sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24549: Notas de leitura (1605): "O Elogio da Dureza", por Rui de Azevedo Teixeira; Gradiva Publicações, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Trata-se inegavelmente de uma surpresa, pelo assombro como desvela a intimidade, por descrições duríssimas, é muito difícil não acreditar que tudo isto que ali se escreve não vem da experiência vivida. Sabe-se que Rui de Azevedo Teixeira combateu em Angola, é doutor em Literatura Portuguesa, ensinou em universidades europeias e africanas e no seu currículo há obras de grande importância como A Guerra Colonial e o Romance Português: Agonia e Catarse ou O Fim do Império e a Novelística Feminina e também A Guerra de Angola: 1961-1974. Não custa crer que o autor entendeu que este legado de crueza e terror é importante para que as novas gerações recebam agora o que nos aconteceu há mais de 50 anos.

Um abraço do
Mário



O terror puro e duro para iluminar a noite interior

Mário Beja Santos

Rui de Azevedo Teixeira nasceu em Argivai, Póvoa de Varzim. Combateu em Angola. É doutorado em Literatura Portuguesa e ensinou em universidades europeias e africanas. Organizou os congressos internacionais sobre a Guerra Colonial (Instituto de Defesa Nacional, 2000) e a Guerra do Ultramar (Fórum Cultural do Seixal, 2001). Sobre o conteúdo do livro, Rui de Azevedo Teixeira deixa no ar: “Será Vila Velha do Mar a Póvoa ficcionada? E qual é a aldeia? E as personagens da vila e da aldeia, transfigurados pela ficção, serão alguns dos professores e estudantes do Liceu do fim dos anos 60 ou princípios de 70? São reconhecíveis? O jogo literário de quem é quem puxa pelas memórias saudosas dos leitores”, explica.

É um romance singular no amplo contexto da literatura da guerra colonial este "O Elogio da Dureza", Gradiva Publicações, 2021. Paira a sombra da autobiografia, o rasgar da intimidade de alguém que descobre que é filho ilegítimo de pai incógnito. Sabemos que na juventude muito leu, autores de diferentes proveniências e que cedo começou a escrever um diário incerto, mau aluno até chegar ao fim do Liceu, aí desabrochou; os estudos em Coimbra não o mobilizaram, Paulo de Trava Lobo Ferreira oferece-se como voluntário, lega-nos páginas manuscritas onde fala do padrasto, gente com quem se relacionou, as obras que leu. Salta no tempo, já regressou da guerra em Angola, onde viveu o último capítulo.

“Vivia entre dois tempos e dois espaços, entre o recentíssimo passado angolano e o presente português. Um tempo misturado em que a componente angolana dominava. Mesmo com as obsessivas leituras, mesmo com o processo revolucionário em curso, ainda assim eram as recordações de Angola que mais lhe ocupavam a cabeça. Pensou até em voltar lá como mercenário, numa empresa de um almirante comunista, para lutar pelo MPLA. Um mercenário marxista leninista?! Baralhado, largou a ideia, substituindo-a por outra, por uma vida também dedicada à violência”.

Os problemas familiares acentuam-se, reencontra-se com gente dos Comandos, convém não esquecer que estamos perante um oficial Comando, com prestação assinalável na contraguerrilha. E de novo regressamos a Luanda, salto diacrónico, Paulo está a chegar à guerra, fala-nos do violentíssimo curso de Comandos, provas brutais, tudo minuciosamente contado para se perceber como se cria um militar disciplinado, uma máquina de combate. Nos momentos de ócio, desce até à cidade de Luanda, anota o seu fervilhar:
“Circulavam miúdas e miúdos pretos com olhos brilhantes como refletores e sorrisos imensos. A estragar a alegria do quadro, os pretos descalços e os pretos de calções e os pretos de roupa rota e os pretos servis e os pretos com medo. Mas havia também um ou outro preto bem vestido e integrado no sistema colonial. E tropa e mais tropa. Soldados da pacaça em grupos de três e quatro, sem aprumo, com mal ajangadas fardas número dois e até com camisas de camuflado. E, de vez em quando, passavam os raros e orgulhosos Comandos de farda número dois, com cinturão, crachá ao peito e dístico no ombro esquerdo, calças e camisa de manga curta bem passadas e as mãos atrás das costas”.

