segunda-feira, 11 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P103: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)

Versão, modificada, de um texto que publiquei originalmente em O Jornal, em 16 de Abril de 1981 (A tropa-macaca e a elite da tropa), no dossiê Memória da guerra colonial.


Furriel miliciano numa companhia africana (a CCAÇ 12, sediada em Bambadinca, na Zona Leste da Guiné), conheci de relativamente de perto as misérias e as grandezas da 1.ª Companhia de Comandos Africanos. 

Privei inclusive, embora ocasionalmente, com algumas das figuras que o Carlos França retratou do seu artigo “Arame farpado em tempo de massacre”, publicado em O Jornal, nº 319, de 10 de Abril de 1981.

Tal como a tropa-macaca (termo depreciativo dado às unidades do exército constituídas por praças do recrutamento local e por quadros de origem metropolitana tal como a CCAÇ 12, e outras que também já existiam, e que têm sido aqui evocadas no nosso blogue: a CAÇ 3, do ex-Alferes miliciano Lopes, a CCAÇ 13, do ex-furriel miliciano Fortunato, a CART 11 [depois CCAÇ 11] do ex-furriel miliciano Monteiro, a CCAÇ 14...), os comandos africanos faziam parte da nova força africana que era então a menina bonita de Spínola e da sua entourage.

Havia porém alguns diferenças substanciais entre a 1ª Companhia de Comandos Africanos (CCA) e as restantes unidades, incluindo os Pelotões de Caçadores Nativos (conheci alguns: estacionados em Bambadinca, Fá Mandinga, Missirá, estes dois últimos, comandandos respectivamente pelos ex-alferes milicianos Cabral, o 53, e Beja Santos, o 52): os comandos africanos eram uma tropa de elite, bem paga, bem treinada e bem armada, com quadros operacionais exclusivamente africanos, desde os oficiais aos sargentos.

Os muchachos de Pancho Villa

O primeiro contacto que tive com os futuros comandos africanos foi aquando da sua chegada ao Xime, vindos de Bissau, em LDG da Marinha. O meu grupo de combate havia sido escalado para os escoltar no percurso até Fá Mandinga – a mesma povoação onde, por ironia, fora a antiga estação agronómica onde, se dizia, trabalhara o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral (o que  não correspondeu  à verdade factual).

Em , situada junto ao Rio Geba, entre Bambadinca e Bafatá, ficariam instalados os futuros comandos africanos, para efeitos de instrução da especialidade e treino operacional. Isto passa-se em princípios de Fevereiro de 1970, já não posso precisar de cor.

Foi então que tive a oportunidade de conhecer o instrutor da 1ª CCA, o capitão-comando Barbosa Henriques. É a ele, muito provavelmente, que se refere o Carlos França, ao evocar a figura do capitão pretoriano, arrancado às páginas de clássicos romances de guerra como os de Jean Lartéguy. Julgo que ele já tinha feito uma comissão na Guiné, à frente de umas das companhia de comandos então existentes.

No meio da bandalheira geral que já era então o nosso exército, corroído pelo mal dos milicianos e o cansaço dos oficiais e sargentos do quadro, o capitão-comando Barbosa  Henriques era, para mim, a personificação do profissionalismo militar, cada vez mais raro naquelas paragens: um tipo espartano, frio, calculista, distante, seco de palavras mas formalmente correcto… Imaginava-o programado até ao mais ínfimo dos gestos, saído da linha de montagem de fábricas de militares como as de West Point!

A ele se atribuía, justa ou injustamente, a afirmação tão sintomática quanto estereotipada de que uma “instrução de comandos sem uma boa meia-dúzia de mortos não era instrução de comandos nem era nada".

E no entanto por detrás daquela máscara impassível de duro e daquele comportamento quase robotizado que me causava simultaneamente atracção e repulsa, havia um homem de carne e osso, tímido e sentimental, tão só como todos nós, capaz de deixar trair as suas emoções,e de falar de outras coisas bem mais comezinhas e menos metafísicas do que a arte da guerra. Ou não fora ele de origem cabo-verdiana, se não me engano...

Chegámos a conversar, em grupo, com alguma descontracção e civilidade, entre dois copos de uísque e o All you need is love dos Beatles, como música de fundo, no bar do quartel de Fá Mandinga, enquanto lá fora os seus rapazes, sedentos de aventura e de emoções fortes, preparavam um festival de fogo de artifício como recepção ao periquito do alferes miliciano médico que acabava de chegar à companhia (Um luxo, diga-se, de passagem já que no TO da Guiné o que era normal era haver um médico por batalhão, ou seja, um médico, para no mínimo quatro companhias, ou sejam, 600 homens; diga-se de passagem que nunca convivi com o médico dos comandos, nem me lembro do seu nome).

O comandante operacional, esse, era o lendário capitão graduado comando João Bacar Jaló, um torre e espada, ex-alferes de 2^linha, comandante de miílicias em Catió, milícia, de etnia fula, que viria a morrer em combate, mais tarde, já depois de Conacri. Também me lembro do Zacarias Saeigh, o 2º comandante (creio que juntamente com o Januário Lopes, se não erro), Era um dos tipos mais evoluídos e correctos no convívo com os outros militares. Era libanês, ou de origem libanesa.

Não creio que tenha trocado com o João Bacar Jaló mais do que meia dúzia de palavras, em português. Mas estou a vê-lo, a entrar na parada do quartel de Bambadinca, ao volante de um burrinho (Unimog 411), à revelia de qualquer Regulamento de Disciplina Militar (RDM), à frente dos seus garbosos comandos, fabricados em série, denotando forte espírito de corpo e moral elevada.

Alguns de nós chamávamos-lhes, com uma certa ironia, os muchachos de Pancho Villa por andarem armados até aos dentes e com fitas de metralhadora a tiracolo, além de gostarem de se fazer anunciar com enervantes rajadas de Kalash para o ar… Nas barbas do comandante do BART 2917 e do seu oficialato.

- Comando africano é aquela máquina – diziam eles, pavoneando-se nas tabancas, de de Kalash na mão, impecáveis no seu camuflado a que a boina e o lenço vermelhos, além do crachá, davam o traço de distinção dos grandes predadores.

- Comando tem manga de mania, nô furriè – comentavam, não sem uma certa ponta de inveja, alguns dos meus soldados fulas, praças de 2ª classe, mal pagos, mal alimentados e já duramente marcados pela guerra…

Este comportamento sadobelicista não deixaria de ser, entretanto, fatal para alguns deles: estou-me a recordar, por exemplo, do primeiro dos seus graduados, um furriel, morto em combate em 18 de Junho de 1970, na antiga estrada da Ponta do Inglês, na região do Xime. Vi os restos do cadáver na capela de Bambadinca. Tinha sido literalmente serrado a meio como quem corta um tronco de árvore com cordão detonante: ao pisar uma mina antipessoal, as numerosas granadas de mão que levava à cintura haviam rebentado por simpatia...


Uloma, caçador de cabeças


Desconheço a origem dos comandos africanos, bem como os critérios utilizados no seu recrutamento e selecção. De qualquer modo, contrariamente às companhias de caçadores africanas como a CAÇ 3, 11, 12, 13 e 14 cuja composição tendia a obedecer a razões de natureza etno-luinguística geográfica, os elementos da 1ª CCA eram (ou pareciam-me ser) etnica e  socialmente heterogéneos.

Os seus quadros revelavam, inevitavelmente, um baixo nível cultural, embora falassem razoavelemente o português. Um ou outro desses quadros tinha sido educado nas Missões Católicas: caso do tenente graduado comando Januário, de etnia papel, que mais tarde irá jogar um papel determinante, por omissão, na Op Mar Verde, tendo sido considerado desertor pelas NT. Também havia alguns cabo-verdianos ou filhos de cabo-verdianos, segundo creio.

Julgo que as praças eram fracamente escolarizadas. Uma boa parte eram fulas, mas havia em contrapartida bastantes elementos já destribalizados, ou em perda de identidade cultural por via da assimilação, alguns podendo ter sido recrutados entre os descamisados, o lumpen-proletariado que vegetava pelas ruas de Bissau e pelas tabancas do Pilão. Seriam precisos mais elementos para uma boa caracterização sociodemográfica da 1ª Companhia de Comandos Africanos [mais tarde Batalhão, a 3 companhias].

Um dos comandos africanos mais conhecidos em Bambadinca era o furriel Uloma, filho de régulo, da zona de Varela, e um dos raros felupes que vestiam a farda do exército português, segundo se dizia no meu tempo. Uloma era uma espécie de coqueluche ou mascote da companhia, não só pelo seu aspecto físico (era um tipo entroncado, corpolento)  como sobretudo pelos seus estranhos rituais de guerra e pela sua macabra colecção de cabeças cortadas ao inimigo, conservadas em álcool (trinta e duas, ao que parece, segundo os cálculos do Carlos França, que terá privado com ele, em Fá).

- Essas práticas culturais de bom selvagem teriam a ver com as reminiscências do canibalismo ritual entre os felupes – como me tentava, em vão, explicar, em jeito de antropólogo, com uma garrafa de uísque na mão, o meu amigo Cabral, com fama de poeta, antimilitarista, filho de militar de carreira, alferes miliciano, tão dilacerado como eu pela brutal irracionalidade daquela guerra, e que privava como os comandos africanos na sua qualidade de comandante do Pelotão de Caçadores Nativos local, o Pel Caç Nat 63.

Para mim, não havia dúvidas: essas práticas, não sendo obviamente encorajadas, eram pelo menos toleradas pelos responsáveis da 1ª CCA e, no mínimo, pelas autoridades militares da zona leste (Bafatá) e do sector L1 (Bambadinca). Havia quem encolhesse os ombros, alegando que os comandos africanos dependiam directamente do Com-Chefe e, como tal, tinham carta branca.

Recordo certa vez que o Uloma  se deixou fotografar, como um verdadeiro predador, exibicionista, imponente, triunfante, com um dos seus sangrentos e macabros troféus de caça, no regresso de um raide a território IN, a norte do Rio Geba, no regulado do Cuor. (Julgo que esta cena se passou no final de um operação de vários dias em que a 1ª CCA actuou na região a norte do Enxalé, de 30 de Outubro a 7 de Novembro de 1970, às ordens do BART 2917; de qualquer modo, foi antes da invasão de Conacri).

À falta de caça grossa, dizia-se, tinha atirado sobre um pobre camponês, porventura balanta ou biafada, que cultivava, desarmado, o seu arroz na bolanha… Cortada a cabeça, rente ao pescoço, de um só golpe de catana, atara-lhe um pano branco que ligava a boca ao esófago, à laia de pega…

O nosso 1º cabo Encarnação, fotógrafo amador por necessidade e jeito para a biscatagem (batia e revelava, num estúdio fotográfico improvisado as chapas que os tugas mandavam para a família na Metrópole, as namoradas e os amigos, como certificado de que continuavam vivos, inteiros e de boa saúde), aproveitou o boneco do Uloma segurando a cabeça, pela carapinha, de um terrível e bravo inimigo, para fazer o negócio da sua vida…

De forma que muitas dezenas dessas macabras fotografias foram vendidas rápida mas discretamente em Bambadinca, como postal ilustrado de um ronco típico das terras da Guiné, até que a coisa chegou aos ouvidos do tenente-coronel, comandante do BART 2917...

Este, claro, alarmado com a eventualidade de algum escândalo (estava-se no auge da ideologia e da política da Guiné Melhor, da acção psicossocial, do spinolismo…) e, pior ainda, receoso da porrada mais que certa do Com-Chefe se a coisa não fosse abafada a tempo, mandou recolher de imediato as fotografias em circulação, confiscar e destruir as restantes cópias, além dos negativos… Mas algumas chegaram à Metrópole...

Moral da história: o nosso fotógrafo encartado, o pobre do nosso cabo Encarnação, como se não bastassem já as perdas e danos sofridos, esteve à beira de levar uma porrada…

Quanto ao Uloma,  teve um fim triste, às mãos dos vencedores, já depois da independência... Está na triste lista das vítimas das execuções sumárias levadas a cabo pelas novas autoridades da Guíné-Bissau.

O horror destas cenas de guerra, não só pela sua gratuitidade como também pela hipocrisia das autoridades militares de Bambadinca, não deixaram de impressionar alguns de nós, milicianos, mais informados, civilizados e/ou politizados, mas ninguém mexeu uma palha para as denunciar ou simplesmente divulgar. Eu próprio limitei-me a tomar algumas notas para o Diário de um tuga.


O filho da puta do tenente Januário

Nós não éramos a elite da tropa nem sequer a fina flor da Nação (como nos repetia ad nauseam o garboso tenente de Tavira que foi meu comandante de companhia, o tenente Esteves)... Mas quantos de nós, milicianos, não terão consciente ou inconscientemenete desejado sê-lo, ao admirar com volúpia e ciúme os brinquedos, os roncos, apanhados ao IN pelos páras, pelos comandos ou pelos fuzos ?

Estes poderiam ser algumas notas para outros tantos capítulos da história da 1ª CCA. A sua participação na temerária e controversa invasão anfíbia de Conacri em 22 de novembro de 1970 é, só por si, um outro capítulo, embora já relativamente conhecido depois das revelações feitas em 1976 pelo cérebro e comandante operacional da Op Mar Verde, o fuzileiro Alpoim Galvão.

Eu próprio vi-os partir, aos comandos africanos (só mais tarde saberia para onde…) e vi-os regressar, carregados de roncos, com o ar triunfal dos guerreiros de antigamente…

Lembro-me ainda de um deles que trazia um trombone de varas, pilhado num cabaré de Conacri que fora destruído à granada de mão e que não me consta que fizesse parte dos objectivos político-militares a atingir… Depressa deram à língua, contando histórias incríveis de perigos e de heroísmo, ao mesmo tempo que faziam negócio com armas automáticas que haviam trazido de Conacri como souvenirs. Na altura chegaram a oferecer-nos espingardas automáticas Kalash, novinhas em folha, em Bambadinca e Bafatá, por 500 pesos...

