sábado, 12 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24551: Os nossos seres, saberes e lazeres (585): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (115): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Tive o dia por minha conta, foram mesmo saudades sem conto a serem satisfeitas, andarilhar por lugares e espaços familiares, a febre das compras e o sonho da pechincha, bisbilhotar boa arte africana, remexer em caixotes pejados de álbuns, traquitana de alguém cujos filhos e netos chamaram um quinquilheiro e venderam por atacado, desde o clister à caixa com os carrinhos de linhas, a correspondência, os álbuns de viagem, as louças da cozinha; e percorrer Marolles, os seus cantinhos típicos, ver as vitrinas das queijarias ou lojas de candeeiros ou até mesmo bazares onde se pode encontrar uma poltrona Napoleão III; deliciar-me com batata-frita (o que me remete para a saudade do fish and chips, aqui a batata é de gomos grossos e deve ser avinagrado), percorrer lojas de livros de segunda-mão, entrar num museu que me é igualmente familiar, sentar-me a beber um café pertos das Halles de Saint-Géry, foi bom enquanto durou, o melhor é descansar as pernas pois amanhã vamos até Antuérpia, ainda não sei, mas iremos percorrer a cidade por inteiro, isto depois de me maravilhar com o fantástico acervo do Museu de Belas Artes de Antuérpia, preparem-se.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (115):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (6)


Mário Beja Santos

O que prometi a mim próprio é-me devido, hoje Bruxelas está por minha conta, uma mistura de reminiscências, de passeios de andarilho, de encontrar um tesouro na feira da ladra, entrar em espaços que conheci há volta de 40 anos e de que nunca me desabituei.
É inevitável, primeiro a feira da ladra, viajo em estado de excitação no metro, será que hoje encontro um prato Companhia das Índias, um belo álbum de fotografias antigas, uma gravura, uma pintura a óleo? Entro neste espaço com imensas cautelas, quem viaja em low cost tem fatais limitações de bagagem, já lá vai o tempo em que entrei no avião com uma caixa com um belo candeeiro Arte Deco desmontado ou com um quadro de um metro por metro. Foi uma safra curiosa, a de hoje, encontrei um álbum deterioradíssimo com fotos de alguém que tirou estudos numa escola de administração na Flandres, se empregou em Bruxelas, imagens de convívio, depois de casamento, filharada em férias. Regateei até deixar o vendedor em fúria, paguei 3€, desfiz o álbum, ainda tenho centenas de fotografias metidas em subscritos, quem sabe se não tenho aqui ideia para um romance? Sentado num banco, fui retirando as fotografias do álbum apodrecido e chamou-me a atenção de que as páginas dedicadas à guerra já não tinham fotografias, será que eram comprometedoras? Entretanto, comprei um calhamaço de Piero della Francesca, ainda com capa de plástico, uma pechincha que fez com que andasse com a mochila às costas bem ajoujada durante o dia, mas foi compensador. Regalado, invisto pelas ruas de Marolles, nunca me canso.

