da promessa nasalada do capitão, cedo demais, em Piche, para onde fôramos transferidos.
Após 10 diz de detenção domiciliária, em situação de incomunicável, acabei por ser recambiado para o Xime, com um grande sentimento de luto, sobretudo em relação aos africanos do meu pelotão (com quem trocava imensas estórias) para além de me ver afastado do companheirismo de um ou outro camarada, especialmente do furriel Cunha (mais conhecido por Canininhas) que, tendo sensivelmente a mesma estatura da do capitão, não era tão baixinho quanto aquele!
Natural do Barreiro e filho de um palhaço, herdara do pai um grande humor (que muito ajudou a contrariar a propensão para uma revolta amarga que me deixava a falar sozinho), sendo, ainda, dotado de uma aptidão fora de série para tocar qualquer instrumento. (Hoje não faz outra coisa do que andar pelo país fora, a concertar órgãos e pianos gripados...).
Desde a aterragem no Aeroporto da Portela (1969), vi-o apenas três vezes: uma com o propósito de me facultar o diário da companhia [, a história da unidade,] (a CART 2479); outra para me ceder algumas fotos tiradas por si na Guiné (algumas das quais figuram no livro Guerra Colonial: Fotobiografia, 1990); e uma outra a pretexto de beber um copo...
Seguramente que a personalidade do Canininhas, vertida para a literatura, não careceria de muita elaboração ficcional, bastando quase só transcrevê-lo... E, pergunto-me se não terá sido ele o autor da foto da Piroga do Geba, já que uma das suas fixações era, para além de perfilhar uma gazela (!), adquirir uma câmara fotográfica...
Como tu, é difícil recordar o terceiro camarada que se encontrava connosco e a quem , afinal, se fica a dever este inesperado reencontro entre nós e, com uma certa memória de mim próprio...
Ao contrário da maior parte das pessoas que conheço (e crê, não me vanglorio desta particularidade) nunca mais cuidei em revisitar os antigos companheiros... Sequer os que integravam a Companhia sediada no Xime que incorporei [, a CART 2520].
Salvo os graduados, a maior parte [da CART 2520] era constituída por malta recrutada no Alentejo, tendo como comandante [, o cap mil António dos Santos Maltez,] um homem com quem apenas troquei duas ou três brevíssimas conversas, uma das quais em torno de livros que líamos e autores que apreciávamos.... Igualmente miliciano, de formação católica, de quando em quando, procedia a uma breve cerimónia no centro da parada, junto a um padrão ou coisa do género, onde lia umas passagens da Bíblia a muito poucos (meia dúzia ?) de soldados que, voluntariamente, o acompanhavam...
Ao que julgo, era professor de Química e, apesar de não recordar o seu nome (imagina, como trabalhei para a evaporação destas memórias), conservo dele a melhor das lembranças... Aceitava pacificamente a minha tendência para o desalinho (se é que dava por isso) e eu respeitava-o.
A partir do Xime, como sabes, a par das incursões que se faziam em direcção (por vezes mais aparentes do que efectivas) às bases ou acampamentos dos Turras (devidamente assinalados no mapa da tua página), mantínhamos um contacto regular com Bambadinca para o reabastecimento logístico.
É bem provável que te recordes do sujeito: um tipo excessivamente baixinho, que nunca foi capaz de fazer uma meia volta - volver sem criar a impressão de mover-se numa matéria adesiva, impedindo a rotatividade livre dos calcanhares. Era também conhecido por filtrar as sílabas e as vogais através do cornetim nasal, em vez do uso comum das cordas vocais quando comunicava com o pessoal...
comandante:
Não vale a pena adicionar, a estas, outras características inerentes ao sujeito para perceber como, a partir de certa altura, o regime, com um número cada vez mais insuficiente de quadros permanentes, não teve outro remédio senão mandar para as urtigas os manuais de selecção de pessoal para as três frentes... Em determinada fase do campeonato, os recursos humanos deixaram de se preocupar com a questão dos perfis: servia qualquer um.