Alpoim Galvão, no seu livro (De Conakry ao MDLP. Lisboa: Editorial Intervenção. 1976), fala em 500 baixas por parte do IN. Rádio-Conacri, por seu turno, fazendo balanço dos trágicos acontecimentos, estimava-as em duas ou três mil, entre civis e militares. Entretanto, pudemos acompanhar, em Bambadinca, através daquela emissora os interrogatórios, em francês, do tenente graduado comando João Januário Lopes e dos seus homens pela comissão de inquérito da ONU.

As informações reveladas vieram confirmar o que já sabíamos (ou suspeitávamos ) sobre o grau do nosso envolvimento nesta operação que visava, claramente, o derrube do regime de Sekou Touré e a liquidação dos principais dirigentes do PAIGC, além da libertação dos soldados portugueses detidos em Conacri, alguns há vários anos, incluindo dos camaradas da CART 1690, do nosso amigo Marques Lopes, apanhados à unha em Catacunda no ataque à aquele destacamento do subsector de Geba, em 11 de Abril de 1968.

O "estranho e inexplicável rebate de consciência" do supervisor da 1ª CCA (o então major Leal de Almeida) que inicialmente se teria recusado a participar na Op Mar Verde; o "momento de hesitação" do capitão graduado comando e herói Bacar Jaló; e, mais tarde, a deserção do "filho da puta" (sic) do tenente graduado Januário e dos seus homens, além da "forma bizarra" como actuou no terreno a equipa do alferes graduado Jamanca (as expressões entre aspas não são minhas, mas do comandante Alpoim Galvão) não deixam, entretanto, de pôr em causa a tão proclamada eficácia, eficiência, disciplina e espírito de corpo dos comandos, sendo factos reveladores desta verdade tão simples e comezinha: mesmo os profissionais da guerra, mesmo a tropa de elite, por muito máquinas que sejam, não deixam de ser tão livres, responsáveis, vulneráveis e… até mortais como os outros homens, civis ou militares.

Post scriptum > Presto aqui as minhas homenagens aos comandos africanos, que eu escoltei do Xime até Fá Mandinga, que eu vi crescer e alguns morrer, com quem convi esporadicamente e que nós abandonámos miseravelmente depois do 25 de Abril (não dei se estou a ser justo para como homens como o Carlos Fabião, o Almeida Bruno, o Folques ou o Carlos Matos Gomes, brilhantes e corajosos oficiais portugueses que os enquadraram ou comandaram)... E sobretudo àqueles que foram perseguidos, presos, torturados e fuzilados no seu país, na sua terra, sem qualquer acusação ou julgamento. Esta página do pós-guerra colonial tenho pena que tenha sido escrita pelo (ou em nome do) PAIGC... Não digo: envergonho-me, porque eu nunca pertenci ao PAIGC (nem, aliás, a um nenhum partido político)... Mas confesso que na época (Guiné, 1969/71) tinha alguma simpatia pela figuar do Amílcar Cabral.


Páginas sobre a 1ª Companhia de Comandos Africanos > Links


Comandos: tropa de elite > Companhias: Guiné> 1ª Companhia de Comandos Africana

Associação de Comandos > Historial dos comandos: efemérides

E depois do adeus... O massacre dos comandos negros do Exército Português, por Hugo Gonçalves

João Paulo Borges Coelho (2003) > Da violência colonial ordenada à ordem pós-colonial violenta. Lusotopie.2003: 173-195


Vida e morre da 1ª Companhia de Comandos Africanos (CCA):


9 de Julho de 1969 - Início da organização da companhia, em Fá Mandinga, formada exclusivamente por naturais da Guiné e ecom base em anteriores grupos de comandos já existentes nos batalhões"

6 de Fevereiro de 1970 - Início da sua instrução

26 de Abril de 1970 - Cerimónia de juramento de bandeira em Bissau, na presença do COM-CHEFE.

21 de Junho / 15 de Julho de 1970 - Treino operacional na região de Bajocunda. No final é colocada em Fá Mandinga, com a missãod e interevenção e reserva do COM-CHEFE.

30 de Outubro a 7 de Novmebro de 1970 - Operação a norte da região do Enxalé, na zona de acção do BaRT 2917 (Bambadinca, 1970/72).

21/22 de Novembro de 1970 - Toma parte na Op Mar verde, sob o comando de Alpoim Galvão (invasão da Conacri). Perde um dos seus grupos de combate (comandando pelo tenente graduado Januário).

Princípios de Dezembro de 1970 / Finais de Janeiro de 1971 - Três pelotões em refeorço temporário das guarnições fronteiriças de Gandembel e Guileje.

Finais de Julho de 1971 - Segue de Tite para Bolama, para um curto período de descanso e recuperação.

Meados de Agosto de 1971 - É colocada em Brá (Bissau), nas instalações do futuro Batalhão de Comandos. Continua a sua intensa actividade operacional, durante o resto do ano de 1971 e o ano de 1972, em conjunto com a 2ª Companhia de Comandos Africanos, entretanto formada. Penetra em santuários do IN que eram verdadeiros mitos no meu tempo, como por exemplo o Morés (20-24 de Dezembro de 1971; 7-12 de Fevereiro de 1972), o Choquemone (18-22 de Outubro de 1971), a região de Salancaur-Unal-Guileje (28 de Março a 8 de Abril de 1972)e outras.

2 de Novmebro de 1972 - É integrada no Batalhão de Comandos.

7 de Setembro de 1974 - A 1ª CCA é desactivada e extinta, bem como as restantes forças do Batalhão de Comandos.

Fonte: Comandos: tropa de elite > Companhias: Guiné> 1ª Companhia de Comandos Africana

domingo, 10 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P102: Op Mar Verde (invasão de Conacri) (4) (Carlos Fortunato)

Resposta do Carlos Fortunato, em mensagem enviada hoje ao Afonso Sousa (e que agora se divulga no blogue):

Amigo Afonso: Vou tentar responder, separando claramente aquilo que são os factos e aquilo que são especulações:

a) O objectivo principal era tomar o poder ou eram as missões a), b) e c) ?

O que me foi dito foi feito de forma informal, e apenas nos dias seguintes aos acontecimentos terem ocorridos, quer pelos comandos africanos que participaram na operação, quer pelos oficiais da companhia, quer pelo agente da Pide que dava apoio ao batalhão.

Não sei se foi formalmente definida a tomada do poder como objectivo principal, mas dada a sua importância e os meios envolvidos, parece que esse era o objectivo mais importante. Toda a gente se referia a este objectivo como o objectivo principal. O o futuro presidente seria um antigo sargento do exército de Sekou Touré (não me lembro do nome), o qual iria atravessar a fronteira na região da sua etnia, e mobilizar a mesma para dar apoio à queda do regime.

A tomada da rádio era um objectivo fundamental para a tomada do poder, dado que o exército era principalmente constituido por forças não regulares(milícias), que não deveriam ser alertadas até a situação estar controlada.

De igual modo era fundamental para o controlo do poder a destrução dos Migs e de Sekou Touré. O agente da Pide disse-me inclusive que existiam espiões da Pide em Conacri, o que se confirmou mais tarde com a prisão e morte de um alemão, acusado de
espionagem.

b) A 1ª fase da invasão não foi bem sucedida ? Não é o que consta.
Desconheço totalmente o que se passou na 1ª fase da missão.

c) Concretamente qual era a missão da sua companhia ?
c1) Não esteve em Conacri ?
d) Que instruções ou justificação receberam para não actuar ? (lembra-se ?)


A minha companhia estava em Bissorã, era a CCAÇ 13, constituida praticamente apenas por africanos, tinha até um oficial e um cabo africano, e fomos chamados para assinar um documento em como não pertencíamos ao exército português, que iriamos seguir para Bissau, que não precisavamos de levar armamento e que iríamos fazer uma operação numa ilha no sul da Guiné controlada pelo PAIGC, onde faríamos um desembarque em lancha.

Seguimos para Bissau levando apenas as G3, pois poderia haver um ataque pelo caminho. Chegados a Bissau foi-nos dito que não podiamos sair do aquartelamento montado com tendas e que a qualquer momento nos viriam de helicóptero, que nos levariam para uma ilha onde nos seria dado o armamento e que seguiriamos depois para a operação.

Em Bissau encontramos a CCAÇ 14, a outra companhia constituida apenas por africanos, eramos as únicas existente na Guiné, tirando a companhia de comandos e a de fuzileiros.

Só após a operação ter sido iniciada, é que nos foi dito que nós eramos a segunda vaga de assalto, que iríamos apoiar os comandos e os fuzileiros, mas que a missão mesma tinha sido abortada, pelo que iriamos regressar a Bissorã.

O quartel dos comandos estava localizado perto do nosso acampamento, mas tinham ordens para não falar com ninguém, contudo consegue-se sempre fazer algumas conversas.

e) Como clarifica o que diz o David Guimarães: "O armamento usado não foi o nosso", "houve grande confusão no momento", "a operação era para provar a nossa força e confundir os guineenses"? (se calhar, por alguma subjectividade, só ele poderia esclarecer)

Para mim a grande confusão foi quando mem mandaram assinar um papel em como não pertencia ao exército português. Isso deixou-me preocupado, porque suspeitei
que me iriam enviar em missão para um país estrangeiro, que me iriam abandonar com a maior das facilidades, que existiam muitas probabilidade de ser capturado, e que não poderia ter o estatuto de prisioneiro de guerra, e que seria considerado um mercenário e isso significava a morte se fosse apanhado. O facto de dizerem que não precisava de levar armamento reforçou essa ideia, pois seria russo.

Não houve qualquer contestação da nossa parte, nem comentários, mas todos ficaram intrigados, penso que alguns não tomaram consciência do acto. Penso que esta
não era uma situação que um soldado do exército regular estivesse à espera, e que perante todos os dados alguns poderiam recuar, pois a diferença de forças em confronto no terreno era tal, que dificilmente conseguiriamos uma vitória. Presumo que tudo isto deve ter passado pela cabeça dos elementos envolvidos, muito mais do que irem provocar um grave conflito internacional.

Na minha opinião a operação de tomada do poder estava condenada (mesmo que tivéssemos destruído os Migs). Assim o que fizemos foi realmente o melhor, e deixou
inclusive um sabor a vitória.

Se o sul da Guiné estava controlado pelo PAIGC, se tinhamos sido obrigados a retirar de Guilege, se a situação em Gadamael era crítica, se nunca tinhamos conseguido vencer as forças do PAIGC sedeadas na Guiné-Conacri, como seria possível vencer essas forças, mais as forças da Guiné-Conacri, quando os muitos milhares de milícias nos caissem em cima, com uma companhia de comandos, outra de fuzileiros e mais duas de forças operacionais, sem outras forças de reserva, pois apenas devíamos envolver soldados africanos?

f) O grupo de assalto que deveria tomar a rádio, comandado por um alferes da Guiné, diz-se que se desorientou e ficou pregado no terreno. Não estaria também ele a pensar em desertar ?

A história dos comandos africanos que lá foram, é que foi esse grupo que desertou, mas, no texto do Saturnino Monteiro, "Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa» (Vol.VIII), diz-se que foi parte do grupo de assalto ao aeroporto, toda a gente diz que foi apenas o oficial que desertou. Alguns comandos dizem que os viram quando estavam a embarcar no regresso.

Não acredito que os soldados desertassem, pelo que conheço da sua mentalidade, e porque já combatiam há muitos anos, eram todos veteranos recrutados agora para os comandos, pelo que me parece possivel apenas o oficial ter desertado (a informação era que tinha terminado o curso de comandos e ido para a Guiné). Mas não percebo porque não enviaram alguém para controlar essa situação, e muito menos porque não foi
controlado, fazendo esse grupo parte de um grupo maior que iria assaltar o aeroporto.
Tudo muito confuso.

g) Confirma que o aeroporto, pese embora a fuga do tenente, chegou a ser tomado pelo capitão paraquedista Lopes Morais ?

Foi dito que sim pelos comandos que participaram na operação, e todos os relatos que conheço afirmam isso.

h) Acha que as 3 coincidências que refere indiciam que a operação terá sido marcada pela perda (prévia) do seu secretismo ?

Essa teoria é minha, digamos que é a minha teoria da conspiração, pois com tantos oficiais comunistas existentes nas forças armadas, não me custa a acreditar que os russos e os cubanos possuíssem acesso à descodificção das nossas transmissões, e que
soubessem o que se passava, tendo optado por nos deixar avançar, para nos esmagar depois, pelo que asseguraram apenas o essencial, Migs, Presidente Sekou
Toure e Amílcar Cabral, provavelmente nem estes sabiam o que se ia passar.

A prisão do espião da Pide que estava em Conacri, vem reforçar a ideia de que existiam serviços secretos envolvidos, mas tudo isto é pura especulação.

Carlos Fortunato


2. Comentário do Afonso Sousa:

Sr. Carlos Fortunato: Que interessante depoimento o seu !

É assim que se fundamenta e comprova a história !

É necessário que ele seja associado (como testemunho) ao descritivo histórico de Saturnino Monteiro sobre a Última Batalha da Marinha Portuguesa. Haja alguém que se prontifique a fazê-lo !

Por aqui se constata como o historiador é, por vezes, impreciso e, de alguma forma, até distorce ou omite, por motivos por vezes óbvios, alguma realidade dos factos.
Por isso é que lhe deixei esta série de questões para procurar alguma clarificação. E o Carlos Fortunato fê-lo de uma forma muito minuciosa.

Sem dúvida que podemos considerar o seu depoimento como um documento de contributo histórico.