Fala-se de comezainas, de sexo, caminhamos para a vida operacional, já temos os Comandos formados. Volta-se inopinadamente ao processo revolucionário, sabe-se que Paulo detesta os comunistas e esquerdistas e dentro deste processo diacrónico voltamos ao Paulo operacional, e aqui o autor esmera-se, a partir do Luso entramos diretamente na Operação Empurra Tudo, vamos assistir a homicídios com faca, escalpes, chegou a hora do puro horror: “Meteu então a faca na barriga do velho e fê-la girar lá dentro como o corno do motor numa colhida. O velho gritou. Paulo e Ferro viraram-se e ainda o viram a ser degolado. O meio bóer deu um pontapé no cadáver fresco do velho, antes de se dirigir para a bicicleta. Enlouquecido de violência, esfaqueou o selim, os pneus e até o farol. Paulo viu, então, junto a uma árvore, sentado, imóvel, uma mulher com um bebé que mamava regaladamente. Ambos miraculosamente ilesos. Paulo ordenou a Ferro que acabasse com os feridos graves. Antes da saída do quartel, tinha visto o furriel a raspar a ponta das balas no chão de cimento à entrada da secretaria. Em segundos, três tiros. As balas atravessaram as cabeças aos trambolhões e saíram levando pedaços de cada uma. Miolos à mostra”.

A operação prossegue, dão-se mais tiros de misericórdia a moribundos, descobrimos que há uma ética: “Os Comandos não abandonavam inimigos feridos. Deixados vivos, ficariam a morrer aos poucos, gritando de dor, antes de serem comidos e passados a esqueleto e a fezes de animais”. Havia, pois, tiros de misericórdia. Entre as operações Paulo leva uma rica vida com a amante e a criada da amante, tudo isto na zona militar leste. Ficamos a saber que nas dez operações dos primeiros quatro meses o corpo de combate de Paulo e os vinte e cinco mortos confirmados. Por vezes as coisas correm para o torto, mas mata-se muito mais do que se sofre. Mas Paulo está a mudar. “Paulo começava a dividir-se, a cindir-se mesmo, entre o idealismo imperial e a justiça histórica. Amava criticamente a História de Portugal e o Império, mas os angolanos já eram crescidos, tinham todo o direito a sair de casa. Todo o direito a serem independentes”. Do Leste irá partir para outro local, o Mayombe, mas, entretanto, damos outro salto diacrónico, voltamos ao processo revolucionário em curso, virá o 25 de novembro, Paulo volta aos estudos, torna-se bacharel, percorrerá vários lugares a dar aulas.

"O Mayombe, floresta equatorial ainda mais impenetrável do que as florestas tropicais, era o absoluto oposto à que agora parecia a Paulo a simpática savana”. Numa operação descobre-se um depósito de armamento, Paulo não sentiu orgulho, apenas sorte, e depois vem o grande combate, o inimigo atacava, eram da FLEC. “Chamou a atenção de Paulo um carregador furado e um cadáver de barriga para baixo. Pegou no carregador e foi tirando as balas. Encontrou o que procurava – a bala furada por uma bala dos Comandos. A bala da G3 acertara em cheio fazendo um buraco perfeito no cartucho da bala de Kalashnikov. Paulo guardou a bala furada, passou a ser o seu talismã”.

Veio o 25 de Abril, o bacharel irá fazer mais estudos, o professor Paulo Lobo tem destino universitário. De novo saltamos para o fim da guerra, quando ele se encontrava especificamente em pré-desagregação, regressa à pátria. Toda esta noite interior parece chegar à irradiação da luz, conhece o amor, dá-se a doce domesticação de Paulo, é já assistente estagiário do porto e acaba por descobrir, graças à mulher, que era filho de sangue do capitão Antero Gomes Ferreira. Não fica contente com aqueles pais que nunca se interessaram pelo seu sofrimento. E decidiu nunca mais voltar a falar com os pais. É uma irradiação de luz feita de trevas. Romance singular, está comprovado, percebe-se este elogio da dureza, é memória que não se apaga, talvez por isso a catarse da escrita, de indiscutível qualidade.