Como não alterei, em nada, esta inclinação espontânea para o desalinho, acabei por propiciar o cumprimento da promessa nasalada do capitão, cedo demais, em Piche, para onde fôramos transferidos.
Após 10 diz de detenção domiciliária, em situação de incomunicável, acabei por ser recambiado para o Xime, com um grande sentimento de luto, sobretudo em relação aos africanos do meu pelotão (com quem trocava imensas estórias) para além de me ver afastado do companheirismo de um ou outro camarada, especialmente do furriel Cunha (mais conhecido por Canininhas) que, tendo sensivelmente a mesma estatura da do capitão, não era tão baixinho quanto aquele!
Natural do Barreiro e filho de um palhaço, herdara do pai um grande humor (que muito ajudou a contrariar a propensão para uma revolta amarga que me deixava a falar sozinho), sendo, ainda, dotado de uma aptidão fora de série para tocar qualquer instrumento. (Hoje não faz outra coisa do que andar pelo país fora, a concertar órgãos e pianos gripados...).
Desde a aterragem no Aeroporto da Portela (1969), vi-o apenas três vezes: uma com o propósito de me facultar o diário da companhia [, a história da unidade,] (a CART 2479); outra para me ceder algumas fotos tiradas por si na Guiné (algumas das quais figuram no livro Guerra Colonial: Fotobiografia, 1990); e uma outra a pretexto de beber um copo...
Seguramente que a personalidade do Canininhas, vertida para a literatura, não careceria de muita elaboração ficcional, bastando quase só transcrevê-lo... E, pergunto-me se não terá sido ele o autor da foto da Piroga do Geba, já que uma das suas fixações era, para além de perfilhar uma gazela (!), adquirir uma câmara fotográfica...
Como tu, é difícil recordar o terceiro camarada que se encontrava connosco e a quem , afinal, se fica a dever este inesperado reencontro entre nós e, com uma certa memória de mim próprio...
Ao contrário da maior parte das pessoas que conheço (e crê, não me vanglorio desta particularidade) nunca mais cuidei em revisitar os antigos companheiros... Sequer os que integravam a Companhia sediada no Xime que incorporei [, a CART 2520].
Salvo os graduados, a maior parte [da CART 2520] era constituída por malta recrutada no Alentejo, tendo como comandante [, o cap mil António dos Santos Maltez,] um homem com quem apenas troquei duas ou três brevíssimas conversas, uma das quais em torno de livros que líamos e autores que apreciávamos.... Igualmente miliciano, de formação católica, de quando em quando, procedia a uma breve cerimónia no centro da parada, junto a um padrão ou coisa do género, onde lia umas passagens da Bíblia a muito poucos (meia dúzia ?) de soldados que, voluntariamente, o acompanhavam...
Ao que julgo, era professor de Química e, apesar de não recordar o seu nome (imagina, como trabalhei para a evaporação destas memórias), conservo dele a melhor das lembranças... Aceitava pacificamente a minha tendência para o desalinho (se é que dava por isso) e eu respeitava-o.
A partir do Xime, como sabes, a par das incursões que se faziam em direcção (por vezes mais aparentes do que efectivas) às bases ou acampamentos dos Turras (devidamente assinalados no mapa da tua página), mantínhamos um contacto regular com Bambadinca para o reabastecimento logístico.
Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Estrada Xime - Bambadinca > CART 2530 (1969/70) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma >1969 > "Lembro-me de poucos momentos, desse tempo, a cores… Ponte do Rio Udunduma onde nos banhávamos e, à falta de um aparelho de pesca capaz, houvesse quem apanhasse peixe à granada… Vê-me, Luís, esse par de bidões, e diz-me se não são uma ternura!"...