Um bem haja. Você é mais um homem da história, numa Guiné com muitos homens da história !

Um grande abraço.
Afonso Sousa

Guiné 63/74 - P101: Op Mar Verde (invasão de Conacri) (3) (Afonso Sousa)

Texto de Afonso Sousa (9 de Julho de 2005):

Ouvir um militar que fez parte desta aventura (assalto a Conacri) - Carlos Fortunato:

Operação "Mar Verde".

1ª fase: 17/Set/1969: missão: Obter um plano actualizado do porto de Conacri.

LFG, disfarçada (de forma a fazer crer que pertencia ao PAIGC) (Sagitário), comandada pelo Capitão-Tenente Camacho de Campos, onde seguiu o comandante operacional Alpoim Calvão). Missão cumprida com êxito.

2ª fase:22/Nov/1970: Missões:

a)- Destruir as 7 vedetas-torpedeiras (3 da Guiné C. e 4 do PAIGC)

b)- Libertar os 26 prisioneiros portugueses (da prisão de La Montaigne, 7 Km a NE de Conacri)

c)- Destruir as instalações do PAIGC

d)- Golpe de estado para liquidar o regime de Sekou Touré, com a colaboração da FLNG (Elementos treinados, por militares portugueses, na ilha de Soga, no Arquipélago dos Bijagós, entre Janeiro e Novembro de 1970).

a), b), c) -> Missões cumpridas (êxito militar).

Se em c) o objectivo era decapitar o PAIGC, então a missão não foi de êxito total, nesta vertente.

d) -> Missão abortada (erro de estratégia política)


Nota: Neste intervalo (17/9/69 e 22/11/70), Alpoim Calvão instalou e comandou a base fluvial de Ganturé (Bigene), na margem direita do Rio Cacheu. (em frente, na margem esquerda: as densas matas do Oio)

Caro Carlos Fortunato:

Subsistem dúvidas para as quais, dentro do possível, deveriamos procurar a clarificação.

Escalpelizemos :

a) O objectivo principal era tomar o poder ou eram as missões a), b) e c) ?
b) A 1ª fase da invasão não foi bem sucedida ? Não é o que consta.
c) Concretamente qual era a missão da sua companhia ?
c1) Não esteve em Conacri ?
d) Que instruções ou justificação receberam para não actuar ? (lembra-se ?)
e) Como clarifica o que diz o David Guimarães: "O armamento usado não foi o nosso" - "houve grande confusão no momento", "a operação era para provar a nossa força e confundir os guineenses"? (se calhar, por alguma subjectividade, só ele poderia esclarecer)
f) O grupo de assalto que deveria tomar a rádio, comandado por um alferes da Guiné, diz-se que se desorientou e ficou pregado no terreno. Não estaria também ele a pensar em desertar ?
g) Confirma que o aeroporto, pese embora a fuga do tenente, chegou a ser tomado pelo capitão paraquedista Lopes Morais ?
h) Acha que as 3 coincidências que refere indiciam que a operação terá sido marcada pela perda (prévia) do seu secretismo ?

Obrigado pela sua disponibilidade e participação.

Um abraço.
Afonso Sousa

Guiné 63/74 - P100: Op Mar Verde (invasão de Conacri) (2) (David Guimarães / Carlos Fortunato))

1. Texto do David J. Guimarães, dirigido ao Carlos Fortunato e restantes camaradas da tertúlia:

Nesta operação não foi libertado ninguém, falharam os objectivos. Aliás isso consta escrito aí, na Net, nas grandes Batalhas da Marinha Portuguesa. Isso foi em fins de 70 ou já em 1971, segundo tenho em memória e quem comandou foi sim o CMDT Alpoim Calvão... Mas essa data consta no documento a que aludi...

Pelo que leio até alguém mais ficou por lá - foi o grupo de assalto ao aeroporto de Conakri.

Também essa operação não era de conquista mas sim para provar a nossa força e confundir os Guineenses: o armamento usado não foi o nosso e inclusive houve grande confusão no momento (...).


2. Resposta do Carlos Fortunato (8 de Julho de 2005):

Guimarães: O documento que referes, pode ser encontrado em Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa. É muito interessante

Confirma-se nele a libertação dos prisioneiros e a intenção da tomada do poder na Giuiné Conacri.

A informação que possuo e a deste documento são, na generalidade, semelhantes.

Apesar do detalhe em alguns promenores, existem pontos por esclarecer sobre o que aconteceu no terreno, nomeadamente em relação ao pelotão que ficou lá.

A história que me foi contada na altura, tem algumas diferenças do texto, mas não posso garantir que a minha seja verdade porque não estive em Conacri. Na minha versão o grupo que desapareceu e depois foi morto, foi o grupo que devia tomar a rádio, que aliás é referido neste documento como não tendo atingido esse objectivo porque se perdeu, e não parte do grupo de assalto ao aeroporto.

Também a afirmação que os Migs não eram uma ameaça, por falta de preparação dos pilotos, não é bem assim, porque dois dias depois da invasão um MIG sobrevoou Bissau e picou sobre o Palácio do Governador, e foi-se embora.

A segunda questão é como é que um tenente deserta e leva consigo 20 homens... As versões eram várias na altura, uns diziam que se tinha perdido, outros que tinha desertado... Depois de capturado ele disse na rádio que pertencia ao exército português e que tinha desertado, mas o que poderia ele dizer, se o Governo Português os tinha abandonado... A sorte dele e dos restantes soldados foi serem enforcados... A outra versão que diz que foi apenas o oficial a desertar e o resto do pelotão não, também não é, pois, correcta...

Eu tive que assinar um documento, sobre a minha saída do exercito português, e se fosse apanhado com o fardamento do exército cubano e de Kalachnikov, provavelemente diria o mesmo, porque era um mercenário...

Existem demasiadas coincidências, nesta operação, como os dirigentes do PAIGC não estarem lá, o Presidente Sekou Touré não estar lá, os Migs não estarem lá ... Será que os serviços de segurança russos ou cubanos sabiam e deixaram-nos ir, porque isso lhe interessava ?

Penso que a totalidade da história ainda está por contar.

Carlos Fortunato
(Ex-furriel miliciano da CCAÇ 13 - Os Leões Negros)

Guiné 63/74 - P99: Estórias do Xitole: Com minas e armadilhas, só te enganas um vez (David Guimarães)

Texto do David J. Guimarães, ex-furriel miliciano da CART 2716 (Xitole, 1970/1972):


O RAP 2 (Gaia) fez parte da minha família


Sempre me preocupei, durante a guerra, em contar cá para a Metrópole (era assim que então se dizia) não propriamente as peripécias da nossa vida militar mas as coisas mais belas que encontrava na Guiné: os mangueiros carregados de mangas, os milhares de morcegos que povoavam o céu ao escurecer e ao amanhecer e que dormiam nas árvores, os macacos, as galinhas de mato, etc.

Eu achava que deveria poupar a minha família e que esta não teria que ouvir e até viver a guerra em directo: bastava para isso o sofrimento de saber que eu andava por lá...

Foi assim que eu senti e vivi a guerra. Lembro-me um dia, quando alguém me disse:
- Guimarães, este batalhão vai para a Guiné (ainda estávamos no RAP 2 em Gaia). E eu exclamei:
- Ainda bem, é a província mais próxima de Portugal para vir de férias...

Não será aqui o sítio certo para falar do RAP 2. Mas na minha vida pessoal foi um marco importante. Foi de lá que foi mobilizado o meu pai, militar de carreira, para ir servir em França… na 1ª Grande Guerra (Ele nasceu em 1893 e eu nasci quando ele tinha 54). É de lá mobilizado o meu irmão que parte, com o BART 525, para Angola e sou eu mobilizado, no BART 2917, para servir na Guiné...

Ironias do destino ou coincidências de graus de parentesco... É que, entre o meu irmão e o meu pai, também é mobilizado para África um primo meu, em 1º grau. Não há dúvida, aquele Regimento entrou na nossa casa, muito antes de eu ter nascido... Se fosse isto um romance serviria para dizer que a minha existência como que começou ali. Mas isto é outra história que, não sendo menos curiosa, não vem agora a propósito...

O soldado Almeida: a nossa primeira baixa

Uma noite, no início da comissão no Xitole, ainda estava eu de serviço, de sargento de dia... O Leones, furriel miliciano, meu camarada, informa-me:
- Guimarães, um teu soldado está mal… - E estava mesmo: quando lá cheguei vi a equipa de enfermagem em volta dele mas já nada havia a fazer... O soldado Almeida tinha morrido no seu posto de sentinela, fulminado por um ataque... de coração!

Foi a nossa primeira baixa. No dia a seguir chega um médico à Companhia e lá vai autopsiar o Almeida... Confirma o óbito: enfarte do miocárdio. Assina: Alferes miliciano médico Horta e Vale. Curioso, este médico (quem o conheceu teve sorte, contava cada história!), hoje é um distinto médico dentista da Clínica da Circunvalação, aqui junto à cidade do Porto.

Bem, nada como pegar no pessoal mais chegado, eu era um deles, pois o Almeida era meu soldado (meu, e aí surge o termo militar de posse, meu). Mas como dizia, aquando da evacuação - e tudo foi rápido, mesmo! - aí fomos nós fazer patrulhamento para as zonas próximas de Seco Braima [vd. mapa do Sector L1, Zona Leste]. Nos céus do Xitole levantava um helicóptero e lá levava o Almeida: tinha adormecido no seu posto… Para sempre.... Deus o guarde!

A vida lá volta à rotina, os patrulhamentos, as acções psico e a ida à Ponte dos Fulas... Ui, aqueles 3 a 4 Km que todos os dias eram picados e onde se ia sempre levar os géneros!... A Ponte dos Fulas, onde fiz o primeiro mês da minha comissão, a Ponte dos Fulas!...

Era o local onde efectivamente o repouso era enorme, mas cansativo. Ali é que não havia ninguém a não ser o pelotão de serviço... Comia-se, bebia-se e mais nada, além da missão de vigilância permanente, que consistia em guardar aquela ponte de origem militar sobre o Rio Pulon...


Era uma vez um granada instantânea com fio de tropeçar

O aquartelamento do Xitole estava bem minado em seu redor. Do lado da pista de aviação, tinha eu mesmo montado um poderoso fornilho às ordens do capitão. Esse fornilho era comandado do abrigo dos furriéis (vd. foto onde estou eu sentado em cima de um bidão). De resto todo o terreno à volta estava semeado de minas anti-pessoais 966...

Para a protecção total e permanente do aquartelamento no Xitole só faltava um ponto por armadilhar: a estrada Bambadinca - Xitole - Saltinho... Os ex-combatentes da CCAÇ 12 conheciam-na bem e sabiam onde era a casa de Jamil Nasser, um comerciante libanês que vivia no Xitole [vd. foto da antiga casa do Jamil, no álbum de fotografias do Xitole]... Pois era exactamente ali, naquela rampazinha que dava acesso ao aquartelamento.

Resolveu-se então que todas as noites essa entrada do quartel fosse armadilhada... Essa operação era sempre feita ao cair do dia. O material era simples: uma granada instantânea e arame de tropeçar, do mesmo tipo daquela granada que um dia matou o macaco.... Lembram-se dessa estória que eu aqui já contei [vd. post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXV: Minas e armadilhas ]

E lá foi naquele dia o Quaresma, sempre ele, que já tratava por tu essa maldita granada. E como gostava dela, o furriel miliciano Quaresma!

Mais um dia, e novamente o armadilhamento da entrada. Dessa vez ele até foi contrariado, estava a preparar uma galinha para churrasco, lerpou, não comeu…

O quadro é simples: ouve-se um rebentamento, só um. O Quaresma é decapitado, o Leones fica cego e sem dedos… Ficámos todos em estado de choque:
-Não podia ser!!! - Mas foi: um parte para a eternidade, o outro é evacuado... O Quaresma desta vez tinha falhado, nunca mais armadilharia na vida...

David J. Guimarães


Post scriptum:

1. Não pensem que há algum anacronismo quando eu refiro que o meu pai foi mobilizado, pelo RAP 2, para servir a Pátria, em França, em 1917... O meu pai nasceu em 1893 e eu em 1947, o que quer dizer que nos separam 54 anos... 2º Sargento de Artilharia de Campanha, segue para França integrado no Corpo expedicionário, comandado pelo General Gomes da Costa. Como mera curiosidade, sou eu que tenho a caderneta militar e as condecorações de meu pai: guardo com toda a estima sete medalhas sendo uma delas a da Vitória... Por outro lado, e como sabem, nós estivemos na 1ª Guerra Mundial e não na 2ª.

2. Não sei se sabiam, aqueles que não eram de artilharia, mas uma CART como a 2716 tinha três Furriéis de Minas e Armadilhas e um Alferes. Todos levantámos uma PMD-6 do IN em diversos locais: o Alferes Sampaio, O Furriel Quaresma, O Furriel Ferreira e eu. A PMD-6 é exactamente aquela mina que se encontra já documentada em fotografia. De fabrico russo com espoleta MUV. Esta espoleta tinha uma particularidade curiosa: poderia funcionar por pressão ou tracção...

Amigos, este caso que aqui relato foi, e ainda é, bastante doloroso para mim. Confesso que, ao evocá-lo trinta e tal anos depois, não consegui conter uma lágrima...

As grandes batalhas eram travadas nestas pequenas guerras surdas, que quase não se davam por elas. Muitos diziam que eram acidentes e não contabilizavam estas baixas como mortes em combate. Sempre tive opinião diversa, porque o combate estava exactamente sempre que havia necessidade de manusear uma arma de fogo, preparando-a para a defesa ou ataque...

Centenas, talvez milhares de indivíduos morreram a armadilhar… mas não morreram em combate, segundo as estatísticas. Dá-me vontade de perguntar:
- Terá sido a brincar ? E será que armadilhávamos os terrenos para apanhar gazelas, cabritos e cabras? – Pois, não era para caçar e muito menos para nos matarmo-nos a nós próprios....

