1. Em mensagem do dia 1 de Setembro de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos a estória do Senhor Augusto, de que publicamos hoje a segunda de três partes.
O Senhor Augusto
José Teixeira
Parte II
Veio o tempo das uvas maduras. O senhor Augusto passava o dia sentado à sombra de um castanheiro, na borda da vinha, bem lá no alto, e a noite numa palhota construída com canas de milho seco, junto ao muro. Vigiava para impedir que as uvas da patroa fossem parar ao lagar de outrem, pois havia, na aldeia, quem gostasse de provar vinho doce em primeira mão, com as uvas alheias.
Eu deixava a minha mãe no campo e ia para a beira dele fazer-lhe companhia e ouvir as suas histórias. Eram as cobras que falavam; os ratos que caçavam gatos; o Gato das Botas de cano alto, ou a do “Pedro Pedrinho, Pedro Pedrão que, depois de burro, foi Sabichão”, contos a que ele aumentava sempre um ponto, para delícia minha, mas a de que gostei mais foi a das rãs que caíram dentro de um tacho cheio de claras de ovos. Uma sentiu-se perdida, desistiu de lutar e morreu afogada. A outra bateu tantas vezes com as patas, que as claras se transformaram em castelo e ela se salvou. História intricada, essa, que me punha a pensar como é que as claras de ovos, com que a minha mãe fazia o bolo quando havia festa na quinta, ou os filhos da patroa vinham almoçar, serviam para fazer castelos dentro de um tacho. Uma coisa me ensinava ele! Nunca se deve desistir dos nossos sonhos e de lutar pela vida.
E tantas outras histórias que ele tirava da sua memória, em que estavam guardadas e cheias de pó. Segundo ele, só eu tivera a ousadia de lhas ir buscar ao velho sótão, cujo telhado, os seus cabelos que nunca conheci, se perdera com os ventos do tempo.
Sabia onde havia as mais doces uvas naquela imensa vinha que enchia meia dúzia de pipas de saboroso mosto, um verde de categoria. Então, mal eu chegava, dizia-me:
– Ó meu rapaz, vai ao bardo da leira debaixo, lá bem no fundo há umas uvas brancas de estalo. Come até te fartares. Se a patroa vier, eu tenho um ataque de tosse, e tu foges, ouviste!
Situação que se foi repetindo durante o verão, ora na leira debaixo, ora na latada, ora… (O mestre é que sabia!). Voltava, então, para junto do simpático velhinho para ouvir mais uma história.
Até que cheguei à idade de ir para a escola.
Começou o princípio do fim da minha meninice, em que misturava o trabalho de guardar os ovelhas da patroa com as brincadeiras com os rapazes da vizinhança, com brinquedos e casinhas, construídos na nossa imaginação, ou pela nossa imaginação, como naquela tarde em que descobrimos uma forma de andar de carro por uma ribanceira, transformando um ramo de carvalho em moderno meio de transporte, com um garoto sentado e outro a fazer de burro, puxando, numa correria desenfreada, até chegar ao carreiro novo. Como consequência, foram-se os fundilhos das calças e choveram umas vergastadas no traseiro, com uma fina vara de mimosa.
E quantas vezes, abandonava os meus colegas de brincadeira e ia à procura do meu amigo velhote. Havia sempre fruta fresca e madura, e mais uma história por detrás de um sorriso maroto e profundamente cativante, ou, então, a repetição de uma já conhecida, mas com novos intervenientes, pois o senhor Augusto acrescentava sempre um novo pormenor para lhe dar outro sabor.
O meu velho amigo tinha uma arma de carregar pela boca. Era a sua companheira na barraca onde se acolhia durante a noite, num dos cantos da vinha à sua guarda. A patroa mandava-o carregar a arma com zagalotes. Ele garantia-lhe que sim, mas carregava a velha espingarda com muita pólvora seca, para que fizesse muito barulho e poucos estragos.
Uma noite de pouco luar, apareceram por lá os amigos do alheio. O vigia estava atento. Seguiu-os à distância. Apontou a arma para o alto e disparou. O estrondo foi tão grande que se ouviu em todo o lugar.
No dia seguinte, o meu amigo, logo que me viu, disse-me:
– Ó meu rapaz, tu nem sabes o que me aconteceu esta noite… Levei cá um coice!
Fiquei atarantado, e na minha inocência, comentei:
– Mas… o senhor Augusto não tem burro!
– Ó rapaz, foi o canhangulo que me deu um coice – e apontava para a arma encostada ao castanheiro, sorrindo.
De seguida, contou-me os acontecimentos da noite.
– Apareceram dali, daquele lado, estás a ver aquele tronco de carvalho? Eram dois homens com uma cesta. Foram por ali, rodearam aquela borda e saltaram para vinha, e eu a segui-los. Passaram para parte de dentro do bardo e começaram a colher uvas. Os malandros sabiam onde é que as uvas estavam maduras, mas eu também sabia. Aproximei-me de mansinho. Apontei a arma para o alto, e pum! O fumo foi tanto que quando passou, já não se via ninguém. Mas, assustados, foram-se, e não voltam, podes crer.
O que mais me intrigara foi saber que as armas davam coices.
(Continua)
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Nota do editor:
Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23598: Estórias do Zé Teixeira (58): O Senhor Augusto - Parte I (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Com todo o gosto e cheirinho a uvas maduras, já li a segunda, vou ler a primeira e fico à espera da terceira (partes do conto, pois claro).
Um grande abraço, José Teixeira.
Mário Migueis
O Senhor Augusto em criança deveria ter convivido com outras crianças de gente fina, e por isso teria ouvido contar a história do Gato das Botas Altas.
Contar estórias não é para todos, e o Zé Teixeira sabe conta-las.
Venha III parte para eu perceber que idade tinha o velhinho Senhor Augusto.
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
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