domingo, 16 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24227: (Ex)citações (425): o recurso ao pensamento mágico, à superstição, aos amuletos e às artes adivinhatórias, etc., na guerra, de um lado e do outro (Luís Graça)

(...) " Quando eu e o capitão João Bacar, em fevereiro [de 1970] , tínhamos vindo de Bissau para Fá Mandinga, para formarmos a CCmds da Guiné, o capitão Barbosa Henriques  [o instrutor]   deixou-nos em Bambadinca para tratarmos da situação das nossas famílias. E foi nessa ocasião que, em casa de um companheiro de João Bacar, encontrei esse tal homem, o Mamadu Candé, um Homem Grande e adivinho muito respeitado.

Pois, então, em Paunca, quando o encontrei, Mamadu Candé disse-me, solenemente, para eu avisar o capitão João Bacar que fizesse tudo por tudo para que a nossa companhia não fosse deslocada para ocidente de Fá Mandinga. Que nos ajudava a tratar de nos mantermos no leste, que a nossa fama já era grande e que, assim, o leste não seria conquistado. E disse mais: que nas suas previsões nos tinha visto a viajar num barco para desembarcarmos numa grande cidade e que nessa cidade íamos começar a sofrer muitas baixas.

Quando lhe perguntei que cidade era essa, se ficava na Europa ou em África, ele respondeu que não sabia. Eu acho que ele sabia muito bem qual era a cidade, não queria era dizer-nos. (...) (*)

(...) "Disseram-me que estávamos entre Bubaque e a Ilha de Soga, no arquipélago dos Bijagós. Que estamos a fazer neste sítio? Era uma pergunta que todos faziam, resposta ninguém tinha. O que vimos foi um grande movimento na ilha que me disseram chamar-se Soga.

Nesta altura veio-me à lembrança que, em Fá Mandinga tínhamos recebido instrução de combate dentro de cidades [ministrada pelo cap art Morais da Silva, hoje cor ref, membro da nossa Tabanca Grande... LG]. E também recordei o que tinha ouvido do adivinho de Paunca [Mamadu Candé, pág. 166 ]. Que íamos para uma grande cidade e que íamos sofrer muitas baixas. Eu nunca falei nesta conversa a ninguém, a não ser ao João Bacar. Fiquei com estes pensamentos na cabeça".(...) (**)


1. Comentário de LG ao poste P24224 (*):

Tal como os seus patrícios guineenses, muçulmanos, animistas ou cristãos, o Amadu Djaló era supersticioso. Veja-se a importância que ele dá, no seu livro de memórias, às revelações dos adivinhos. 

Neste caso, em Paunca, ele recebe uma mensagem misteriosa que deve transmitir ao seu comandante, João Bacar Jaló, ambos fulas e muçulmanos. A CCmds Africanos deve ficar no Leste e nunca sair de lá.  O adivinho Mamadu Candé, homem grande e respeitado na suas artes adivinhatórias, que ele já conhecia de Bambadinca, diz que a CCmds Africanos  vai ser confrontada com um cenário de tragédia. O adivinho vê o Amadu Djaló e o João Bacar metidos num barco a caminho de uma grande cidade, aonde desembarcam e onde sofrerão muitas baixas. 

Trata-se de uma premonição da Operação Mar Verde, o desembarque anfíbio em Conacri em 22/11/1970... Ou será antes uma reconstituição feita  "a posteriori", na sequênciua da operação ou muitos anos depois, pelo Amadu ? "Afinal, o que adivinho me revelou, batia certo!", terá concluído...

 O adivinho não lhe revelava ormenores, de qualquer modo,  uma cidade grande, junto ao mar, alvo da ação dos comandos africanos,  por via de um desembarque anfíbio, ó podia ser nos países limítrofes, Dakar (Senegal) ou Conacri (República da Guiné). 