Três imagens do meu amanhecer na feira da ladra.
Marolles presta-se a surpresas. Daquilo que li quando todo este centro histórico foi profundamente alterado para abobadar o rio e criar a circulação ferroviária entre Bruxelles Central e Bruxelles Midi fazendo desaparecer os bairros ainda de feição medieval, ficou uma grande superfície ocupada por edifícios do século XIX e espaços a descer para os grandes boulevards que foram posteriormente urbanizados. Esta é uma das surpresas da fronteira de Marolles, trata-se de um lugar, pelo que me foi dado a observar, onde vivem muitos emigrantes, mulheres a trajar à muçulmana, africanos e seus descendentes, os homens e os rapazes conversam em árabe. Não acredito que existe uma cidade mais multiétnica que Bruxelas.
Aqui sim, é o Marolles típico, rue Haute, gostei desta surpresa, ver ao fundo o poderoso torreão do Palácio da Justiça, conheço-o sempre em obras, aquela cúpula dourada brilha ao sol.
Observo que há cuidados em Marolles na criação de espaços de convívio, outrora era um largo estéril, agora tem equipamento que assegura convivência, o leitor pode ver ao fundo o elevador que permite viajar até ao nível do Palácio da Justiça e da roda gigante.
Hergé e o seu Tintin são hoje uma frutuosa empresa e o ícone sagrado tem lugar de honra no Centro de Banda Desenhada, espero na próxima viagem fazer-vos o relato. E há heterodoxos, artistas que exploram atrevidamente a vida sexual de Tintin, como aqui se mostra num estabelecimento comercial em Marolles.
Chegou a hora de cometer um delito nutricional, Bruxelas caracteriza-se por uma excelente culinária, onde pontifica o mexilhão e mais popularmente a batata-frita. Meti-me numa bicha, quero um pacote médio com bastante maionese, e vou bebericar conjuntamente com uma cerveja trapista, o café fica para depois. Dizia-me o meu saudoso amigo Dr. Emílio Peres, autor de uma campanha de educação alimentar como jamais se repetiu em Portugal, que é tolerável prevaricar muito de vez em quando; e confesso que estas batatinhas (muito de vez em quando) são um regalo, tal como os pralinês, inesquecíveis, um perfeito atentado a quem como eu tem peso volumoso. Amesendado, vou fazer uma visita de médico ao Museu Real de Belas Artes e História de Bruxelas, é só subir o Grand Sablon.
Escultura de um morto pelo grisu, de Constantin Meunier. O grisu é uma das formas de carbono fóssil, distingue-se do gás natural pela sua composição e formação, sendo composto com mais de 90% de metano, é gás invisível e inodoro que se liberta do carvão.
Pintura de Constant Montald, A Barca do Ideal, Montald foi um dos grandes pontífices do simbolismo belga, venho aqui referenciá-lo por esta e pela pintura seguinte, não conheço melhor no âmbito desta corrente artística.
A Fonte da Inspiração, quadro de Constant Montald
Pormenor do grande átrio do Museu Real de Belas Artes e História, Bruxelas. É bem curioso comparar imagens dos museus desta época, há gritantes semelhanças, dispunham de um formato quase de templo ou de palácio de grande reverência.
Vim matar saudades à Galeria Bortier, houve tempos em que aqui comprava livros quando ia tomar o comboio para o aeroporto, maravilhava-me com livros antigos, mapas, havia mesmo um espaço em que se vendia originais de Magritte, cometi a enorme asneira de não ter aberto os cordões à bolsa e ter comprado três cartazes publicitários deste génio do surrealismo. Vejo que a galeria já viveu dias melhores, a explicação é sempre a mesma, houve o covid e o interesse pelo livro diminuiu, verdade ou mentira, esta galeria, para mim mítica, e que me fala tanto dos anos passados, caminha para o ocaso.
Obelisco do antigo mercado do peixe das Halles de Saint-Géry. Quando me aboletei num hotel chunga que tinha nome pomposo, Hôtel George V, a algumas centenas de metros daqui, umas boas décadas atrás, este espaço que era de mercado permaneceu um longo tempo em obras, e quando reabriu foi um sucesso imediato, é hoje um local de convívio, tem exposições permanentes promovidas pelas autarquia, foi aqui que me vim recolher para desfazer o álbum apodrecido, havia ali perto um casal de namorados que me olhava interrogativamente, o que é que aquele doido estava a fazer, talvez a rasgar as recordações da família.
Exterior das Halles de Saint-Géry, os belgas não perdem a oportunidade de cavaquear em dias de sol
Um dos meus templos de visita obrigatória, o alfarrabista Pêle-Mêle Bruxelas, no Bd. Maurice Lemonnier n.º 59
Uma pintura mural a caminho da Grand Place
Pormenor de edifícios da Grand Place representativos de corporações
Voltei a casa, deve ser da primavera cálida, as cerejeiras ornamentais começaram a dar flor, dentro de um mês estas ruas da Cité du Logis, em Watermael-Boitsfort enchem-se de cor, anunciam o verão. Venho cheio de fome, feliz pelos resultados deste dia e já a antever as alegrias de amanhã, vamos em grupo até Antuérpia, o Museu de Belas Artes que esteve em obras um ror de anos, está à nossa espera. E aviso-vos desde já que foi um passeio de arromba.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24535: Os nossos seres, saberes e lazeres (584): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (114): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (5) (Mário Beja Santos)

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