Tive um amigo, alferes (antes andava embarcado, a tropa foi lá buscá-lo com 30 anos)... Isso é pouco interessante. O que eu quero referir, em concrteo, é que, já no nosso tempo, na estrada de Mansoa - Mansabá ele levantou uma mina PMD-6 e… morreu a olhar para ela. Rebentou-lhe na mão!!!
- Como é que isso aconteceu ? ... Ele já não está cá, entre nós, para contar o que aconteceu... Chamava-se Couto... Talvez haja alguém que um dia apareça na nossa tertúlia e saiba contar melhor esta estória…


3. O Leones ainda hoje é vivo, está cego e trabalha na Previdência em Lisboa. O Rebelo, furriel sapador do BART 2917, escolhido para degado do Batalhão em Bissau, era quem tomou conta do espólio do Quaresma. Quandp estava doente com paludismo, assaltaram-lhe o espólio de Quaresma. Bem, acontece que eu, como estava de férias, lá fui a Algés (onde morava os pais do Quaresma) tentar negociar...

Sabem o que a mãe me perguntava? Se o filho estava interinho... E eu lá tive que mentir dizendo que sim... Como é que eu podia contar-lhe a verdade, dizendo de chofre que ele ficara sem a cabeça no local onde armadilhava com uma granada instantânea, aquela maldita granada vermelha com espiras de aço !?... É claro que não podia contar essa história a uma mãe. Mais me perguntava ela pelo fio de ouro que ele usava...Eu tive que lhe dizer que possivelmente alguém tinha guardado, não se sabia aonde...

Mais tarde, o pai tentou negociar o espólio, tentando sei lá o quê (ganhar algum junto da tropa no Quartel General, extorquir o desgraçado do Rebelo...). Não conseguiu, mas o Rebelo passou uns maus bocados.

sábado, 9 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P98: Um Alfa Bravo para os nossos Op TRMS (2) (Sousa de Castro)

1. Há dias (30 de Junho de 2005) tinha feito um desafio aos nossos homens das transmissões (Op TRMS):

"Castro, Afonso Sousa, Luís Carvalhido: Gostava de saber mais sobre o vosso trabalho que eu hoje valorizo mais do que na época… Nós, operacionais, só dávamos valor aos pessoal de transmissões em três situações: (i) quando o rádio não funcionava e entrava tudo em pânico; (ii) quando era preciso pedir apoio aéreo; (iii) quando havia uma evacuação Y… Quanto ao resto, achávamos que o furriel de transmissões , o gajo da ferrugem, o ladrão do vagomestre e o pastilhas não passavam de uns turistas em férias... Nada mais injusto. Todos eram precisos, todos fazíamos parte de uma equipa…

"Vocês devem ter estórias, mais dramáticas ou mais engraçadas, a respeito do vosso trabalho, da sorte e do azar com as transmissões… Se se lembrarem, escrevam. Um abraço, Luís.


2.
Respondeu-me de imediato o Sousa de Castro:

É verdade... Éramos considerados uns gajos que não faziamos nada, não alinhávamos para o mato e que só sabiamos causar interferências na telefonia. Só se lembravam dos TRMS quando iam para operações, aí perguntavam sempre ao Castro:
- Qual é a Bateria que está em melhores condições ? - Neste aspecto confiavam só em mim. Curiosamente a especialidade de radiotelegrafista foi um trabalho que me dava muito gozo.

Quanto a estórias, lembro-me de assistir pela rádio quando Guidage sofreu um violento ataque, creio que foi em Maio 1973. Consegui sintonizar o AN-GRC9 e através do indicativo ficámos a saber onde era o ataque.

Lembro-me de o OP TRMS de Guidage a chorar, pedir apoio aéreo a Bissau e de um momento para outro ficar sem comunicações, supostamente as antenas terão sido destruídas. Mais tarde constou-se que os guerrilheiros do PAIGC levavam as nossas viaturas e nossos homens para o Senegal e por ordens do COM-CHEFE a nossa aviação, para libertar o quartel de Guidage e evitar a deslocalização para o Senegal das nossas viaturas, bombardeou a torto e a direito. Dos vinte e tal mortos que a nossa tropa sofreu não sabemos se muitos deles não teriam sido provocados pelas nossas forças.

Para além disto recordo ter detectado uma mistificação na rede que originou a mudança imediata de todos indicativos na Guiné.

Um Abraço.
Sousa de Castro.

sexta-feira, 8 de julho de 2005

Guiné 6374 - P97: Op Mar Verde (invasão de Conacri) (1) (Afonso Sousa)

1. Pergunta o Afonso Sousa (CART 2412, Bigene, Binta, Guidage, Barro, 1968/70) ao Carlos Fortunato (CCAÇ 13, Bolama, Bissorã, Encheia, Biambi, Binar, 1969/71) (que recentemente nos disse ter participado na Op Mar Verde, mas que não chegou a desembarcar em Conacri porque entretanto a operação fora abortada):

A Op Mar Verde foi abortada? Então não foi com esta operação que se conseguiu a libertação dos prisioneiros portugueses que estavam em Conacri? Até comentámos aquela foto [do álbum de fotografias do Amílcar Cabral, que foi oferecido à Fundação Mário Soares] onde são vistos alguns a jogar futebol e alguém terá lembrado que foram posteriormente libertados na Op Mar Verde.

Aliás, sobre isto, o Marque Lopes esclareceu-nos: "Sobre a fotografia de prisioneiros a jogar à bola em Conacri, é natural que algum seja da CART 1690 [Geba, 1967/69], pois eram os que estavam lá em maior número. No entanto, é difícil distingui-los nessa fotografia. Para saberem o que foi a vida deles em cativeiro leiam o livro Memórias de Um Prisioneiro de Guerra, publicado pela editora Campo das Letras em Outubro de 2003 (...). O seu autor é o ex-alferes miliciano António Júlio Rosa (agora professor de Educação Física), que foi aprisionado pelo PAIGC na zona de Tite, no dia 1 de Fevereiro de 1968. Lá esteve até ao dia da libertação da Op Mar Verde. É um relato simples, sem literatura. Vale a pena ler, sobretudo nós que compreendemos tudo aquilo".

Desculpem a ignorância, mas o Carlos Fortunato poderia deixar algum esclarecimento sobre isto. Afonso Sousa

2. Resposta do Carlos Fortunato:

A Operação Mar Verde foi uma invasão de um país [Guiné-Conacri]com o objectivo de tomar o poder, que não foi levada até ao fim. A primeira fase da invasão não foi bem sucedida, apesar de se terem atingido alguns dos objectivos, como a libertação de prisioneiros.

O que eu referi é que a minha companhia [CCAÇ 13 - Os Leões Negros] fazia parte da segunda onda de assalto, que não chegou a avançar, e que esta história ainda tem muito para contar, e eu não a conheço totalmente, mas gostaria de conhecer, pois penso que foi a missão mais espetacular realizada.

O pouco que sei sobre itso está sucintamente descrito no site da companhia, que foi elaborado por mim, e que fala do assunto, quando se refere à nossa permanência em Bissau.

Se quiserem dar uma vista de olhos, cliquem:

CCAÇ 13 - Os Leões Negros

Carlos Fortunato

3. Se quiserem saber mais sobre a Op Mar Verde, há aqui uma sugestão do Jorge Santos:

Associação Nacional de Cruzeiros (ANC) > Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa > Conakry, 22 de Novembro de 1970

quinta-feira, 7 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P96: Salgueiro Maia, director de jornal de caserna (Jorge Santos)

1. Texto do Jorge Santos(ex-Fuzileiro Naval em Moçambique, em 1969/71, estudioso da guerra colonial e autor da excelente página Guerra Colonial Portuguesa):

Esta relação [de jornais militares da Guiné] já tinha enviado para o Sousa de Castro.

Para mim, tem bastante interesse, pois já na altura havia pessoal que arriscava na escrita, e mesmo [no teatro de operações da GUiné] sempre liguei aos Jornais de Caserna.

Alguns podem ser consultados no Arquivo Geral do Exército. E pode ser que apareça alguém com alguma informação de um jornal que não conste na lista.

Ao fim e ao cabo é algo que também faz parte das nossas vidas e das nossas memórias. Depois envio capa de jornais com indicação das unidades.

2. Comentário de L.G.: Participei, durante a minha instrução de especialidade de Apontador de Armas Pesadas, em Tavira, na elaboração de um jornal de caserna, em 1968. Havia uma pequena equipa redactorial. O comandante da unidade zelava pela orientação editorial do jornal. Recordo-me de um belo dia ele obrigar-nos a mandar para o lixo uma edição dedicada à II Guerra Mundial e ao nazifascismo. O argumento do censor-mor era de peso:
- Para guerra, já basta a nossa, a do Ultramar!

Das três capas (ou folhas de rosto) de jornais de caserna enviadas pelo Jorge Santos (Manga de Ronco, Os Progressistas, Zoé) seleccionei Os Progressistas, por uma razão particular, histórica e até afectiva: (i) era um quinzenário de "divulgação, cultura e recreio" da Companhia de Cavalaria 3420, que esteve em Bula, no ano de 1971; (ii) o director era o respectivo comandante, o capitão de cavalaria Fernando J. Salgueiro Maia, o Salgueiro Maia (1944-1992) de quem Carlos Loures escreveu, no sítio Vidas Lusófonas, o seguinte:

"Salgueiro Maia, soldado português que à frente de 240 homens e com dez carros de combate da EPC avançou em 25 de Abril de 1974 sobre Lisboa, ocupou o Terreiro do Paço levando os ministros de um regime ditatorial de quase 50 anos a fugir como coelhos assustados, cercou o Quartel do Carmo obrigando Marcelo Caetano a render-se e a demitir-se. Atingiu o posto de tenente-coronel, recusou cargos de poder. É o mais puro símbolo da coragem e da generosidade dos capitães de Abril".

© Jorge Santos (2005)

Salgueiro Maia foi, além disso, meu colega, no ano lectivo de 1975/76, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCPS), embora eu pouco ou quase nada privasse com ele, porque eramos de cursos diferentes (eu, de ciências sociais; ele, de antroplogia), com o estatuto de trabalhadores-estudantes. Íamos às aulas à noite e a algumas Reuniões Gerais de Alunos (RGA), numa altura em que o ISCSP passava por um período de vida muito conturbado (saneamento de praticamente todos os docentes com assento no Conselho Científico...), o que levou no final do ano lectivo de 1975/76 (ou nas férias...) ao seu encerramento, por ordem do então Ministro da Educação Sottomayor Cardia e ao consequente início de um duro processo de luta estudantil contra a tutela e o regresso das múmias (como, depreciativamente, eram então chamados os professores, alvo de saneamentos selvagens, de natureza claramente político-ideológica).

3. Não me lembro na Guiné, no meu tempo de comissão (1969/71), de ter visto (e muito menos participado na elaboração de) jornais de caserna. A CCAÇ 12 não tinha caserna, éramos uma unidade de intervenção, composta por soldados africanos e quadros metropolitanos, vivendo em casa emprestada (os nossos soldados africanos, desarranchados, dormiam na tabanca de Bambadinca e não dentro do perímetro do aquartelamento)... Diferente era a situação das unidades de quadrícula (por exemplo, no Xime, Mansambo, Xitole). O jornal de caserna podia ser uma forma interessante de manter alto o moral das tropas e fazer a ligação com a Metrópole.

De qualquer modo, esta faceta do Salgueiro Maia, como director de um jornal de caserna chamado Os Progressistas( CCAV 3420, Bula, 1971), é capaz de ser um aspecto menos conhecido do seu currículo. Fico com curiosidade em saber, um dia, o que se dizia e não dizia nesse quinzenário, muito provavelmente em formato A4 e feito a stencil...

4. Já em tempos eu tinha comunicado com o Jorge Santos, felicitando-o pelo cancioneiro do Niassa, inserido na página dele (só por isso, pelo trabalho de recolha e de divulgação das canções proibidas da guerra colonial em Moçambique, ele merecia uma estátua!) e pedir-lhe autorização para reproduzir alguns dos versos dessas cantigas de caserna no meu blogue... (Vd. meu post, de 11 de Maio de 2004: Blogantologia(s) - XI: Guerra Colonial: Cancioneiro do Niassa)

Voltei, entretanto, a dar-lhe os parabéns pela sua página (que é uma referência e um sítio obrigatório, para todos nós) e já pus o seu nome na nossa tertúlia... Mesmo sendo moçambicano, ele será bem acolhido por todos nós, guinéus.

domingo, 3 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P95: Blogpoesia: No muito somos irmãos, no pouco... outra bandeira!

Eis a mensagem que recebi, há dias, de um dos camaradas da nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné. Pediu-me para não ser identificado, no caso de decidir publicá-la no blogue. 
Usa o pseudónimo literário de Marame. Assim seja:

"Salve para Todos, Cruzados do Leste! Cá o passeador do RACAL envia este improviso poético ou palavras em castelo. O texto simboliza uma conversa na companhia de uma bazuca que eu gostaria de ter bebido com todos vós, à sombra de uma laranjeira. Igual àquela que existia no meu Condomínio Fechado.

Um Alfa Bravo para Todos e Boas Férias".


Sentido

Largados na latitude do inferno,
Levando a Alma no bornal
Cujo corpo pede o Materno
Porque ainda não era Portugal.


Os pés cheiram o Chão
Mas a Mina é mostrengo,
Vive no solo, sente a Exaustão
Do guerreiro que ainda é Tenro.


Que leu Camões, dançou a chula
E só em Cristo tinha a luz,
Aconchega o Mandinga ou o Fula
Porque o respeito o Bem produz.