Ponte do Rio Udunduma. A segurança desta ponte era vital para as NT. Ficava a 4 km de Bambadinca e a 7 do Xime. No célebre ataque a Bambadinca, em 28 de maio de 1969, a guerrilha tentara dinamitá-la. Desde junho de 1969 a ponte era defendida por 2 secções da CART 2520 (Xime) e, mais tarde, por um Gr Comb da CCAÇ 12 (a partir do final do ano de 1969), alterando com o Pel Caç Nat 52, comandado pelo alf mil Beja Santos (transferido de Missirá para Bambadinca em Novembro de 1969, sendo substituído em Missirá pelo Pel Caç Nat 54, do alf mil Correia). Havia apenas abrigos individuais, extremamente precários: bidões de areia com cobertura de chapa de zinco, e valas comunicando entre os abrigos individuais.
Foto (e legenda): © Renato Monteiro (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]-
A Ponte de Rundunduma, próximo daquela aldeia (e que se encontra igualmente ilustrada na tua página), foi ocupada inicialmente pela secção de que fazia parte. [Trata-se de Amedalai, LG...]
No dia em que lá chegamos, a preocupação prioritária foi a de cavar uma vala, vertiginosamente, operação deveras penosa mercê da dureza do terreno, e de no dia seguinte tratarmos de construir uns frágeis abrigos, com os usuais bidões, enchidos com pedra e areia cobertos por folhas de zinco.
Imaginarás como nos sentíamos tão vulneráveis, sobretudo à noite, face a uma hipotética investida do IN. A expectativa de sermos atacados, com os parcos dispositivos de defesa e o reduzido número de homens que dispúnhamos, causava-nos uma grande intranquilidade... Alturas houve em que apenas dormitava durante o dia, por temer a probabilidade de virem a incomodar-nos de noite, estando ainda por perceber a que razão de não nos terem visitado... Ora, para serem bem sucedidos, nem precisariam de grande ousadia!
À volta do rio, nos charcos, o insistente coaxar das rãs era-me tão insuportável que a custo simulava junto da Guida a irritação que me provocava o pitoresco e pacífico som daquelas sujeitas quando, mais tarde, as surpreendíamos nos lagos do nosso namoro!
Apesar de partilhar com os demais aquele sentimento permanente face à iminência das emboscadas e flagelações aos aquartelamentos (que acabaram episodicamente por suceder) onde me senti, apesar de tudo, menos desconfortável (se assim posso dizer) foi no Enxalé, para onde fui destacado.
Aí, tive a oportunidade de retomar o contacto com as comunidades africanas, balantas e mandingas, que coabitavam, paredes meias, com o destacamento. Através da leitura recente que fiz a registos dessa altura, soube (para minha surpresa) que cheguei a ter perto de cem alunos aos quais procurava ensinar a falar e a escrever a língua portuguesa, utilizando como espaço lectivo um antigo armazém de um colono, que se pôs em fuga no início da Guerra... [Trata-se do Pereira do Enxalé, pai da nossa grã-tabanqueira Maria Helena Carvalho. ]
Mas o pior de tudo foi ter sido incumbido de gerir a logística e de me ver obrigado a aplicar as formas de camuflar o saldo negativo que ingenuamente (?) herdara do camarada anterior, enquanto aguardava, ansiosamente, pela nossa transferência para a ilha de Bissau, onde viria a ser internado no Hospital com uma infecção que me proporcionou o regresso, dois meses antes do previsto, a Lisboa.
Logo no início desta longa resenha falava-te da falta de pontualidade em chegar às formaturas. Amigo Luís, essa lacuna mantém-se até hoje. Não apenas em relação às coisas que se comparam com a seca das formaturas, mas também com as que envolvem prazer, como o simples acto de responder-te...
Em parte, este deixar para amanhã o que deve ser feito logo, prende-se com a falta de tempo ou, melhor dito, com a forma como o ocupo...
Disso te darei notícia, tão breve quanto possível, aproveitando para responder às tuas últimas palavras.