O recurso a adivinhos, para saber o futuro e aliviar a angústia da incerteza, devia ajudar os combatentes de um lado e do outro a exorcizar o medo, enfim  é um ato de securização, tal como uso de amuletos (ou mesinhos) que protegem o corpo contra as balas do inimigo, era muito frequente, nesse tempo,  entre os guineenses, quer do PAIGC, quer das nossas tropas.

Amílcar Cabral sempre lutou contra estes aspetos "menos racionais" do comportamento dos seus militantes, e em particular dos seus  combatentes. O 'Nino' Vieira, por exemplo, não se deslocava no mato em situações de combate sem o seu arsenal de amuletos, e de ajudantes que os carregavam.... Quem o diz é o comandante Bobo Keita (ou Queita) ( In: Norberto Tavares de Carvalho, De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita. Edição de autor, Porto, 2011. (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11). Posfácio de António Marques Lopes. p. 197). (***)

Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 (1969/71) > O "alfero Cabral", "completamente apanhado do clima"... O nosso saudoso alf mil at art Jorge Cabral (1944-2021) ostentando, ao peito, um amuleto de origem fula ou mandinga, e mais dois, um à cintura e outro no direito ...  

A função dos amuletos de guerra era "fechar (blindar) o corpo" contra as balas do inimigo... Todos os combatentes, em todas as guerras, são "supersticiosos", sejam cristãos, mulçulmanos, judeus, crentes ou não crentes... E mal deles se não desenvolvem uma "idelogia defensiva" que os proteja contra o medo e o azar: veja-.se a conhecida divisa dos comandos, "A sorte protege os audazes"...  Todas as profissões de risco (dos médicos aos pilotos de aviação, dos futebolistas aos toureiros, dos mineiros às tropas especiais) têm estratégias de "racionalização" para lidar com os "riscos"...

Foto (e legenda): © Jorge Cabral (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné]
___________

Notas do editor

(*) Vd. poste de 15 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24224: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXIV: As previsões agoirentas do adivinho Mamadu Candé que nos via, a mim e ao João Bacar Jaló, a viajar num barco para desembarcarmos numa grande cidade e aí a sofrer muitas baixas (... só não nos disse o nome da cidade: Conacri...)

(**) Vd. poste de 22 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23804: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte X: Op Mar Verde, há 52 anos, em 22/11/1970: para Conacri, rapidamente e em força.

(***) Último poste da série > 4 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24194: (Ex)citações (424): Adeus, até ao meu regresso !... Mas em que ainda se fala de esquizofrenias galopantes, de Diniz de Almeida e do velho... do Restelo da Revolução (José Belo, Suécia)

4 comentários:

Antº Rosinha disse...

As feitiçarias, ou macumbas ou cerimónias que nas ex-colónias portuguesas se praticavam pelos africanos, um tanto fora das vistas do "branco colono", com as independências já não há nada esconder, e é feito tudo abertamente.

E já muito desses hábitos africanos foram trasportados para a Europa a somar a muitos outros similares já existentes.

Uns usados para o "bem" outros para o "mal", uns para "defesa" outros para o "ataque".

Onde se usa e abusa para tudo e para nada, de dia ou de noite, no trabalho ou no desporto, na guerra ou na paz, das magias levadas de África e do mundo inteiro, é no Brasil, abençoado por Deus e bonito por natureza.

Mas nesse aspecto, é mum pesadelo, por vezes aterrador.

É de fugir!

Anónimo disse...

Caro Luís Graça,

O ambiente da vida dos africanos é fortemente influenciado pela intuição e a superstição. Ainda hoje, na esfera das mais altas esferas do poder o misticismo (marabutismo) e os rituais das mais diversas crenças fazem legião.

Ainda criança, assistíamos vezes sem conta ao ritual das saídas do Patriarca da família, o Samagaia, durante a qual todas as mulheres deviam se afastar do caminho, pois seria de muito mau agoiro cruzar-se com uma mulher antes de sair da sua concessão. E o pior de tudo é que esta prática acabou por nós influenciar de tal modo que, acabamos por acreditar na sua veracidade e consequências.