Seja no Mamadu, na bajuda ou no Zé
E assim no regresso o navio deixou Esteira
Para não se perder o elo para a Terra vermelha da Guiné
Porque no muito somos Irmãos – no pouco outra bandeira!

Marame (2005)

sábado, 2 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P94: Um alfa bravo para os nossos Op TRMS (1) (Afonso Sousa)

1. O Afonso Sousa [exz-furriel miliciano de transmissões da CART 2412, Bigene, Binta, Guidage, Barro, 1968/70) vem trazer para nossa tertúlia o tema dos "nossos rádios na Guiné". Teve, além disso, a gentileza de nos mandar imagens desses equipamentos de cuja existência e importância só dávamos conta em momentos de grande aflição: (i) quando, no mato, debaixo de fogo do IN, chamávamos pela mãezinha e pelo apoio da Força Aérea; ou (ii) quando tínhamos um camarada gravemente ferido, e era preciso uma evacuação Y para o hospital militar de Bissau...

Diz o Afonso Sousa: "Quanto do nosso isolamento foi atenuado e protegido com estes aparelhos de resistência singular, em terreno e flora tão adversos" ! (28 de Junho de 2005).

O Rádio AN_PRC 10 © Afonso Sousa (2005)

Além disso, "quem não se lembra daqueles livrinhos (secretos) de descodificação criptográfica (chaves periódicas de decifração de mensagens - criptografia de substituição de palavras) ? Com que expectativa e alguma sofreguidão, iniciávamos, por vezes, eu e o cabo cripto, a decifração de certas mensagens !

"... E saber que, hoje, tudo é tão simples com a criptografia computacional !... Coisa dos tempos !...


2.O Marques Lopes também se lembra bem "do AN-PRC 10, que o radiotelegrafista do meu grupo de combate levava às costas. Mas usávamos também em Geba um pequeno rádio para comunicação entre as secções do grupo de combate a que chamávamos SHARP. Era uma espécie de walkie-talkie. Conhecem ?"


3. O Humberto Reis diz que se lembra bem desse rádio: "Usei-o enquanto estive em Lamego pois cabia no bolso do dolman camuflado. Na Guiné não me lembro de o ter visto. Julgo que na minha CCAÇ 12 nunca houve desses luxos. Enfim, não se podia ter tudo".


4. O Sousa de Castro (29 de Junho de 2005), esse, também fala de cátedra, acerca das nossas transmissões e dos seus operadores:

"O AN-GRC 9 foi o rádio com que trabalhei durante toda a comissão na Guiné em grafia... Não é para me gabar, mas eu achava-me um craque nesta matéria, trabalhar em código morse era comigo, ou não tivesse na minha caderneta a menção de TE (telegrafista especial).

"Convém dizer que o [Luís] Carvalhido da APVG [Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra] não ficava atrás, antes pelo contrário, era um bom adversário.

"Aproveito para dizer que aquilo a que chamam de Banana é o AVP-1 que era usado no meu tempo nas operações para comunicação entre pelotões e nomeadamente com o Quartel, mas o rádio com mais alcance que os OP (operadores] de TRMS [transmissões] de Infantaria levavam às costas era o conhecido RACAL (TR-28)... Conheceram este? Vou procurar nos meus papéis e digitalizar este rádio para mandar para a tertúlia".

Nota de L.G. - As imagens enviadas pelo Afonso Sousa estão, para já, na página de Barro / Cacheu.

Guiné 63/74 - P93: Barro, trinta anos depois (1968-1998) (Afonso Sousa)

Texto de Afonso M. F. Sousa, ex-furriel miliciano de transmissões da CART 2412 (Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70), a propósito do post Guiné 69/71 - LIV: Cacuto Seidi, chefe da tabanca de Barro (15 de Junho de 2005)


Caro António Marques Lopes:

Recordo-me muito bem dele [o Cacuto Seidi]. As cinco mulheres !... Falávamos nisso. Alternavam a dormir com o Seidi.

Quanto à pequena e rudimentar pista de meios aéreos pequenos, ficava aí a 100m da fachada Norte do edifício do comando e secretaria. Havia um pequeno carreiro descendente, para Leste, que entroncava no caminho Barro-Bigene, próximo da cozinha do aquartelamento. De certeza que conhece.

Neste mesmo edifício ficava também o aquartelamento dos oficiais e o centro cripto.
Uma vez (era meia-noite), eu e o cabo cripto (que estávamos a descodificar umas mensagens) fomos surpreendidos com forte ataque vindo de zona próxima do arame farpado junto à referida pista. Como estávamos em posição frontal e a uns escassos 150/200 metros, a nossa primeira reacção foi atirar-nos para baixo da nossa mesa de trabalho.

Logo ao lado, do abrigo contíguo ao edifício, sentimos a pronta reacção do nosso morteiro, de imediato acompanhada por toda a companhia. Foi quase meia hora de intenso tiroteio, felizmente sem consequências. Apenas a lamentar a perda de uma perna por parte de um nativo, na manhã seguinte, quando se procedia ao reconhecimento da zona imediatamente a Norte da pista. Deixaram minas anti-pessoais e foi uma delas que o vitimou.

Já agora permita perguntar-lhe: e em frente ao edifício de comando/secretaria onde funcionava o depósito de géneros, a área dos mecânicos-auto e o dormitório dos praças, isso já não existia [em 1998, quando lá voltou, trinta anos depois] ?

E aquelas duas altas mangueiras, logo a seguir (para Sul), entre as quais tínhamos instalada a antena horizontal dípolo (elas funcionavam como mastro) ? Ao lado ficava o posto rádio e a enfermaria.

A sua constatação foi a de que aquela terra, tal como quase todas, não sofreu ainda os ventos da libertação, da democracia e do progresso. É assim ?

Um abraço (mais sentido por termos, longe da pátria, calcorreado os mesmos caminhos, algures na Guiné)

Afonso Sousa

Guiné 63/74 - P92: A zona tampão de Barro, Bigene, Binta, Guidage e Farim Afonso Sousa)

Texto de Afonso M. F. Sousa , ex-furriel miliciano de transmissões da CART 2412 (Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70)


1. A nossa Companhia chegou a Bigene, vinda de Bisssau, em 31 de Agosto de 1968, para fazer o treino operacional (com a CART 1745, e integrada no COP3, cujo comandante era o major de cavalaria Correia de Campos).

Nos primeiros contactos com o IN apanhámos uma emboscada num trilho à saída de uma bolanha. Aí faleceu (com tiro de bazooka) o nosso 1º cabo enfermeiro João Batista da Silva (talvez reconhecido pelo IN pela sua saca de medicamentios, a tiracolo) (1).

Na reacção as NT conseguiram (também como descreve o coronel A. Marques Lopes) neutralizar um guerrilheiro (talvez o que terá abatido o nosso militar) que estava empoleirado numa árvore. Levou uma rajada no baixo ventre e ficou com os testículos praticamente desfeitos. Foi trazido para o aquartelamento. Estava vivo, mas não sei se, posteriormente, veio a safar-se. Pelo seu estado, julgo que não.

Até chego a pensar se desta tão grande coincidência, entre o meu relato e o do coronel, na neutralização deste turra, não estamos a falar do mesmo. Era sinal de que a CCAÇ 3 estava, na ocasião, em Bigene, juntamente com a minha companhia.

Mas talvez não, porque na altura o Correia de Campos era major e o António Marques Lopes reporta-se a ele como sendo tenente-coronel, o que indicia ter este caso ocorrido posteriormente.

2. Esta Zona (Barro - Bigene - Binta - Guidage - Farim) correspondia como que a uma zona-tampão, visando neutralizar os corredores de Tanaf e Samine (Senegal), de grande importância nos abastecimentos do PAIGC e na estratégia de conquista territorial a partir do Senegal.

Repare-se que estes corredores estabeleciam a ligação Senegal-Morés (Óio) (2). Por isso esta zona era vital tanto para as nossas pretensões como para as do PAIGC. O futuro haveria de demonstar isso (leia-se o que ocorreu em Guidage em Maio de 1973).

Por exemplo, o percurso Binta-Guidage era frequentemente emboscado por grupos itinerantes apeados ao longo do trajecto (sobretudo no baixo do Cufeu, alagado por cursos de água superficiais). O objectivo era isolar a tabanca de Guidage que ficava mesmo em cima da fronteira com o Senegal.

Toda esta zona era assim, percorrida frequentemente por estes barrotes queimados do e para o Senegal. Este país quase funcionava como rectaguarda do PAIGC (embora algumas vezes negasse esse apoio, por estratégia concertada com eles).

Foi por isso que, a partir de Barro, bombardeámos o Senegal com potentes obuses. Resultado: este país apresentou queixa na ONU contra Portugal por violação do seu território. Vocês devem-se lembrar disso (1969), pois, na altura, foi noticiado na rádio.

Depois, nos dias seguintes recebemos, dos habituais informadores (nativos) as mais interessantes informações sobre os resultados destes bombardeamentos.
____

(1) Quando mais tarde (trocando com a CCAÇ 3), viemos de Guidage para Barro (onde cumprimos a parte final da nossa missão), aqui erigimos um memorial a este nosso companheiro, morto em Bigene, logo no início da nossa missão.

Hei-de perguntar ao coronel A. Marques Lopes se em 1998, quando voltou a visitar Barro, ainda viu por lá esse memorial (em betão), mesmo em frente ao então depósito de géneros. Penso que não. Pelo menos não o vislumbro naquela fotografia que, gentilmente, me enviou o ano-passado - a Este do edífício do comando, secretaria e centro cripto, logo a seguir àquela enorme mangueira, à face do caminho Barro-Bigene.

(2) Morés: Grande base de comando do PAIGC, para a zona Centro-Norte.

Guiné 63/74 - P91: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael (Afonso Sousa)

Texto de Afonso M. F. Sousa , ex-furriel miliciano de transmissões da CART 2412 (Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70)

A minha companhia fazia parte integrante do COP 3 (com sede em Bigene, onde fizemos o treino operacional entre 31/8/68 e 14/10/68; depois foi a partida para Binta e Guidage).

Entrámos em Guidage em 17/10/1968, a substituir a CART 1648. Mais tarde referirei os dados cronológicos respeitantes à minha CART 2412, que inclui também a sua permanência (até ao termo de missão) em Barro (que o sr. Coronel A. Marques Lopes bem conhece e aonde voltou em 1998).

Porque aqui se fala de COP 3, Guidage e Barro, achei interessante esta crónica, que vocês já conhecem, dos "relatórios secretos sobre a Guiné colonial".

Guidage tinha uma importância extrema tanto para nós como para o IN. Já tínhamos consciência disso quando lá entrámos. E aí está o que se veio a passar em 1973... com a ofensiva do PAIGC contra Guidage (no Norte)e Guileje e Gadamael (no Sul)... Os três G que, na opinião do historiador guineense, Leopoldo Amada, terão decidido "o final do império colonial"...

Publica-se a seguir um texto, do jornalista Serafim Lobato, em que se divulgam pela primeira vez os relatórios secretos sobre a batalha de Guileje e Gadamael, uma peça importante para a compreensão da história da guerra colonial e do seu fim. O texto esteve originalmente disponível no sítio do Publico.pt. Está também publicado no blogue História e Ciência > Relatórios secretos sobre a Guiné colonial. Algumas das noats, em parêntesis rectos, são da nossa responsabilidade (A.S., Afonso Sousa).
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"Estamos Cercados por Todos Os Lados"
Por SERAFIM LOBATO
Público. Domingo, 28 de Dezembro de 2003

As Forças Armadas portuguesas começaram, há 30 anos, a sofrer os primeiros efeitos visíveis de desagregação na Guiné-Bissau, quando quartéis de fronteira estiveram cercados em combates prolongados e alguns foram abandonados (definitiva ou temporariamente) por efeito directo de assédios bem sucedidos de unidades guerrilheiras do PAIGC. Pela primeira vez são divulgados relatórios que permitem reconstruir a batalha de Guileje e Gadamael, que antecedeu a saída de Spínola da Guiné e o reconhecimento deste país pela ONU.

No mês de Maio de 1973, a guerrilha guineense efectuou 220 acções militares em todo o território operacional da Guiné-Bissau e concentrou os seus esforços militares em quartéis de fronteira, visando, em primeiro lugar, a desmoralização dos soldados e, em paralelo ou posteriormente, a conquista territorial.

A 8 de Maio, o PAIGC lançou uma ofensiva concentrada de envergadura contra Guidage, unidade situada mesmo junto à linha de fronteira com o Senegal, fazendo parte de uma quadrícula militar de vários agrupamentos a norte do rio Cacheu que ia, a oeste, até Barro, sob um comando operacional único (COP 3) com sede em Bijene. Comportava unidades do Exército e da Marinha, estas estabelecidas na base fluvial de Ganturé [comandada por Alpoim Galvão; junto ao Rio Cacheu e em cujo ancoradouro se sai para ir para Bigene que fica a 2,8 Km para Norte. Nota de A.S.]

Na defesa de Guidage, o comando chefe da Guiné teve de enviar para a zona um conjunto elevado de grupos e destacamentos de tropas especiais, comandos, pára-quedistas e fuzileiros, bem como unidades de artilharia e mesmo de cavalaria. A guarnição local, quando começou o cerco, era constituída por uma companhia de Caçadores e por um pelotão de artilharia, equipado com obuses de 10,5 mm - logo, cerca de 200 homens.

Na operação de auxílio, reabastecimento e contra-ofensiva, que durou de 8 de Maio a 8 de Junho de 1973, estiveram envolvidos mais de mil homens (na maioria tropas especiais) das Forças Armadas portuguesas, em terra, mar e ar, conforme assinalam os coronéis Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, no seu livro Guerra Colonial.