Um grande abraço,
Renato
Lumiar, 28 - 7- 05 (****)
______________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 23 de junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)
(**) Vd. poste de 23 de junho de 2006 > Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)
(****) Sobre a CART 2479 / CART 11, sabemos o seguinte:
(i) a CART 2479 [tem mais de meia centena de referências no nosso blogue) constituiu-se no RAL 5 em Penafiel, no ano de 1968, como subunidade do BART 2866, desmembrando-se desta unidade em fevereiro de 1969, e embarcando com destino à Guiné no dia 18, aonde chegou a 25 do mesmo mês;
(ii) o percurso operacional da CART 2479 na zona leste, foi longo, fixando a sua sede em Nova Lamego, no Quartel de Baixo em setembro de 1969;
(iii) passou por Bissau, Contuboel (Centro de Instrução Militar), Nova Lamego, Piche;
(iv) comandante: cap mil art Analido Aniceto Pinto (1/6/1934- 27/2/2014) (trabalhou na Galp Energia);
(v) foi extinta em 18 de janeiro de 1970, passando a companhia a designar-se CART 11 [, tem cerca mais de 90 referências no nosso blogue];
(vi) em maio de 1972 a CART 11 passou a designar-se CCAÇ 11 [tem cerca de 4 dezenas de referências].
(****) Último poste da série > 18 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19899: 15 anos a blogar desde 23/4/204 (9): o ataque a Sare Banda, destacamento da CART 1690 (Geba, 1967/69), em 8 de setembro de 1968: o alf mil Carlos Alberto Trindade Peixoto e o fur mil Raul Canadas Ferreira jogavam às cartas, à luz de petromax, foram mortos por uma roquetada (A. Marques Lopes)
(****) Sobre a CART 2479 / CART 11, sabemos o seguinte:
(i) a CART 2479 [tem mais de meia centena de referências no nosso blogue) constituiu-se no RAL 5 em Penafiel, no ano de 1968, como subunidade do BART 2866, desmembrando-se desta unidade em fevereiro de 1969, e embarcando com destino à Guiné no dia 18, aonde chegou a 25 do mesmo mês;
(ii) o percurso operacional da CART 2479 na zona leste, foi longo, fixando a sua sede em Nova Lamego, no Quartel de Baixo em setembro de 1969;
(iii) passou por Bissau, Contuboel (Centro de Instrução Militar), Nova Lamego, Piche;
(iv) comandante: cap mil art Analido Aniceto Pinto (1/6/1934- 27/2/2014) (trabalhou na Galp Energia);
(v) foi extinta em 18 de janeiro de 1970, passando a companhia a designar-se CART 11 [, tem cerca mais de 90 referências no nosso blogue];
(vi) em maio de 1972 a CART 11 passou a designar-se CCAÇ 11 [tem cerca de 4 dezenas de referências].
(****) Último poste da série > 18 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19899: 15 anos a blogar desde 23/4/204 (9): o ataque a Sare Banda, destacamento da CART 1690 (Geba, 1967/69), em 8 de setembro de 1968: o alf mil Carlos Alberto Trindade Peixoto e o fur mil Raul Canadas Ferreira jogavam às cartas, à luz de petromax, foram mortos por uma roquetada (A. Marques Lopes)
5 comentários:
Luís Graça
1 jul 2019 20:22
Renato: O que é feito do Cunha ?... Pelo retrato que fazes dele (bem como pelo comentário do seu filho mais novo, Jaime Cunha, em 9/12/2015), é obrigatória a sua presença na Tabanca Grande... O ninho dos lacraus não ficaria completo sem ele...
Olha, em tua e vossa homenagem, recuperei este teu texto... de 2006!
Bolas, como o teu passa!... 15 anos a blogar!...
Não me esqueci do teu pedido sobre os teus "fotografares"... Tens o meu nº telemóvel e o meu email, sempre ao alcance de um clique.
Gostei de te ver há dias com o Abílio, o Valdemar e Manel... na sardinhada dos santos populares.
