sábado, 4 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26346: Os nossos seres, saberes e lazeres (661): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (186): O que é próprio do traço vivo é ser justo e trair. Trai o que desconhece (Júlio Pomar dixit) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Janeiro de 2025:

Queridos amigos,
Júlio Pomar entrou na minha vida quando me fiz sócio da Cooperativa Gravura, pagava-se sete escudos e meio por trimestre, no fim do primeiro ano recebi uma gravura de Júlio Pomar, Mulher Reclinada; uma das prendas de casamento que recebi do meu padrinho de batismo foi uma gravura dele premiada pela Gulbenkian em 1961, e tenho procurado conhecer tudo quanto ele concebeu em azulejo, cerâmica, desenho, pintura e outros materiais. Há dias, visitando um antigo administrador do Metropolitano de Lisboa, um homem que vai a caminho dos 99 anos, levamos 50 anos de amizade, falámos deste trabalho inspirador de Pomar no Alto dos Moinhos, da serigrafia do Cupido, uma prenda com que me regalou. Vim a esta exposição com uma enorme tentativa, do princípio ao fim badalava-me uma frase de um outro grande artista plástico que me privilegiou com a sua amizade, Rolando Sá Nogueira: "O mais tormentoso, onde tudo arrisco pelo que se vai seguir é o primeiro traço do lápis, o espaço que ele vai ocupar, a forma que vai criar, em segundos eu terei a oportunidade de saber se naquele momento a inspiração está do meu lado ou se houve uma tentativa frustrada, inconsequente." E lembrei-me, igualmente, das observações que João Castel-Branco Pereira publicou da arte de Pomar na estação de metropolitano de Alto dos Moinhos, o génio plantado em azulejo. E como se escreve no folheto oferecido ao visitante desta soberba exposição, o próprio depoimento de Pomar: "Paredes ao alcance de mão vândala excluem toda a hipótese de pintura, dama de pele sensível e carnes frágeis. O revestimento cerâmico aparece naturalmente como solução ótima. O desenho linear pratiquei-o sempre e neste se tem acentuado ao longo dos anos, o cursivo da escrita." Por favor, dentro das vossas possibilidades, não percam esta exposição!

Um abraço do
Mário


Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (661):
O que é próprio do traço vivo é ser justo e trair. Trai o que desconhece (Júlio Pomar dixit)

Mário Beja Santos

O Atelier-Museu Júlio Pomar (Rua do Vale, 7, descendo a Calçada do Combro, ao fundo, à direita, como se fôssemos para a Igreja de Nossa Senhora das Mercês, antiga Igreja de Jesus, ao lado da Escola Secundária Passos Manuel) tem uma exposição patente até 20 de fevereiro intitulada De um traço, trai, uma exposição que mostra uma alargada seleção de desenhos que Pomar realizou sobre papel vegetal. De diferentes formatos, estes desenhos serviram de suporte, de estudo ou de esboço a composições realizadas em projetos de arte para o espaço público: estação de metropolitano Alto dos Moinhos, estação ferroviária de Corroios, Tribunal da Moita, espaço exterior da Fundação Champalimaud, Circo de Brasília, entre outros. Como se pode ler no folheto disponibilizado ao visitante, Pomar “Parte de um processo de estudo para chegar às composições finais, estes desenhos reclamam, ao mesmo tempo, uma autonomia face às mesmas. Eles revelam qualidades próprias, intensidades e pontos de vista irrepetíveis em cada registo. Com eles, revelam-se caminhos, aventuras em que o pinto se lançou e metodologias, como por exemplo os grandes formatos e as sobreposições, permitidas pelas folhas de papel vegetal (…) Os desenhos de Júlio Pomar surgem da rapidez do traço e essa rapidez resulta, certamente, de uma prática continuada e diária do desenho. Significa que rapidez e intuição estão, no caso de Júlio Pomar, radicadas em treino profundo, duradouro, consistente. E, se de uma assentada o traço sai, outras vezes haverá em que a posição ou a intensidade do traço é corrigida; o traço é refeito.” Haverá mais comentários durante a viagem, o melhor é mesmo entrar na exposição, nesta esplêndida atmosfera que é obra de um amigo de Pomar, Siza Vieira.

Desenhos para o Julgamento de Salomão, sobre papel vegetal montado em tela, 1993, obra destinada ao Tribunal da Moita
Desenho exposto no chão, para uma obra delineada para uma infraestrutura
Estudo para o painel de azulejos do Gran Circo Lar de Brasília (removido em 1999)
Pormenor do Atelier-Museu, conceção de Siza Vieira
Retrato de Dante Alighieri, acrílico e pastel, reproduzido em A Divina Comédia, tradução de Vasco da Graça Moura, 2006
Outro pormenor do Atelier-Museu Júlio Pomar
Desenhos de Almada Negreiros. Fotografia, à direita, da estação do metropolitano Alto dos Moinhos
Um dos muitos desenhos que Júlio Pomar fez de Fernando Pessoa
Retrato de António Champalimaud, carvão sobre papel vegetal, 2016
Estudo para os painéis de azulejo da estação de metropolitano Alto dos Moinhos, 1983
Desenhos de animais elaborados para a estação do metropolitano Alto dos Moinhos (camelos, elefantes e gaivota)
Bocage, estudo para os painéis de azulejo da estação de metropolitano Alto dos Moinhos, 1983
Esculturas metálicas baseadas no Ciclo do Tigre, à porta do Atelier-Museu Júlio Pomar

O visitante tem à sua disposição a visualização de um filme em que Pomar tece comentários à exposição que fizera na Gulbenkian em 1984, isto a propósito do seu trabalho para o Metropolitano de Lisboa. Retenha-se um desses comentários: “ver o que está em cada traço, que se sucede, se sobrepõe, eliminando ou ajuntando dentro de uma economia que eu gostaria que fosse condição do poder da expressão. Um mínimo de traços, um mínimo de elementos em jogo, é para mim a condição do máximo desejado da especificidade.” Pomar dirá noutro contexto: “Eu só poderia, e só isso me tentava, fazer o que até aqui tenho feito – soltar imagens. Suponho que, também, era isso que de mim se esperava.”
Voltando ao folheto que se distribui aos visitantes, uma outra anotação, como ponto final a esta visita: “Esta exposição procura mostrar o processo desenvolvido por Júlio Pomar até chegar a obra final, que hoje habita o espaço público: o seu traço limpo e espontâneo é, afinal, decorrente de várias tentativas para cercar cada figura, de movimentos de aproximação e distância em relação ao papel e ao plano onde está assente.”
Exposição imperdível, tenho para mim que Júlio Pomar foi o mais talentoso dos nossos artistas plásticos destes dois séculos que me foi dado viver.

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Nota do editor

Último post da série de 28 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26321: Os nossos seres, saberes e lazeres (660): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (185): From Southeast to the North of England; and back to London (5) (Mário Beja Santos)

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