As forças portuguesas tiveram 39 mortos e 122 feridos. Pelo menos seis viaturas militares de vários tipos foram destruídas e foram abatidos três aviões (um T6 e dois DO27). Só a unidade de Guidage contabilizou sete mortos e 30 feridos, todos militares. Nos cerca de 20 dias que ficou cercada, Guidage esteve sujeita a 43 ataques com foguetões de 122 m/m, artilharia e morteiros.

Todos os edifícios do quartel foram danificados. A unidade, que, no conjunto, teve mais mortos foi o Batalhão de Comandos: dez. Sofreu ainda 22 feridos, quase todos graves, e três desaparecidos.


Restrições ao apoio aéreo

A 18 de Maio, a sul, junto à raia com a Guiné-Conacri, verificou-se que havia uma concentração de forças guerrilheiras em redor de Guileje que apontava para uma tentativa de tomada do quartel.

Refere um relatório do comando chefe das Forças Armadas da Guiné (Repartição de Operações), assinada pelo seu chefe, tenente-coronel Pinto de Almeida, agora tornado público, que sintetiza a actividade do COP 5 (área militar que enquadrava Guileje) entre 18 de Maio e 21 Maio de 1973, que, no primeiro dia, "durante a execução duma coluna de reabastecimento, as NT [nossas tropas] foram fortemente emboscadas por duas vezes, a cerca de dois km de Guileje, tendo sofrido um morto (comandante do pelotão de milícias de Guileje), sete feridos graves (cinco milícias do Pel Mil Guileje) e quatro feridos ligeiros (um miliciano do Pel Mil Guileje). Por falta de evacuação aérea, um dos feridos graves (soldado metropolitano) faleceu quatro horas depois da emboscada".

A falta de movimentação aérea não resultava de qualquer contratempo momentâneo. Eis a confissão do próprio comando chefe: "A partir de 06Abr73, o apoio aéreo no TO [território operacional] da Guiné sofreu grandes limitações impostas pelo aparecimento de foguetes antiaéreos eficazes, utilizados pelo inimigo, pelo que, no que se refere ao COP 5, foi determinado, em 27Abr73, o cancelamento de evacuações a partir de Guileje e Gadamael. O apoio de fogos aéreos às forças terrestres sofreu também, a partir da mesma altura, fortes restrições". (Os mísseis terra-ar Strella foram utilizados, pela primeira vez, a 5 de Abril, tendo sido atingido um avião Fiat G 91, pilotado pelo tenente Pessoa).

O comandante do COP 5, major Coutinho e Lima, enviou mensagens a alertar para a gravidade da situação. Informou que "a não satisfação do pedido de apoio de fogos, (...) bem como a não execução das evacuações" tinha causado "mal-estar no pessoal".

Às 20h desse dia 18, o PAIGC "iniciou as flagelações a Guileje". Horas depois, às 02h20, o COP 5 solicita apoio urgente, pois estava debaixo de fogo contínuo. "Foi-lhe respondido em 19 00h30 - assinala o relatório do comando chefe - que a força aérea se encontrava totalmente empenhada noutra área do TO e que seria efectuado o apoio aéreo logo que possível."


Cercados

O major Coutinho e Lima pede para expor directamente o assunto ao general Spínola. Reticente, este aceita recebê-lo em Bissau ao fim da tarde do dia 20. "Não foi satisfeito o seu pedido de [apoio] de uma companhia, tendo-lhe sido determinado que regressasse ao COP 5, onde seria substituído no comando", acrescenta o relatório.

Coutinho Lima envia uma mensagem às companhias de Cacine, Gadamael e Guileje,
"preparando a sua ida de Cacine para Guileje".

"Em 21 07h40, a Companhia de Cavalaria 8350 [Guileje] respondeu [ser] impossível cumprir o determinado no que se referia à sua colaboração no transporte do major Coutinho Lima de Cacine para Guileje. Foi-lhe dito em 21 10h26 que o comandante da companhia seria responsabilizado pelo não cumprimento dessa ordem", pode ler-se no relatório do comando chefe.

Igualmente a Companhia de Gadamael se opõe a destacar homens para levar o comandante de COP5 para Guileje.

Às 14h15 do dia 21, é recebida, em Gadamael, a última mensagem de Guileje: "Estamos cercados de todos os lados." Seguiu-se o silenciamento das comunicações de e com o quartel. Às 05h30 do dia 22, Guileje foi evacuada.

Uma mensagem, enviada dois dias depois de Gadamael, informava que de Guileje não foi "recolhida qualquer viatura", e especificou: um camião Mercedes, quatro Berliet, três Unimog 404, 1 Unimog 411, 1 jipe, um veículo de cavalaria Fox, dois White, que teriam sido "destruídos parcialmente". Ficaram ainda no terreno, segundo a mensagem, três morteiros 81, um morteiro 10,7 cm, bem como duas bazucas de 8,9, dois morteiros de 60, três metralhadoras Breda e sete G3, que foram danificadas ou destruídas, mas sete pistolas-metralhadoras FBP ficaram para trás "não destruídas" e pelo menos quatro G3 desaparecidas.

Uma mensagem-relâmpago do comando chefe dirigida à Companhia 4734, com data do dia 22, ressaltava o seguinte: "Solicito que informe comandante CAOP 3, coronel Ferreira Durão, que sua excelência o general comandante-chefe determinou que seja retirado imediatamente do comando do COP5 o major de artilharia Alexandre da Costa Coutinho e Lima e mandado apresentar QG/CCFAG para efeito de auto de corpo de delito."

Entre 18 e 22 de Maio, Guileje foi bombardeada 36 vezes. Uma mensagem de 21 de Maio descreve que o interior do aquartelamento tinha sido atingido durante uma flagelação com 200 impactos de granadas, que causaram "grandes danos materiais". Indica, nomeadamente, que foram destruídos todas as antenas de transmissões, dois depósitos de géneros, o forno da cozinha, tabancas, celeiros, arroz da população, havendo abrigos atingidos e danificados, bem como a secretaria, depósitos de artigos da cantina. Impactos houve que acertaram mesmo em valas-abrigos.


"Pessoal fugiu para o mato"

Após a retirada das tropas portuguesas de Guileje para Gadamael, este quartel ficou com um dispositivo de duas companhias (Caçadores 4743 e Cavalaria 8350) e ainda dois grupos da Companhia de Caçadores 3520, um pelotão de canhões sem recuo com cinco peças, um pelotão de reconhecimento, com apenas um veículo com autometralhadora White, mais um pelotão de artilharia com cinco obuses de 14 e um pelotão de milícias. Um outro pelotão de milícias estava reduzido a uma secção.

Depois do afastamento do major Coutinho e Lima, assumiu o comando do COP 5 o capitão Ferreira da Silva.

Gadamael, entre o meio-dia de 31 de Maio e o fim da tarde de 2 de Junho, esteve debaixo de fogo de armas pesadas e ligeiras continuadamente, tendo sido referenciados disparos de morteiros de 120 m/m, canhões sem recuo e lança-granadas foguete, com um número de rebentamentos estimado "em cerca de 700", conforme mensagens enviados pelo COP 5 para o quartel-general em Bissau. Os soldados tiveram cinco mortos e 14 feridos e os prejuízos materiais foram avultados.

No dia 1 de Junho, a Companhia de Caçadores 3520, de Cacine, transmitiu a seguinte mensagem: "Informo Gadamael Porto destruído. Feridos e mortos confirmados. Pessoal daquele fugiu para o mato. Solicito providências e instruções concretas acerca procedimento desta."

De imediato, Bissau determinou que tropas pára-quedistas, que se encontravam em Cufar, seguissem para Gadamael.

Ao final do dia 1 de Junho, uma mensagem vinda de Gadamael referia que, apesar da debandada, um grupo de tropas ainda se mantinha no quartel, mas que "centro cripto tinha sido destruído". A mensagem especificava ainda que "aquartelamento estava parcialmente destruído", com transmissões "deficientes" e que a "rede de arame [farpado] fora destruída parcialmente" e terminava com um apelo lancinante:
"situação gravíssima".

A 2 de Junho, Bissau mandava mais uma companhia de pára-quedistas de reforço, juntamente com um pelotão de artilharia com obuses de 14 cm. O comando do COP 5 passou para o major pára-quedista Pessoa.

Entretanto, nesse dia, a companhia de Cacine mudava de comando, que era atribuído ao capitão Manuel Monge, e a lancha de fiscalização grande (LFG) Orion informava que meios navais recolhiam "militares e elementos da população refugiados no tarrafo, na região da confluência do rio Cacine com o rio Cachina, num total de 300 indivíduos (alguns feridos ligeiros)".


"Pessoal fortemente traumatizado"

Nos dias 3 e 4 de Junho, Gadamael esteve sujeita a flagelações continuadas (mais de 200 rebentamentos) do PAIGC, com morteiros de 120 e canhões sem recuo. As mensagens consultadas assinalam, pelos menos, a existência de seis mortos e oito feridos nesses dias e a perda de três espingardas G3 e um rádio AVP 1.

O capitão Manuel Monge, no dia 4, pede ao quartel-general a "presença imediata" em Cacine de "entidade desse, fim estudar situação Gadamael Porto".

O general Spínola responde-lhe que "o estudo da situação já tinha sido apresentado pelo coronel Durão e que eram impossíveis os contactos pessoais diários". Duas horas depois, uma nova mensagem de Monge ressalta que "situação Gadamael Porto agrava-se aceleradamente" e pede: "Contacto, fim capitão Monge expor a situação e parecer comandante de COP."

O capitão Manuel Monge seguiu para Bissau no dia seguinte, mas ao final do dia 4 uma mensagem do comandante do COP 5 enfatizava: "Situação em Gadamael Porto é insustentável." E solicitava autorização "para se efectuar retirada ordenada" nos meios navais existentes neste. "Ou então - frisava - a minha imediata substituição no comando do COP 5." No final, uma confissão: "Nem tenho conseguido encontrar soluções que me permitam prosseguir."

À meia-noite desse dia, o quartel-general respondia: "Enquanto não for substituído, continua cumprimento da sua missão de defesa a todo o custo, incutindo moral aos seus soldados."

Além de todo o Batalhão de Caçadores Pára-quedistas no terreno, estavam no local várias unidades da Marinha de Guerra e um grupo de assalto de fuzileiros africanos. O comando do Task Group 6 referia, em mensagem, no dia 5, que quatro botes do Destacamento de Fuzileiros Especiais 22, embarcações do Exército e meios das unidades navais tinham efectuado as evacuações de mortos e feridos e ainda de um "número incontrolável" de fugitivos (civis e militares) encontrados à entrada do rio para Gadamael.

"Pessoal encontrado fortemente traumatizado psicologicamente devido situação alarmante Gadamael", terminava a mensagem.

Nesse dia, o comandante do COP 4, tenente-coronel Araújo e Sá, assumiu o comando do COP 5, ficando o major Pessoa como adjunto.

As unidades militares portuguesas sofreram, neste assédio a Gadamael, 24 mortos e 147 feridos.


Spínola deixa Bissau

O general António de Spínola, que assumira, em 1968, os cargos de governador e comandante-chefe das Forças Armadas portuguesas na Guiné-Bissau, com o objectivo de evitar que o "processo subversivo" guineense se alastrasse e contaminasse, numa "atitude irreversível", as situações em Angola e Moçambique, abandonou aquelas funções em 8 de Agosto de 1973, com a Guiné-Bissau, reconhecida pela ONU em Novembro. Foi substituído a 25 de Agosto pelo general Bettencourt Rodrigues.

No TO da Guiné, o efectivo castrense português atingia os 42 mil homens e o PAIGC enquadrava, segundo os serviços de informação militar, sete mil guerrilheiros.

A 21 de Agosto, um grupo de oficiais reuniu-se em Bissau para aprovar uma exposição contestando um decreto-lei publicado a 13, relativo à carreira de oficiais do Exército.

Cerca de três semanas depois, a 9 de Setembro, começou, em Évora, com uma reunião o Movimento dos Capitães, e o PAIGC, a 21 desse mês, proclamava unilateralmente a independência em Madina de Boé, região abandonada pelas Forças Armadas portuguesas desde Fevereiro de 1969.

O Movimento de Capitães reúne-se em Lisboa a 6 de Outubro e ali se coloca, pela primeira vez, a hipótese de usar a força para derrubar o regime de Marcelo Caetano.

Este está em crise no mês de Novembro e realiza uma remodelação ministerial - substitui o general Sá Viana Rebelo pelo académico Silva Cunha no Ministério da Defesa Nacional, assumindo Baltazar Rebelo de Sousa o departamento governamental do Ultramar - procurando esfriar a agitação entre a baixa oficialagem.

Mas a crise castrense está incontrolável: a 5 de Dezembro realiza-se, na Costa da Caparica, a primeira reunião da Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães, eleita em Óbidos, onde é escolhida a sua direcção executiva: Vasco Lourenço, Otelo Saraiva de Carvalho e Vítor Alves. O golpe de Estado que veio a culminar em 25 de Abril de 1974 estava em marcha.

sexta-feira, 1 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P90: Quem não tinha um pouco de poeta e de louco? (A. Marques Lopes)

Texto de Marques Lopes (ex-Alferes miliciano da CART 1690, Geba, 1967; e da CCAÇ 3, Barro, 1968). Enviado, em 30 de Junho de 2005, na véspera da sua partida para banhos, para a Nazaré:

Caros amigos, amanhã vou partir: de 1 a 15 de Julho vou estar pela Nazaré. Se algum de vós por lá passar ligue para o meu telemóvel (938013725). Ou, então, vá até à minha morança, sita na Rua 25 de Abril (sempre!!), n.º 18, no Sítio da Nazaré. Terei imenso gosto em comer umas ameijoas convosco no Manel ao pé do elevador... ou outros bons manjares que por lá há..

(...) Mas, antes de me ir embora, não vos quero deixar sem mais uma recordação minha da Guiné.