Xicoração fraterno. Bj para a tua Guida. Luís Graça [Henriques]
Valdemar Silva
1 jul 2019 22:29
para eu
Luis
O Cunha é meu 'irmão siamês' na tropa.
Entramos os dois na parte da tarde do mesmo dia em Santarém EPC, depois fomos para Vendas Novas, EPA, tirar a especialidade, depois fomos colocados na Figueira da Foz (RAP3) mas ele ficou na EPA a dar instrução, depois fomos para Silvalde, Espinho, e por fim para a Guiné. Sempre Juntos.
O Cunha era músico e tocava nas boîtes noturnas, durante vários anos perdi o contacto ele, há anos que juntamos nos Convívios anuais e sei que é já há muitos anos afinador de pianos, profissão que ainda desempenha.
Por várias vezes tenho lhe pedido para el escrever para o nosso Blogue, mas ele não gosta de exibições.
Ainda estou à espera
Valdemar Queiroz
Valdemar Silva
1 jul 2019 22:42
Ainda estou à espera de um relato dele sobre a 'Judy', a cadela setter que foi connosco para a Guiné e que ele cuidava amorosamente, principalmente o relato do que se passou na viagem no'Timor' e numa emboscada feita numa noite da zona de Piche em que a cadela também foi com a nossa tropa.
Já tenho alinhavado a "A 'Judy' também foi prá guerra" mas faltam estes importantes relatos.
Quanto ao resto o Cunha é uma pessoa extraordinária.
Eu costumo dizer que ele teve comportamentos surrealistas/naïfs que não lembrou aos verdadeiros autores desses movimentos artísticos.
Abraço
Valdemar Queiroz
Olá a todos,
Gostei imenso de ler este artigo, referente á vida do Monteiro, na Guiné, sempre foi uma pessoa bastante diferenre dos demais, pela ssua inteligência e discrição.
Foi meu camarada, nas Caldas, Vendas Novas, Tancos e Leste da Guiné, até levar a porrada.
Assunto, que assisti pessoalmente, e que já relatei para o Blog.
A minha estranheza em relação ao que ele relata, é a alcunha do Cunha, eu nunca ouvi tal,nome.
Mas pronto, tudo é possível, para mim o que recordo, é que o Cunha, se intitulava, como Coronel Lucas Titio, era ou não Valdemar?
É sempre bom, recordar, estas cenas, a foto do Geba em Contuboel, faz-me lembrar, os bons banhos, que lá tomava-mos, e ir lavar a vista, com as bajudas.
Até á proxima.
Abílio Duarte.
Duarte
Eu também não me recordo dessa alcunha do Cunha.
Quanto à outra alcunha não está correcta, falta-lhe o Miliciano
Coronel Miliciano Lukas Titio, assim é que era.
Temos que concordar que era uma alcunha surrealista. 'Cor.Mil.' não lembra ao diabo.
Uma das máximas do Cunha e bem surrealista passou-se na EPA - Vendas Novas, quando ele
lá ficou a dar Instrução depois de acabar a Especialidade.
Foi numa reunião da Bateria de Instrução com todos Aspirantes, Furriéis e Cabos Milicianos que tratavam sobre as tarefas do dia, que o Cunha mandou um VRRRRRRR!!!! assustando os presentes.
Mas o que se passa Cunha? perguntou um dos Aspirantes.
Como estou a desenhar este novo modelo Lukas Titio, experimentei os motores, respondeu o Cunha apontando para os desenhos de carros que estava a fazer enquanto decorria a reunião.
Ah!ah!ah!ah!ah!
Mas com todo o seu surrealista não deixou de ser um grande exigente nas várias acções de combate na Guiné, incluindo ter feito parte da celebre emboscada de Sinchã Lali feita ao IN na região de Piche.
Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz
p.s. convém corrigir que o Cunha é natural das Caldas da Rainha e além de ser músico, também tem o Curso de Modelador/Barrista das Caldas.
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