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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24538: Notas de leitura (1604): Uma nova biografia de Amílcar Cabral, de Peter Karibe Mendy (Mário Beja Santos)

7 comentários:

Anónimo disse...

Mário Beja Santos,

Resumes muito bem o livro que li há já alguns anos. Foi, que me lembre, a 1ª vez que vi escrito num livro a verdadeira dureza da Guerra que travámos.
O Rui Azevedo Teixeira não teve papas na língua, escreveu o que viu.

V. Briote

Valdemar Silva disse...

E extraordinário, ou calhando nem tanto, como a bala atravessa outra bala e não faz explodir a pólvora do respectivo cartuxo.

Valdemar Queiroz

José Botelho Colaço disse...

Valdemar eu vi quando a g3 encrava por levar um tiro no carregador resposta do dono da g3 encravada olha os cabrôes já me fod... a arma.

Anónimo disse...


Jaime Neves por Rui Azevedo Teixeira
Homem de guerra e boémio
de Rui de Azevedo Teixeira
editor: Bertrand Editora, novembro de 2012

https://www.wook.pt/livro/jaime-neves-por-rui-azevedo-teixeira-rui-de-azevedo-teixeira/14420834

"No dia 13 de julho de 1995, é concedido pelo Presidente da República Mário Alberto Nobre Lopes Soares ao coronel de infantaria comando Jaime Alberto Gonçalves das Neves a mais alta condecoração portuguesa. É a imensa notícia que o Tigre esperava há muito. Há muito já que tinha direito à distinção suprema. Desde esse dia, Jaime Neves é membro oficial da aristocracia da coragem portuguesa. Como pouquíssimos outros, entre eles Alpoím Calvão, Abreu Cardoso ou Lobato Faria, pode ostentar o grau de Grande-Oficial com palma da Ordem Militar da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito, cujo texto legislativo fundador é de Almeida Garrett. Para a máxima distinção oficial da Nação, as razões apontadas no texto de Soares, através de cinco considerandos, são: a "brilhante e valorosa carreira militar" durante a qual "prestou altos serviços às Forças Armadas e à Pátria, marcados pelo heroísmo, abnegação, altruísmo e notável espírito de decisão"; a ação na Guerra de África, onde "no comando de tropas em campanha revelou invulgares qualidades de chefia, espírito de missão, coragem e sangue frio em ações de alto risco debaixo de fogo"; a atuação em Portugal onde "teve uma participação decisiva nas acções militares que conduziram à restauração da democracia em Portugal e à sua intransigente defesa, nomeadamente pela sua atuação em 16 de março de 1974, em 25 de abril de 1974, e em 25 de novembro de 1975"; e ainda devido às "qualidades de carácter, generosidade e frontalidade que são timbre da sua personalidade e o prestígio nacional que goza, quer entre os seus camaradas de armas, quer na sociedade civil". E porque a Torre e Espada é o corolário maior de outras importantes distinções oficiais, Jaime Alberto Gonçalves das Neves recebe-a também devido às "elevadas condecorações e significativos louvores" que foi colecionando ao longo da vida de profissional das armas... "

Valdemar Silva disse...

Colaço, que disparate o meu.
Claro que a pólvora do cartuxo só incendeia quando o fulminante da espoleta de percussão é
"mordido" pelo cão.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

José Botelho Colaço disse...

Valdemar: Por actos de heroísmo neste dia 03 de Agosto de 1964 foi louvado com a cruz de guerra de 2ª classe o soldado Dionisio da Conceição Paulo 939/63 da C. C557 não por o carregadr da G3 lhe ter salvo a vida mas por ele antes deste episódeo do tiro no carregador ter salvo a vida a um camarada quando pôs em risco a sua própria vida Ordem de Seviço nº 20 de 64 de 30 de Dezembrode 1964 CCFA. Abraço Colaço.

Valdemar Silva disse...

Colaço, por estes actos de heroísmo bem podíamos ter ficado dispensados.
Com certeza obrigar, mais de que uma década, toda uma juventude a ir para a guerra teria de haver heróis em combate e muitos deles mortos infelizmente.

Valdemar Queiroz