Já em Março de 1968, não me recordo em que dia, estava eu à espera de embarque para o regresso, conheci lá um camarada, o alferes Almeida Santos (não, não é o Presidente do PS!), que estivera numa companhia do sul, também não me recordo qual nem o sítio dela.

Andávamos em Bissau dentro da normalidade, isto é, bebendo muita cerveja e whisky e comendo muito camarão. Nesse tal dia, o Almeida Santos desafiou-me para fazermos uma viagem para fora de Bissau. Ele requisitou um jipe ao QG [Quartel-General], metemo-nos os dois nele e fomos até Nhacra, onde bebemos mais uma cervejas e comemos mais uns camarões numa baiúca que lá havia.

Depois de bem bebidos, decidimos que queríamos andar mais e continuámos pela estrada fora até... Mansoa. Aí, assistimos a um jogo de futebol dos elementos da companhia que lá estava, e comemorámos com mais cerveja no final do jogo.

Depois disso, o sol já estava a desaparecer e lá decidimos que era melhor voltar a Bissau. Estava lá um fuzileiro, não sei porquê (nem deu para essas perguntas, é claro...), que nos pediu boleia. Muito bem, lá fomos os três até Bissau.

O Almeida Santos ia a conduzir, eu ia ao lado dele em pé... a cantar (que besana!), o fuzileiro ia no banco de trás. Tudo na maior até perto da base aérea [em Bissalanca, nos arredores de Bissau]. Mas aí, o Almeida Santos, que estava pior que eu, saíu a toda a velocidade para fora da estrada (à volta estava tudo capinado e as árvores serradas) e foi chocar contra um tronco de árvore. Eu, que ia em pé, fui projectado e aterrei bastante mais à frente do local do embate. Quando dei por mim, tinha-me passado a bebedeira, olhei para o lado e vi o jipe a arder, com clarões que iluminavam a escuridão já existente, apalpei-me e não tinha nada partido.

Fui ao pé do jipe e ouvi o fuzileiro a gemer, o Almeida Santos estava desmaiado e não dizia nada. Peguei-lhe na cabeça e fiquei com as mãos cheias de sangue, ouvi-lhe o coração e vi que não estava morto. Fiquei à rasca, como calculam. Ali fiquei uns minutos a pensar o que fazer. Às tantas, vejo uma luzes avançarem do lado da base: era um grupo em viaturas que vira as chamas e queria ver o que se passava. E foram eles que nos levaram para o hospital.

Resultado: o fuzileiro tinha costelas partidas porque batera no banco da frente; o Almeida Santos tinha um lanho na cabeça porque batera com ela não sei aonde, e ficara sem um bocado da barriga da perna esquerda, também não sei porquê. E eu fui mandado embora, porque não tinha nada, a não ser a cara e a roupa tisnadas de preto.

Fui até ao QG, onde estava de Oficial de Dia o alferes Moreira, da CART 1690, que também esperava embarque de regresso. Ficou de boca aberta. No dia seguinte fui responder a um major que ficou encarregue do auto de averiguações. O Almeida Santos era o arguido, porque requisitara o jipe, porque ia a conduzir e porque... era mais antigo do que eu. Eu era testemunha! Claro que eu disse que íamos devagar, que tinha havido uma avaria no volante...
- Está bem, está bem, disse o major a sorrir.- Mas o Almeida Campos levou dez dias de prisão e teve de pagar o jipe, cerca de 300 contos, na altura. Poucos dias depois, antes de embarcar, fui vê-lo ao hospital e lá estava ela de perna engessada e cabeça ligada, todo sorridente a sorver uma cerveja.

Eu nunca fui santo, mas de louco sempre tive um pouco. E creio que mais fiquei depois de tudo o que vi e passei naquela terra da Guiné.

...E com esta me despeço.

Um abraço.
Marques Lopes

quinta-feira, 30 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P89: Recordando Geba, Banjara, Camamudo, Cantacunda, Bafatá (CCAÇ 1426) (A. Marques Lopes / Fernando Chapouto)

1. Mensagem enviada ontem ao A. Marques Lopes (ex-Alf. Mil. da CART 1690, Geba, 1967):

Ex-Furriel Miliciano Chapouto, da CCAÇ 1426 [1965/67], com sede em Geba,com passagem por Banjara, Camamudo e Cantacunda, quero felicitá-lo pela sua coragem demonstrada depois de ser ferido.

Quero agradecer-lhe por me proporcionar a possibilidade de reviver o passado, ao ler os seus escritos sobre os locais que eu tão bem conhecia e especialmente Banjara onde o sofrimento era grande, não só pelo isolamento como pela fome que se passava.

Um grande abraço. Fernando Chapouto.

2. Resposta do Marques Lopes

Caro camarada ex-combatente:

Grande satisfação a minha! Há dias contactou-me o Belmiro Vaqueiro, também da CCAÇ 1426, que deve conhecer, é claro.

É bom saber que estamos vivos, apesar de passarmos as dificuldades que todos sabemos ter havido naquelas terras de Geba e naqueles anos da nossa juventude, que devíamos ter passado de forma mais agradável.

Certamente viu o que escrevi no blogue-fora-nada, que está constituído numa tertúlia de ex-combatentes da Guiné , dinamizada pelo amigo Luís Graça, também ex-combatente.

Creio que todos estes amigos gostarão que se junte a este nosso grupo para lembrarmos os tempos passados e trocarmos experiências e opiniões sobre esse tempo passado.

Bem vindo, caro ex-conterrâneo de Geba, Banjara e Cantacunda.

Um abraço. Marques Lopes


3. O Fernando Chapouto, como é conhecido (e não Fernando Silvério) prometeu-nos enviar fotografias para o nosso álbum da Guiné: "Quando o meu filho vier cá ajuda-me a enviar fotografias, que tenho muitas. Eu dessas coisas não percebo, ele é que é engenheiro de informática e computadores". 

Refere ainda, na sua mensagem que enviou hoje, que "é com tristesa e mágoa que vejo várias vezes as fotografias de Bafatá, mete dó e pena". Apraz-nos também registar que é um "combatente com cruz de guerra".Ficamos a aguardar as suas fotos digitalizadas.


4. O Marques Lopes vai estar de férias de 1 a 15 de Julho. Pede aos amigos da tertúlia para falarem com o Fernando Cachoupo! "Ele, como todos nós, precisa disso".

quarta-feira, 29 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P88: O baptismo de fogo da CCAÇ 12, em farda n.º 3, em Madina Xaquili (Julho de 1969) (Luís Graça)

Extractos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II. 6-8.

Nota de L.G.:

Como já tive ocasião de o dizer aqui, a história da CCAÇ 12 foi escrita por mim, embora com a cumplicidade e a colaboração de vários camaradas, milicianos, incluindo um sargento do quadro. Já não está no activo, posso dizer o seu nome: o Sargento Piça, o Grande Piça, para os amigos!Oficialmente, o documento não tem autor nem sequer a sua versão final chegou a ser autorizada pelo comandante da companhia, o afável Capitão Brito, hoje coronel na reforma (e muito menos pelo comando do batalhão de quem estávamos hierarquicamente dependentes, o BART 2917, a partir de Junho de 1970 até Fevereiro de 1971).

Um versão, escrita e impressa à luz do dia, a stencil, na secretaria da companhia, foi discretamente distribuída aos alferes e furriéis milicianos (mesmo assim, não sei se a todos...), na véspera da partida (Os quadros metropolitanos da CCAÇ 12 eram de rendição individual). Gostaria que este documento tivesse podido chegar às mãos de todos os meus camaradas, incluindo os nossos soldados e cabos metropolitanos. E até aos africanos, embora muito poucos (dois ou três) soubessem ler e escrever. Infelizmente, não chegou.

A sua divulgação, nestas páginas, pretende atingir um público mais vasto, incluindo os amigos e os camaradas que fazem parte da tertúlia de ex-combatentes da Guiné (uma tertúlia que vai crescendo lentamente). Quero começar por dizer que a nossa actuação na Guiné não teve nada de heróico. E a leitura da história da CCAÇ 12 vem confirmar, à distância de trinta e tal anos, essa primeira impressão de quem, como eu, tendo sido actor, não pode ser advogado em causa própria. Procurei, mesmo assim, ser o mais possível objectivo, ou pelo menos factual, e distanciar-me dos acontecimentos que, muitos dos quais, eu próprio vivi como combatente sui generis (não levava granadas à cintura, andava com a G3 em posição de segurança...).

Cumprimos a nossa missão, com sangue, suor e lágrimas (um dos slogans preferidos dos nossos camaradas que fizeram tattuagens no corpo). Recordo-me de algumas tatuagens: Guine 69/71: Amor de mãe ou Guiné 69/71: Sangue, suor e lágrimas (Seria interessante estar esta forma de comunicação...).

Partimos tal como chegámos: discretamente. Na Guiné fomos amigos e solidários uns dos outros. Honrámos a Pátria, mesmo discordando (alguns, como eu) daquela guerra. Batemo-nos com dignidade e até coragem. Fomos uma das primeiras unidades da nova força africana, criada por Spínola. Deixámos lá a nossa juventude... Em contrapartida, nunca mais soube nada dos meus, dos nossos, soldados africanos. Portugal abandonou-os à sua sorte em 1974. Nós abandonámo-los à sua sorte. E isso dói-me...

A partir de 18 de Julho de 1969, finda a instrução de especialidade, a CCAÇ 12 foi dada como operacional, sendo colocada em Bambadinca (Sector L1), como unidade de intervenção, ficando pronta a actuar às ordens de qualquer um dos sectores da Zona Leste da Guiné (em especial dos Sectores L1, L3 e L5). Durante a sua primeira comissão (1969/71), actou sobretudo no Sector L1 (Bambadinca, correspondente ao triângulo Bambadinca-Xime-Xitole, mas incluindo também, a norte do Rio Geba, o regulado Cuor onde começava o famoso corredor do Morès...).

Pelas informações posteriores que recolhi (graças ao Sousa de Castro, da CART 3494 / BART 3873, 1972/74), em Abril de 1973 a CCAÇ 12 passou a unidade de quadrícula, aquartelada no Xime, e por lá terá ficado até ao fim da guerra. Tal significou que os nossos soldados africanos, ou uma boa parte deles (exceptuando os mortos, os feridos graves, os inoperacionais...), fizeram três anos e nove meses como força de intervanção (andaram no mato com a canhota...) e mais um ano e tal, aquartelados no Xime (de Abril de 1973 até provavelmente a Setembro de 1974). No mínimo, cinco anos de tropa, ao serviço dos tugas. A esse tempo deveria acrescentar-se os meses e os anos em que foram milícias nas suas pobres tabancas do Cossé e de outros regulados, organizadas em autodefesa...

Em Julho de 1969 (e até Junho de 1970), o dispositivo das NT no Sector L1 era o seguinte:

(i) Comando e Companhia de Comando e Serviços do BCAÇ 2852 (Bamdabinca, 1968/70);
(ii) Forças de intervenção (Bambadinca): CCAÇ 12 (1969/71); Pelotão de Caçadores Nativos 53;
(iii) Subunidades em quadrícula do BCAÇ 2852: CCAÇ 2520 (Xime), 2339 (Mansambo) e 2413 (Xitole)

Havia ainda a considerar o Pelotão de Cavalaria Daimler (Bambadinca), o PEL CAÇ NAT 52 (Missirá) e 53 (Fá Mandinga), além das forças militarizadas (pelotões de milícias aquarteladas em Taibatá, Dembataco e Finete). Se excluirmos a população fula armada (nas tabancas em autodefesa), no Sector L1 (mais ou menos equivalente à Região do Xitole, para o PAIGC), as NT poderiam ser estimadas em cerca de 1250 homens, o que nos dava uma vantagem , em relação ao IN, de talvez cinco ou seis para um. De resto, estimava-se que, no final da guerra, o PAIGG em todas as frentes não tivesse mais do que 10 mil homens em armas, quatro vezes menos do que as NT.

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(l) Julho/69: Baptismo de fogo em Madina Xaquili

Ainda não haviam sido distribuídos os camuflados às praças africanas quando a CCAÇ 12 fez a sua primeira saída para o mato. A 21, três Gr Comb (2º, 3º e 4º) seguiam em farda nº 3 para Madina Xaquili a fim de reforçar temporariamente o sub- sector de Galomaro,[a sul de Bafatá].

Entretanto, o 1º Gr Comb efectuaria à tarde uma patrulha de segurança ao Mato Cão, [no chamado Rio Geba Estreito], tendo detectado vestígios muito recentes do IN que fizera uma tentativa de sabotagam da ponte sobre o Rio Gambana, provavelmente na altura do último ataque a Missirá (a 15).

Este afluente do Rio Geba está referenciado como um ponto de cambança [travessia] do IN. Depois de se ter mostrado particularmente activo, durante o mês anterior na zona oeste do Sector L1 (triângulo Xime-Bambadinca-Xitole), o IN procurava agora abrir uma nova frente a leste, utilizando as linhas de infiltração do Boé [Madina do Boé tinha sido abandonada pelas NT em 8 de Fevereiro último e logo ocupada pelo IN] e visando especialmente as tabancas de Cossé, Cabomba e Binafa.

Dias antes IN tinha atacado três tabancas do regulado de Cossé [donde era oriunda a maior parte das nossas praças africanas]e reagido a uma emboscada das NT.


Sori Jau, a primeira vítima em combate

Seria, aliás, em Madina Xaquili que a CCAÇ 12 teria o seu baptismo de fogo. Os três Gr Comb haviam regressado, em 24, à tarde, dum patrulhamento ofensivo na região de Padada, tendo ficado dois dias emboscados no mato (Op Elmo Torneado), quando Madina Xaquili foi atacada ao anoitecer por um grupo IN que muito provavelmente veio no seu encalce.