No domínio dos amuletos, quase nunca usei, desde que saí da casa paterna/materna, mas nunca me separei deles que sempre guardava na minha mala, alguns eram destinados para afastar os mais olhados, os espíritos malignos e dezenas de outros imponderáveis da vida e, inclusive ainda tenho um que me resguardava de qualquer acidente aéreo, pudera!...Esse eu nunca esquecia nas muitas viagens que fiz pelo mundo fora e, graças a Deus, nunca aconteceu nada de grave, apesar de alguns aborrecimentos e desventuras que podem considerar-se normais. E ainda, tenho na memória as inesquecíveis palavras do homem grande (Marabu) mandinga de Sumbundo, onde tinha ido com o meu pai e que, inesperadamente, quis informar ao meu pai que o meu destino estava traçado e que teria sucesso qualquer que fosse a escola para onde me enviassem, fosse a coránica ou a portuguesa. Este facto foi relevante e influenciou o meu futuro porque o meu pai estava em dúvida se devia ou não inscrever-me na escola dos brancos. E finalmente, o velho garantiu-nos que viveria nunca menos de 77 anos. Bem, já falta pouco tempo, mas para mim será uma boa idade para mudar de ares, afinal de contas já vi o suficiente para não desejar um prolongamento extra.

Mesmo não sendo muito místico e raramente frequentar os marabus, em África o mundo da superstição e do misticismo é rei e sobrevive em todas as esferas, da política aos negócios e do trabalho agrícola ao mundo do desporto. E, como não podia deixar de ser, também exportamos para Europa, inclusive Portugal, onde vivem e praticam muitos Marabus e Djambakos.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé

Valdemar Silva disse...

E de fugir! ahahahahahah!

Os papelinhos que nos aparecem nas caixas do correio ou agarrados às escovas limpa vidros dos automóveis, são de fugir..a rir.

O conceituado cientista/vidente professor Karamba é do melhor que há.
Trata de tudo próximo e pelo telefone, seja de negócios, saúde, alcoolismo, drogas, problemas escolares de crianças, inflacção (calhando agora).
Mas a mais extraordinário é afastar ou aproximar a pessoa que ama.

É de fugir! E estranhamente não há queixas(conhecidas) destes Karambas, Zandingas ou Zés da Cancela.

Valdemar Queiroz

Hélder Valério disse...

Meus caros

Este assunto de amuletos e afins parece-me interessante.
Tenho ideia que ao longo dos tempos sempre houve impulsos desse género, em civilizações pré cristãs, muçulmanas ou outras.
Pedir a proteção dos deuses para as tarefas que se apresentavam seria uma "coisa natural".

Portanto, esse tipo de situações revelou-se quase como que "moeda corrente", entre os "metropolitanos" que participavam nas várias frentes africanas.
Também entre os homens do "outro lado" foi dado conta desse tipo de proteções.... lembro por exemplo o que se dizia do pessoal da UPA aquando do início das ações em Angola, que avançavam de "peito feito" porque os seus (deles...) chefes lhes tinham dado "mezinha" com a qual "bala de branco não mata".

Na Guiné havia tudo o que aqui já foi referido de amuletos e de proteções.
Em Portugal abundavam as promessas a várias entidades divinas para o regresso "são e escorreito" daqueles que partiam.

A minha mãe também me quis proteger.
Não sei o que efetivamente fez, pois respeitando a sua vontade nunca abri o pequenino embrulho (aí coisa de 2X2 cm) que insistiu que eu deveria ser sempre portador.
Sei que contém escrito qualquer coisa, uma oração, um pedido, uma invocação, não sei realmente, pois o que quer que seja foi dobrado várias vezes e depois contido no embrulho referido e cozido com linha.
Andei sempre com isso na carteira e agora não sei onde está guardado mas sei que não lhe dei sumiço.

Amor e preocupação de mãe que, embora não repudiasse, obviamente, também não coincidia com as minhas posturas de então mas que acatei respeitosamente.

Hélder Sousa