0 ataque deu-se no momento em que dois Gr Comb da CCAÇ 2446 que vinha render a CCAÇ 12, saíram da tabanca a fim de se emboscarem. [Esta companhia madeirense teve dois mortos e vários feridos].

0 IN utilizou mort 60, lança-rockets e armas ligeiras, tendo danificado uma viatura e causado vári¬os feridos às NT. O primeiro ferido da CCAÇ 12 foi o soldado Sori Jau, do 3º GR Comb, evacuado no dia seguinte para o HM [Hospital Militar] 241 [Bissau].

A 25, os três Gr Comb regressam a Bambadinca com a sua primeira experiência de combate. Nesse mesmo dia, o 1º Gr Comb participava numa operação, a nível de Batalhão no sub-sector do Xime. Foram detectados vestígios recentes do IN na área do Poindon mas não houve contacto (Op Hipopótamo).

No dia seguinte à tarde, depois das NT terem regressado ao Xime, o aquartelamento seria flagelado com canhão s/r e mort 82 durante 10 minutos.

A 26, o 4º Gr Comb segue para Missirá [, a norte do Rio Geba,] a fim de realizar com o PEL CAÇ NAT 52 uma patrulha de nomadização na região de Sancorlã/ Salá até à margem esquerda do RPassa (limite a partir do qual começa a ZI do Com-Chefe), com emboscada entre Salá e Cossarandin onde o IN vinha com frequência reabastecer-se de vacas.

Verificou-se que os trilhos referenciados não eram utilizados durante o tempo das chuvas (Op Gaúcho).

Entretanto, uma secção da CCAÇ 12 passava a ficar permanentemente destacada (…), [falta aqui um bocado de texto, presumo que fosse em Sansacutà ], na sequência de informações de que o IN se instalava de novo no regulado do Corubal, e na previsão duma acção de força contra o eixo de tabancas em auto-defesa a sudeste de Bambadinca.


Novo ataque, de 1 hora, a (e abandono de) Madina Xaquili

Por outro lado, o 1º e o 2a Gr Comb seguiam para o sub-sector de Galomaro a fim de reforçar temporariamente Dulombi e Madina Xaquili.

A 28, por volta das 22.30h , Madina Xaquili sofria um ataque de 1 hora por parte dum grupo IN estimado em 60 elementos, tendo sido gravemente atingidos por estilhaços de mort 82 os soldados do 2º Gr Comb Braima Bá (hoje inoperacional) e Udi Baldé (que foi evacuado para o HMP/Lisboa, passando posteriormente à disponibilidade com 35% de incapacidade física).

Na reacção ao ataque, o apontador de mort 60 Mamadu Úri ficou com as mãos queimadas devido ao intenso ritmo de fogo que executou.

A partir de Agosto, Madina Xaquili passaria à responsabilidade do COP 7 [Bafatá] e, em Outubro, seria retirada pelas NT depois de totalmente abandonada pela população.

A 23, pelas 10h, em Dulombi, um grupo IN reagiu com armas automáticas a uma patrulha do 1º Gr Comb que havia saído em virtude do accionamento duma mina antipessoal por parte dum elemento pop [abreviatura de população], a escassa distância do arame farpado, tendo simultaneamente flagelado o destacamento durante 10 minutos.

Ataque de duas horas a Candamã

E finalmente a 30, o 3º e 4º Gr Comb seguiram para Candamã a fim de levar a efeito um patrulhamento ofensivo na região de Camará, juntamente com forças da CART 2339 [Mansambo](Op Guita).

Ao chegar-se a Afiá, pelas 7.30, soube-se que Candamã tinha sido atacada durante mais de duas horas até ao amanhecer.

Em Candamã, os dois Gr Comb da CCAÇ 12 procederam imediatamente ao reconhecimento das posições de fogo do IN, tendo estimado os seus efectivos em 60/100 elementos [1 bigrupo reforçado], armado de canhão s/r, mort 82, LGFog, metralhadora pesada 12.7, armas ligeiras automáticas.

Havia abrigos individuais junto ao arame farpado que fora cortado em vários pontos, tendo o grupo de assalto utilizado granadas de mão.

Em consequência da reacção das NT e da população organizada em autodefesa, o IN sofrera várias baixas, a avaliar por duas poças de sangue e sinais de arrastamento de dois corpos, além de dólmen ensanguentado que foi encontrado já num dos trilhos de retirada. Foram recolhidas várias granadas de canhão s/r e RPG-2.

Do lado das NT houve 5 feridos (1 dos quais grave) e da população dois mortos e vários feridos graves, além de danos materiais (moranças destruídas, etc.].

O facto do IN ter retirado ao amanhecer indicava que deveria ter um ou mais acampamentos a escassas horas de Candamã. A corroborar esta hipótese, o aquartelamento de Mansambo seria flagelado na tarde desse mesmo dia.

A Op Guita não forneceu, porém, qualquer pista que levasse a detecção do IN na região de Camará.

terça-feira, 28 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P87: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967) (Marques Lopes)

Texto do Marques Lopes (ex-alferes miliciano da CART 1690, Geba, 1967):

Falam muito no Niassa e no Uíge, por razões óbvias. Mas já ouviram falar no Ana Mafalda? Se calhar, não.
 

Pois o Ana Mafalda é (ou era, porque já foi abatido) este barquito que aqui vos mostro:

Tinha 103 metros de comprimento e 14 metros de largura, em linguagem de pescador de canoa em água doce, e tinha uma velocidade máxima de 13,5 nós, isto é, em linguagem de velho motorista de fim-de-semana, dava no máximo 25 km por hora.

Tinha 16 alojamentos em primeira classe, 24 em segunda e 12 em terceira. Tinha 47 tripulantes (estou muito agradecido a um deles, um que me vendeu a máquina fotográfica com a qual tirei as fotografias que vocês conhecem). Alguns dos modernos "cacilheiros" que atravessam o rio Tejo não serão tão "grandes", mas aproximam-se.

Pois é verdade, meus amigos, foi neste transatlântico que a CART 1690 [Geba, 1967/69] largou do cais de Alcântara até à Guiné. Era a única unidade que lá ia, porque não cabia mesmo mais ninguém, penso eu.

Como alguns meses antes de embarcarmos nos tinham dito que íamos para Timor, ficámos satisfeitos por decidirem mandar-nos para a Guiné, pois pensámos que seria terrível ir num barco daqueles até à Oceânia...

Os alferes, sargentos e furriéis foram distribuídos pelos beliches dos "camarotes" de segunda e terceira classe. Em primeira classe ficou o capitão da companhia, o comandante do navio, o imediato, o oficial das máquinas, certamente, e uns mangas que se penduraram em nós à boleia, que eu não sei quem eram nem procurei saber.

O Zé Soldado, sempre o mais fodido nestas situações, foi para o porão onde estavam montados uns beliches de ferro com umas enxergas em cima, e onde casa de banho não havia.

Largámos às 12h00 do dia 8 de Abril de 1967. Foi uma bela viagem, como devem calcular, com os baldes dos dejectos do porão a serem despejados borda fora de manhã e ao fim da tarde (ao menos haja regras). Mas os "despejos" começaram logo à saída da barra do Tejo. Eu, pessoalmente, nunca tinha chamado tantas vezes pelo Gregório.

Mas deixem-me contar o que aconteceu antes do embarque. No dia 3 de Abril houve a cerimónia de despedida, assim lhe chamaram, no RAC (Regimento de Artilharia de Costa) de Oeiras, que era onde estávamos à espera de embarque. Houve missa na parada celebrada pelo padre Nazário, perdão, o senhor Major-Capelão Nazário, que, ainda por cima tinha sido meu "superior" quando eu fiz a instrução primária nas Oficinas de S. José, em Lisboa!

Não fui à missa nem ouvi o sermão que ele fez, e que me disseram que foi uma bela dissertação sobre o amor à pátria e a defesa do património nacional. Mas tive que o gramar mais tarde, porque ele, um dia, apareceu em Geba para ver como estava a guerra.
- Nós por cá todos bem, é claro, disse-lhe eu.

O homem é (ou era, não sei se já morreu) este:

© A. Marques Lopes (2005)

Depois, no dia 8 de Abril, então, seguimos de comboio especial para a gare marítima. Fizemos um belíssimo e aprumadíssimo desfile, com a nossa mascote Morena à frente (vai a fotografia com ela a falar com um macaco; coitada, não vem na lista, mas estava em Sare Banda, aquando do ataque, e foi morta durante ele; morreu em combate também; era uma cadela muito porreira) perante um representante de Sua Ex.ª o Ministro do Exército.

As senhoras do Movimento Nacional Feminino deram muitos santinhos, calendários e bolachas a todos. O representante de Sua Ex.ª o Ministro do Exército ainda fez uma prelecção aos sargentos e oficiais dentro do navio. Aos soldados não deu trela. E lá embarcámos com as lágrimas dos familiares presentes.

Às 16h00 do dia 15 de Abril de 1967 o Ana Mafalda chegou ao porto de Bissau. A 16 de Abril a companhia passou directamente do navio para LDGs e seguiu pelo Geba acima até Bambadinca.

Foi engraçado e giro, como devem calcular, para o pessoal que ia enfiado, ouvir os fuzileiros que nos levaram ir dizendo, em cada curva ou ponto mais apertado do rio:
- Olhem que aqui costuma haver ataques!...

© A. Marques Lopes (2005)

Dormimos em Bambadinca, em tendas, ao pé do rio, porque não havia instalações. Foi o primeiro combate com a mosquitada.

A 17 de Abril seguimos de Bambadinca para Geba em coluna auto. E fomos render a CCAÇ 1426, do Belmiro Vaqueiro [vd. post desta semana, de 26 de Junho de 2005 > Guiné LXXXII: CCAÇ 1426 (Geba, 1965/67), presente!].

A brincar, a brincar, é o começo da nossa estória.

Marques Lopes

Guiné 63/74 - P86: No oásis de paz de Contuboel (Junho de 1969) (Luís Graça)

Excertos do Diário de um tuga (Luís Graça)

Contuboel. 20/6/69

Algures
No lugar mais frio
Da memória


(Carlos de Oliveira: Micropaisagens, 1968).

... Ou no lugar mais desconfortável da terra!

A paisagem barroca dos trópicos não é menos desoladora do que as ilhas caligráficas do poeta: sob a tela luxuriante da natureza, os homens recortam-se, quais sombras chinesas, numa fundo aridamente linear. Eu diria: pateticamente, de pé, no limiar da História.

Aqui a consciência humana tem a dimensão da tribo, do grupo étnico ou até da aldeia. Uma precária serenidade envolve a azáfama quotidiana destes povos ribeirinhos do Geba que, no meu eurocentrismo de viajante, recém-chegado e distraído, descreveria como felizes, gentis e hospitaleiros.

O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes; (iv) os homens, sempre eles, a tagarelar uns com os outros, sentados no bentém, mascando nozes de cola…

Em suma, um fim de tarde calma numa tabanca fula de Contuboel que daria, em Lisboa, uma boa aguarela, para exposição no Palácio Foz, no Secretariado Nacional de Informação (SNI).

E, no entanto, o seu destino, o destino destes homens, mulheres e crianças fulas, já há muito que está traçado: em breve a guerra, e com ela a morte e a desolação, chegará até estas aldeias de pastores e agricultores, caçadores e pescadores, músicos e artesãos, místicos e guerreiros…

O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Galomaro a Geba, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, desarmados, como se fossem turistas em férias!

Contuboel é ainda um oásis de paz, com um raio de uns escassos quilómetros...

Luís Graça

© Luís Graça (2005)


Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969:

Passeio de piroga junto à ponte de madeira de Contuboel, sobre o Rio Geba. Furriéis milicianos Henriques (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) e Monteiro (CART 2479 / CART 11).

Os quadros metropolitanos (menos de 60) da futura CCAÇ 12 tinham chegado a Contuboel a 2 de Junho de 1969 para dar a instrução de especialidade aos seus soldados africanos (menos de 100) (1). A companhia do Monteiro (CART 2479, futura CART 11) já lhes tinha dado a instrução básica, de 12 a 24 de Maio.

Estive em Contuboel até 18 de Julho. Tive tempo para ler, escrever, passear, ir à pontas [hortas] dos caboverdianos comprar bananas e abacaxis, escrever e falar de coisas de que gostava: a poesia, a literatura, a filosofia, a política... Tinha muitas afinidades com o Monteiro e com ele era capaz de ter uma conversa franca sobre a guerra colonial, a política, etc.

Nesse dia do passeio de piroga, em Junho de 1969 (não posso precisar o dia da semana, já que na Guiné vivíamos sem calendário, sem distinção de dias úteis da semana, sábados, domingos ou feriados), apanhei o meu primeiro grande susto por aquelas paragens africanas.

O Monteiro quis refrescar-se e deu um mergulho no Rio Geba, junto à represa, debaixo da ponte de madeira. De repente, apercebi-me que ele nunca mais aparecia à superfície... Quase gelei de terror!... Passou-se uma eternidade até que vi um pedaço de cabeça e uns olhos esbugalhados a emergir à superfície...

Depois de Contuboel, o Monteiro foi para o Gabu (Nova Lamego), segundo creio, e perdi-lhe completamente o rasto.

De facto, nunca mais encontrei o meu amigo Monteiro que, segundo creio, é o co-autor de um livro que li e apreciei muito sobre a guerra colonial (Renato Monteiro e Luís Farinha - Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: D. Quixote. 1998. 307 pp). Foi aí que reconheci a sua fotografia e alguns dados biográficos. Ele esteve na Guiné entre 1968 e 1970, se não me engano. E julgo que vive no Norte, onde foi professor do ensino secundário e esteve ligado ao movimento dos rádios livres. Gostaria, muito sinceramente, de o voltar a ver e abraçar.
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(1) Vd. post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LXXVI: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau