terça-feira, 20 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P178: Recordar é viver ou...a memória de elefante do Humberto Reis

1. Texto do Humberto Reis:

Demorou a abrir mas já consegui ver as fotos [do Luís Moreira]. Não me parece estar o Fernandes [ex-Fur. Mil. da CCAÇ 12, que também fora destacado, para trabalhar no reordenamento de Nhabijões com o Moreira] em nenhuma delas, apesar dos anos já passados.

© Luís Moreira(2005).

Uma autogrua, da engenharia militar, de marca Galion, a (des)embarcar vacas no cais de Bambadinca, rio Geba Estreito (L.G.).

Foto de 1970, gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-Alf. Mil. Sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).


A Galion a carregar vacas no cais fez-me lembrar o episódio dela no percurso do Xime para Bambadinca. A Galion veio numa LDG [ Lancha de Desembarque Grande] desde Bissau até ao Xime. E daí para Bambadinca ia pelos seus próprios meios (1). Passou bem pelo destacamento da Ponte do Rio Undunduma, mas quando chegou a meio da bolanha a estrada não aguentou o peso e cedeu. Resultado, a Galion desequilibrou-se e ficou meio enterrada na bolanha.

Julgo que isto se passou em Novembro de 69 (dia 24 ou 25 - aniversário do Tony) Tenho este episódio documentado mas, como era hábito naquele tempo, está em diapositivo (em português slide, como dizia o saudoso Fernando Peça) e não em fotografia.

© Luís Moreira(2005). A Galion a operar no cais (um pontão de madeira!) de Bambadinca... O Rio Geba era navegável até Bafatá, mas do Xime para cima o curso do rio, sinuoso e mais estreito, só permitia a navegação de pequenas embarcações militares (LDM, LDP, lanchas) ou civis (por exemplo, da Casa Gouveia) (L.G.)

Lembro-me que foi dos primeiros episódios a que assistiu o nosso amigo, na altura capitão periquito da CCS [do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70], o Figueiras, (co-organizador do habitual almoço anual que este ano que teve lugar na ria Formosa) que alguns conheciam como tenente da carreira de tiro de Tavira.

[Enfim,] mais um recuerdo para o blogue e um abraço para a rapaziada.

2. Comentário meu (L.G.):

Humberto: O Tony diz que tu tens memória de elefante e eu rendo-me à evidência… Tu lembras-te de coisas do arco da velho que se passaram no cu de Judas… E se havia um sítio, no mundo, que podia ser o cu de Judas, a Guiné era seguramente esse sítio, esse buraco… Lá tudo se enterrava: na lama, no tarrafe, no rio, nas bolanhas e lalas, nas picadas, nos buracos das minas… E quase a sempre a cabeça... no chão! Até a mastodonte da Galion se enterrou no seu passeio do Xime a Bambadinca! … Essa estória merece ser contada no blogue. Se tiveres mais pormenores, acrescenta…

Mas já agora: lembras-te dos filhos da puta dos turras (ou eram tugas ?) que um dia te viraram o quarto do avesso, na tua ausência ? Só que nunca cheguei a saber porquê, e logo a ti… Este foi, seguramente, um casos mais graves de quebra de segurança de que tive conhecimento na Guiné: esses turras, mascarados de tugas, entraram pelo aquartelamento adentro, presumivelmente armados, dirigiram-se ao teu quarto (nas calmas, nas barbas das sentinelas!) e viraram tudo do avesso, deixaram tudo num pandemónio !... Só não atearam fogo à cama e aos lençóis!...

Será que terias a cabeça a prémio como o outro, o nosso camarada do outro lado do rio ? Mas quem é que não gostava de ti, em Bambadinca e arredores ?... Enfim, uma história que ficou mal contada ou está para contar ao fim destes decénios todos…

Mantenhas (Já não me lembrava do termo em crioulo para a nossa palavra saudações… Obrigado, Paulo).


3. Texto do Tony (António Levezinho), também da CCAÇ 12:

Que ninguém duvide! Na verdade o Humberto tem mesmo memória de elefante.

Foi todo o dia 24 de Novembro [de 1969]na tentativa desesperada de desatascar a Galion antes que a noite caísse. Os esforços revelaram-se infrutíferos e assim não tivemos outra alternativa que não a de convidar a mosquitada da bolanha a juntar-se a nós para comemorarmos todos (em silêncio, como a situação de emboscada impunha) o meu 22º aniversário.

À falta de Champanhe serviram-se rodadas de Repelente que, a julgar pela sua ineficácia, funcionou como uma iguaria de entrada para os mosquitos, antes que estes chegassem à nossa pele, já depois de perfurarem até aquela capa de borracha que, creio, chamávamos ponche.

Peço-vos que não me comparem com o Humberto em termos de capacidade de memória para estas coisas da guerra.

Recordo este episódio apenas porque se tratou da celebração mais picante que eu alguma vez tinha experimentado ao longo de toda a minha carreira.

Assim, o seu a seu dono. Quem tem mesmo memória de elefante é o Humberto (Reis).

Um abraço, Malta !

P.S. - Já relativamente ao que aconteceu ao seu quarto (que por acaso tambem era meu) não faço a menor ideia. Devolvo assim a pergunta ao Luís (Graça)...

© Luís Graça (2005)

Da esquerda para a direita: os ex-furriéis milicianos Levezinho, Reis e Henriques, da CCAÇ 12, no Bar de Sargentos, em Bambadinca. Uma velha amizade que, no meu caso, começou no Campo Militar de Santa Margarida... Fico feliz, por trinta e tal anos depois, estarmos aqui os três a blogar...

Aproveito para acrescentar que os aniversários do Tony (Levezinho), no TO da Guiné, foram sempre celebrados em condições, no mínimo, insólitas. Um dia destes, com tempo e vagar, prometo reconstituir os dias loucos (e trágicos) que se seguiram às copiosas celebrações do seu 23º aniversário (24 de Novembro de 1970, dois dias depois da invasão de Conacri e na véspera da Op Abencerragem Candente) (2) (L.G.).
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Nota de L.G.

(1) Tratava-se de autogrua da engenharia militar que, julgo, veio para reforçar os parcos meios portuários existentes no cais de Bambadinca, por ocasião do ambicioso projecto de reordenamento de Nhabijões.

(2) Vd. post de 25 de Abril de 2005 >
Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)

segunda-feira, 19 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P177: Bambadinca e o Geba Estreito: fotos do Luís Moreira

© Luís Moreira (2005).

O Geba Estreito, junto a Bambadinca.

Foto de 1970, gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-Alf. Mil. Sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).

Há dias o Luís Moreira mandou-nos "um album digital com algumas fotos que consegui recuperar do meu baú".
E acrescentava:

"Sei que são de 1970 e de Bambadinca ou arredores mas, tirando a minha pessoa, não consigo identificar os outros fotografados. Fraca memória (...). A maioria das outras que tenho estão em slide. Pode ser que algum fotógrafo as possa imprimir em papel".

Noutra mensagem posterior disse-me:

"Luís, podes fazer o que entenderes com as fotos. Quanto às notas também pensei nisso, mas nem dos nomes do pessoal me lembrava e quanto aos locais também não me lembro dos nomes.

© Luís Moreira (2005).

Arredores de Bamdabinca, tabanca do lado sul, na estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole.

Era aqui que se situava a famosa "missão do sono" (um antigo serviço de saúde, na área do combate e prevenção do doença do sono) (1) e onde todos os os grupos de combate da CCAÇ 12 montavam segurança próxima, de noite, para que os senhores de Bambadinca pudessem dormir descansados... (L.G.)

"Penso que numa das fotos está a tabanca que ficava à saída de Bambadinca quando se ia para o Xitole; noutra penso que é um braço do Geba um pouco acima do cais (onde estão as canoas); e a junto à GMC devem estar as pessoas que referes [pessoal militar da CCS do BART 2917 afecto ao reordenamento de Nhabijões, bem como da CCAÇ 12], mas já não referencio nenhum deles.

"Noutra [foto] estou eu a subir ao depósito de água e ainda aparecem as do cais com o processo muito próprio de carregamento do gado. A que está a cores deve referir-se a algum acontecimento local de que não me recordo. Naquela em que estou ao pilão, reconheço o alferes de transmissões do meu batalhão, mas por mais voltas que dê à cabeça não me lembro do nome dele. Como vês a minha memória está péssima".

© Luís Moreira (2005). População local à frente ao posto administrativo de Bambadinca, que ficava dentro do perímetro do aquartelamento, sede do BART 2917 (1970/72).

Presumo que esta foto seja de finais de 1970 e que a população aqui representada, com ar festivo, seja do reordenamento de Nhabijões e, portanto, balanta. Pelo traje, não era população islamizada (mandinga ou fula). Repare-se que não há homens : o único que se vê deveria ser algum funcionário do posto. O chefe de posto de Bambadinca era cabo-verdiano. Nunca o vi (L.G.).

Quanto à história da mina (de que o Luís Moreira foi vítima, no dia 13 de Janeiro de 1970, à saída do reordenamento de Nhabijões), "depois conto um episódio que se passou na messe de oficiais de Bissau já depois de eu ter passado aos serviços auxiliares, cujo interveniente principal foi o major Barros e Bastos e que se refere exactamente ao rebentamento da tua mina" (outra mina a/c que rebentou duas horas depois, no mesmo local, e em que a vítima, desta vez, fui e o meu grupo de combate)...
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Nota de L.G.

(1) Em 1932, foi enviada à Guiné uma Missão para o estudo e combate à doença do sono, conforme se pode ler na resenha histórica da Escola de Medicina Tropical (criada em 1902), hoje Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa. Não sei se a antiga "missão do sono" em Bambadinca estava relacionada com este projecto de 1932 ou com as estruturas que as autoridades sanitárias coloniais criaram posteriormente no âmbito da luta contra a doença do sono. Possivelmente era um simples posto médico desactivado, ligado a este programa de saúde. O edifício estava completamente vazio e degradado, agora transformado em caserna. A saúde pública colonial deve ter entrado em colapso com o início da guerra, em 1963. O único pessoal de saúde que dava (algum) apoio ás populações locais eram os nossos enfermeiros e médicos militares. E a propósito, o que será feito do nosso muito querido amigo e camarada, o ex-furriel Mil. Enf. João Carreiro Martins, mais conhecido, a nível de caserna, como o "bolha de água" ? Vimn a encontrá-lo na década de 1990: era enfermeiro-chefe no Hospital Curry Cabral, chegou a ser meu aluno (num curso de pós-graduação em administração de serviços de enfermagem) e há tempos disseram-me que já estava reformado.

Guiné 63/74 - P176: "Forsa di pis sta na iagu" (ditado crioulo) (Paulo Salgado)

Trocando a espada pelo arado, ou melhor, a G3 pela pá e pela enxada...
Pessoal da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) nos trabalhos do reordenamento de Nhabijões, um conjunto de aldeias sob duplo controlo, junto ao Geba Estreito, pertencente ao posto administrativo de Bambadinca, sede do Sector L1, Zona Leste.
© Luís Moreira (2005). Foto de finais de 1970 gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-alf. mil. sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).
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O texto de opinião que se publica a seguir (Importância e papel da cooperação) é da autoria do Paulo Salgado, o mais recente membro da nossa tertúlia.

Recorde-se que, para além de antigo Alf. Mil. da CCAV 2721 (nos idos tempos de 1970/72, lá para os lados do Olossato, a sudoeste de Farim, e depois em Nhacra, a nordeste de Bissau), o Paulo é também, hoje em dia, um cooperante activo, solidário e empenhado, na Guiné-Bissau no domínio da administração de serviços de saúde.

O Paulo Salgado é, seguramente, uma voz autorizada para nos falar desta tragédia imensa em que vive a África de hoje, com muitos países à beira do desastre humanitário... Talvez ele nos possa ajudar a pensar melhor estes problemas. E sobretudo talvez ele nos possa ajudar a aprender a ajudar os nossos amigos da Guiné. Se não os pudermos ajudar hoje, então nada valeu a pena: a nossa luta e a luta deles, a lusofonia, a nossa história em comum, a CPLP, os protestos de amizade e cooperação dos nossos representantes políticos...

Porque a esperança deles é também a nossa esperança: não há mais mundo, não há futuro para a humanidade, para os do Norte e os do Sul, os do Oeste e os do Leste, se a grande maioria dos africanos (incluindo os guinéus da nossa antiga Guiné) continuar a viver com menos de 1 dólar por dia...

E quando falamos de guinéus (com afectividade, sem paternalismo de ex-colonialistas...), falamos também dos antigos militares da Guiné que combateram sob a nossa bandeira e que foram nossos camaradas, em Contuboel, em Barro, em Bissorã, em Bambadinca, em Piche, no Pelundo, em Catió, por todo o lado... L.G.


1. Camaradas (*)

Temos muitas histórias para contar.

Não devemos esquecer - nunca (alguns estão bem avisados, pelo que se lê) - que desgraçadamente na Guiné, em Moçambique, no Burundi, na Etiópia, na ÁFRICA, se morre. E esta fome pode alastrar-se...

Salgado

(*) Termo muito rico, para designar companheirismo, solidariedade, aproveitado pela tropa...

2. Importância e Papel da Cooperação

“Forsa di pis sta na iagu” – ditado crioulo. A força do peixe está na água; ou seja: as nossas capacidades e forças residem no trabalho e na perseverança

É razoável reconhecer a importância crescente da cooperação internacional – que mais não fosse pela forte razão de que as bolsas de subdesenvolvimento também entram na aldeia global que é a globalização; e, portanto, os países ricos sentem-se obrigados a enfrentar e analisar este fenómeno, e procurar soluções para os problemas que o subdesenvolvimento gera.

Destaco, em particular, os problemas que se vivem na África:

(i) o empobrecimento, a miséria, o abandono das terras, a fuga de uns países para outros;

(ii) a desaceleração do investimento – a ajuda aos países africanos está actualmente nos 8 cêntimos por cada 100 dólares!;

(iii) a mutilação da cidadania, expressão que explica a redução drástica dos direitos mais elementares dos cidadãos de muitas zonas do Mundo, em especial da África.

Estamos confrontados com a explosão das desigualdades e com o aumento da exclusão social: mais de 2 biliões de pessoas têm um rendimento inferior a 2 dólares por dia! Bastará compulsar o Relatório do Milénio das Nações Unidas para pasmarmos face à realidade traduzida pelos indicadores de desenvolvimento…

Qualquer recusa na ajuda mais básica a África é colocar em perigo, cada vez maior, os países pobres e – imagine-se! – a própria segurança dos países ricos.

Caros camaradas, vivemos uma guerra; não queremos que a fome e a miséria matem, por incúria e desprezo dos poderosos, milhões de crianças – aquelas crianças que nos habituámos a ver sorrir…

Paulo Salgado

domingo, 18 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P175: Tabanca Grande: Paulo Salgado, ex-Alf. Mil. da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72)

Mensagem enviada ao responsável deste blogue pelo Dr. Paulo Salgado, administrador hospitalar (Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia):

1. Caríssimo Luís Graça,

Penso que nos cruzámos na ENSP [Escola Nacional de Saúde Pública]- por volta de 1982... Do outro lado da mesa [estava] o assistente, deste o aluno em A. H. [Administração Hospitalar]. Foi assim, não foi?

Mas nunca tivemos oportunidade de conversar ... o raio do peso institucional...da Escola.

Vou gostar de participar neste blogue.

Fiz a minha comissão no Olossato e Nhacra entre Abril de 1970 e Março de 1972.

Fiz uma segunda comissão em 1990/92, como cooperante na área da saúde. Matei fantasmas; chorei no Olossato; ri-me com as crianças que rodearam a minha viatura; revisitei o Suleiman que me reconheceu passados vinte anos!!! E depois vieram alguns homens grandes...e imensos...

Tenho ido várias vezes a Bissau desde 1996 - os amigos que tenho feito...! As desilusões que tenho sentido da parte dos guineenses. Mas também a esperança.

Irei fazer outra comissão de um ano, dentro de poucos dias...! Loucura? Utopia? Talvez.

Mas sejamos claros: indo de encontro aos objectivos que definiste: olhar a África e para África só faz sentido no plano de um vero e recíproco respeito.

Louvo-te a iniciativa. Agradeço com muito carinho. Mas sem lamechices.

Pois nós fizemos parte de uma História que não está contada. Há muitas histórias e estórias, encontros e desencontros; há quem queira olhar para trás e compreender; há quem deseja nem sequer pensar no que passou e no que se passou. Compreendamos todos. Pois somos diferentes.

Mantenhas.

Paulo Salgado
Alf. Mil.
CCAV 2721
Olossato e Nhacra

2. Caro Paulo: 

Claro que te (re)conheço. Fui dar uma vista de olhos às fotos dos alunos do XII Curso de Administração Hospitalar (1982) e lá estavas tu, com o visual típico da época... É um curso de gente ilustre... Perdi-te o rastro, mas sei que continuas a manter boas relações com a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). Eu, na época, não era sequer docente da ENSP, mas apenas um simples prelector convidado.

Fico muito sensibilizado pela tua sensibilidade, sinceridade e franqueza. Vais, com certeza, gostar de fazer parte desta tertúlia e nós já ganhámos mais um camarada, ex-combatente da guerra colonial (ou do ultramar, como queiras), que tem, além disso, no seu currículo, uma larga experiência de cooperação com a Guiné-Bissau e uma particular estima e amizade para com o povo guineense...

Não precisas de pedir licença para entrar: é um privilégio ter-te connosco! Sê bem-vindo. Reforço as tuas palavras: de facto, "fizemos parte de uma História que não está contada". E ninguém vai pôr em causa o direito a contarmos as nossas próprias estórias... Ganhámo-lo, muito antes do 25 de Abril e da reconquista da liberdade de expressão e da democracia: ganhámo-lo no Olossato, em Nhacra, em Bissorã, em Barro, em Bigene, em Barro, em Geba, em Bambadinca e em tantos outros lugares "exóticos" onde vivemos, sofremos, combatemos e resistimos; nos mais diversos sítios da Guiné desde o Xime ao Xitole, de Canssissé a Madina do Boé, de Guileje a Guidage...

Por fim, não percas a tua utopia (do grego ou-topos que tanto quer dizer lugar nenhum como lugar perfeito)... A utopia existe e não existe... É por isso que a perseguimos... Bom regresso, em breve, à Guiné. Vai dando notícias (e mandando umas fotos digitalizadas...). Vou-te pôr na nossa e-mailing list... Mantenhas!

sábado, 17 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P174: Blogar é como voltar ao Bravo, Mike e Tango (João Tunes)

O João Tunes volta à carga, ou não tivesse sido ele, nos idos tempo de Bissau, Pelundo e Catió (1969/71), um bravo, dedicado e competente homem das transmissões (logo, da comunicação):

Humberto,

Ora bem, que isso de porras cada um sabe da sua. E o orgulho nela é inversamente proporcional à progressão na idade. Mas, como dizia o outro, cada caso é um caso. Eu sei do meu e só desejo que o teu desconsolo seja menor que o meu com o qual vou lidando com a ajuda que a lembrança das bajudas me vai dando (a merda da idade é que um gajo cada vez vai vivendo mais de lembranças...).

A beleza (perturbante) das bajudas (balantas) de Nhabijões, perto de Bambadinca (1970).

© Luís Moreira (2005).

Foto gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-alf. mil. sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).

(...) É, pá, fica esclarecido que não sei quem era esse tal Capitão Moás [da companhia de Polícia Militar] (1). E que não o aturei, isso é mais que garantido. Eu, no Niassa, não aturei ninguém. Tinha a obsessão de esquecer que estava ali, apenas. Aturaram-me mas não devo ter dado muito trabalho pois pouco banzé fiz dado que estive sempre em estado semi-adormecido.

Deram-me uma messe de luxo (aquilo fiava fino com iguarias para os oficiais, lagosta para aqui e acepipes para acolá, até parecia um cruzeiro no Mar Egeu para as damas do MNF [Movimento Nacional Feminino]) e alcool etílico a granel.

Volta e meia, espreitava na amurada (como só via água e a água é favorável aos detestados batráquios, fazia meia volta volver) e dava uma piscadela de olho ao porão onde estava a malta soldada a roncar ou a vomitar com o enjoo e as cervejolas.

© Manuel Ferreira (2005) > A caminho da Guiné no Niassa (finais de 1971)

Foto gentilmente cedida por Manuel G. Ferreira, ex-soldado condutor auto, da CART 3494 (1972/74), aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74), pertencente ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.

Depois, perguntava aos bacanos dos meus furriéis se estava tudo nos conformes, eles diziam sempre que sim (convencidos ou não, para o caso também não interessava porque nem se podia lerpar dali nem eu estava em condições de resolver ou ajudar fosse o que fosse e, apesar de semi-adormecido, dava para ver que os furriéis estavam, pelo menos, tão bebidos quanto eu, portanto estavam bem e, por extensão, os cabos e soldados ainda haviam de estar melhores) e regressava aos meus afazeres profissionais do king e das rodadas.

Quanto à minha perícia em transmissões, ela é um facto confirmável pelos anais lavrados quando da minha estadia na Guiné. É um facto que, lá, os rádios, por norma, funcionavam mal. Muito mal. E eu, mais que ninguém passava-me dos carretos com isso (sempre tive a mania de fazer tudo bem feitinho, vício perfeccionista que me vem de pequeno quando apanhava carolo por engatar a tabuada) mas havia sempre uma desculpa oficial que nos tirava de todas as enrascadelas - a merda da Guiné tinha água a mais e as massas de água lixavam os caminhos das ondas.

Assim, se as coisas estavam catitas, a malta das transmissões andava toda inchada; quando dava para a chiadeira sem atino na sintonização, a culpa era do excesso de água dos rios e das bolanhas. Pelo que, dados os descontos de vaidade, as coisas estavam bem por mérito nosso e mal por demérito alheio e devido aos caprichos da Natureza.

E tanto me convenci (isto dos caminhos da auto-estima é do caraças) que era bom em transmissões que, desde que existe a internet, me tornei fã cá da coisa. E, para mim, blogar é como se voltasse ao Bravo, Mike e Tango. Mal comparado, mas olha que é. A sério. Escuto.

Abraço do João Tunes
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Notas de L.G.:

(1) Referido pelo Humberto Reis num post anterior, com data de hoje > Guiné 63/74 - CXCII: Os nossos (des)encontros: do Niassa ao Pelundo, passando por Bissau .

Guiné 63/74 - P173: Antologia (19): os 'remorsos de guerra' do tenente Tunes

Post do João Tunes, publicado em 7 de Abril de 2004, no seu blogue de então, o Bota Acima, e aqui reproduzido com a devida vénia (diga-se, entre parêntesis, que é uma peça de fino humor de caserna que eu, blogador-fora-nada, quero compartilhar com os meus queridos tertulianos; espero que o João Tunes, aliás, ex-tenente miliciano Tunes, já tenha sido perdoado, ao fim destes anos todos, por quem tem a competência de perdoar as ofensas feitas às mulheres, em geral, e às senhoras, em particular):

Tropecei nas Senhoras do Movimento Nacional [Feminino] por duas vezes. Eram uma espécie das Tias de hoje (Lili Caneças lá não faltaria, estou convencido disso), normalmente casadas com dignatários do regime salazarista-marcelista. Ocupavam o tempo a acarinhar a rapaziada que ia para a guerra colonial ou já lá tinha batido com os costados.

Na primeira vez, estava eu perfilado e em sentido, comandando o meu pelotão, no Cais de Alcântara, a aguardar o embarque no Niassa que nos ia levar para a Guiné. Imaginem o estado de espírito. As famílias amontoavam-se nos varandins da Estação a acenar com lenços porque as despedidas estavam feitas. A tropa em formatura a gramar o discurso patrioteiro de um General qualquer. As lágrimas a caírem por dentro. Cada um a olhar de soslaio para os varandins, com uma tristeza infinita nos olhos ao ver a bruma dos lenços a acenarem sem se distinguirem os rostos. E uma raiva contra a sorte do destino a subir-nos até à garganta.

A certo momento, avançam as senhoras do MNF [Movimento Nacional Feminino], todas com aspecto de terem vindo directamente do cabeleireiro, sorrisos afivelados como os que fazem as meninas de um qualquer balcão de recepção, com saquinhos de pano a tiracolo para oferecerem a cada militar do Império um maço de cigarros de marca Aviz. Eu olhei o rosto da senhora que se postou na minha frente e senti uma navalhada da hipocrisia da situação em estar a ver aquela cara e não os rostos que eu queria ver mas não distinguia entre os lenços dos varandins.

A senhora entende-me um maço Aviz e diz-me sorridente “parabéns senhor alferes, por ir defender a pátria”. Senti a raiva crescer-me. Mas tinha que estar perfilado e em sentido. E tinha uma data de homens sob o meu comando. Crispei os dedos sobre o punho da arma.

Disse-lhe entre dentes como um sussurro, não perdendo a compostura na formatura: “meta o Aviz na cona e desapareça-me da vista!”. A senhora circulou para junto de outro militar, conservando o sorriso do protocolo. Já devia estar habituada. Tinha mesmo vocação para aquelas cerimónias.

A segunda e última vez que contactei o MNF, foi no primeiro Natal passado na Guiné, em que a malta do Pelundo teve direito à visita da Presidenta da coisa, D. Cilinha Supico Pinto em pessoa. Ela foi lá numa visita ultra-rápida, demorou uns minutos a distribuir discos da Amália Rodrigues a cada militar e zarpou para o helicóptero. Os militares ficaram atónitos, para que é que queriam o disco se ninguém tinha gira-discos?

Quando o helicóptero se preparava para subir, a malta já se tinha recomposto da surpresa e desatou quase toda a correr para o heliporto improvisado e, ainda o heli tinha as rodas no chão, a discaria da Amália subiu aos céus do Pelundo transformados em discos voadores.

Foi a escolta merecida que a D. Supico teve na sua viagem de regresso do Pelundo. A tropa ficou fascinada com aquela nuvem de discos da D. Amália que pareciam querer tapar o céu e desatou toda aos gritos “Oh Supico, mete-os na cona!”. Ela deve ter sorrido. Já devia estar habituada. Tinha mesmo vocação para aquelas cerimónias.

Com o passar dos anos, vêm-me os remorsos. Tantas ofensas a tão respeitáveis Senhoras. Sabendo todos que as suas pudicas partes anatómicas não foram feitas para armazenarem maços de tabaco ou discos, mesmo que sejam da marca Aviz ou transportem a voz da Amália.

Espero bem que outras prestações gloriosas as tenham compensado dos insultos da tropa chateada. Ainda para mais, fomos, com o apoio delas e dos seus esposos, defender a pátria e o império. Felizes, fomos. Patriotas também. Como o caraças. Só que, às vezes, as palavras resvalavam para a ordinarice. Acontece. As minhas atrasadas desculpas, na parte que me toca.

Guiné 63/74 - P172: Os nossos (des)encontros: do Niassa ao Pelundo, passando por Bissau (João Tunes)

1. Texto do João Tunes em resposta à mensagem de boas-vindas do Humberto Reis:

Ora bem, Humberto, a coisa começa a compor-se (isto é, começo a sentir-me em casa, o que não podia deixar de acontecer mais dia menos dia).

Afirmativo - confirma-se que eu, o Humberto e o Luís (mais uma data de outros), participámos no mesmíssimo cruzeiro do Niassa rumo a Bissau. Antes, estivemos portanto na mesma parada de despedida no cais de Alcântara , a que me refiro num post [meu, publicado no Bota Acima, em 7 de Abril de 2004].

Durante a viagem, confesso que não vi ninguém - comecei a emborcar à partida e só desliguei a torneira do whisky à chegada. E, pelos vistos, separámo-nos logo que metemos os pés em terra. O meu Batalhão só foi para o Pelundo (1) dois meses mais tarde, até lá foi-nos cometida a ocupação do Quartel de Santa Luzia em Bissau (portanto no sentido oposto a Brá) e foi para aí que fomos logo encaminhados.

Guiné > Bissau > Quartel de Transmissões, junto à estrada de Santa Luzia (1972).

© Sousa de Castro (2005).

Foto gentilmente cedidas por Sousa de Castro, ex-1º cabo radiotelegrafista, da CART 3494 (1972/74), aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74), pertencente ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.

Foi, aliás, um começo de comissão do caraças - na primeira noite, o paiol do quartel explodiu (não se soube se por descuido ou por sabotagem) e imagine-se a sensação de logo na primeira noite de Guiné apanhar-se com um paiol dentro do quartel a ir pelos ares (do género de grito de periquito: "Ai minha nossa senhora que aqui não passo do primeiro dia...").

Talvez ainda pior - no segundo dia, calhou-me estar de oficial de dia e os cozinheiros da CCS estrearem-se nas suas lides; fizeram borrada (por inexperiência porque antes tinham sido de todas as profissões menos de artes em culinária) e salgaram bem a comida, então os veteranos que estavam no quartel à espera do regresso não estiveram pelos ajustes e fizeram-nos logo ali a recepção com um levantamento de rancho.

Como era o oficial de dia a coisa sobrou para mim e, consultado o segundo comandante, este não esteve com meias-medidas, a ajuda que me prestou foi perguntar-me para o que é que eu queria a pistola que tinha pendurada no cinto, lá tirei a pistola e meti-lha nas mãos e recomendei-lhe "vá lá então o meu major e desate a matá-los"; o homem acalmou (com um "vá lá e veja se os convence..." e sem que arredasse um pé para tentar ajudar a resolver o quer que fosse), eu voltei a recolher a pistola e, mais calmo, fui falar com o pessoal, apelei-lhes à solidariedade com os camaradas recém-chegados, o que não foi fácil (uma das piores impressões que trago da Guiné era a forma como à medida que se iam reforçando os laços solidários entre os militares do mesmo quartel se iam perdendo os laços com os outros militares de outras unidades e, com o passar do tempo, desenvolvia-se um rancor sádico crescente dos veteranos para com os periquitos pois a noção do correr do tempo em falta para a hora do regresso era ampliada pela sensação que aos acabados de chegar ainda lhes faltava a eternidade para daquilo se livrarem se se livrassem) e lá consegui o sábio compromisso de a comida salgada ser retirada e improvisarem-se umas salsichas com ovos estrelados e batatas fritas.

No final da minha comissão, já vocês tinham regressado (dado que fiquei mais três meses como recompensa extra), calhou-me, vindo de Catió (esse batalhão também fora rendido), prestar serviço no Quartel de Adidos de Brá e aí apanhei várias tentativas de veteranos (2) quererem gozo com levantamentos de rancho , inventados só para chatearem mas, nessa altura, já eu era veterano, passado dos carretos e estava por tudo (no final, quando todos os meus camaradas dos dois batalhões em que estive já tinham regressado, cheguei à fase de "tanto se me dá ir como ficar e que tudo vá para a puta que os pariu" e que seria uma sublimação extremada do "tirem-me daqui", ou seja, estava tão farto da Guiné que já me faltava a vontade de sair ou de ficar) e tudo era resolvido em duas penadas a desmontar a basófia (a malta no mato comia o que havia, mas quando chegava a Bissau armava-se em fina e esquisita como vingança para com os "gajos que tinham o cú assente em Bissau", esquecendo-se que, muitas vezes, se enganavam no número da porta e estavam a lidar com quem as tinha batido mais que os finaços).

Agora que já estendi o guardanapo, seguem abraços para todos os ilustres tertulianos.

2. Comentário do Humberto Reis:

Porra!

Quem fala assim não é gago. Só tenho pena que tenhas aturado o Capitão Moás da companhia da PM que foi connosco durante o cruzeiro até Bissau.

Estás mais que admitido, falo por mim mas julgo que a maioria concorda. Precisamos de gente nova pois eu sou um miúdo ao pé de ti (sou colheita de 1946).

Mais uma vez um abraço de Boas Vindas e Boas Escritas, pois já vimos que, além da especialidade de Transmissões, também tens jeitinho para deixar a pena correr, ao sabor do imprevisto, sobre o papel.

Humberto
_________

Notas de L. G.

(1) Vd. post de 11 de Agosto de 2005, um texto de João Tunes, anterior à sua entrada para a nossa tertúlia > Guiné 63/74 - CXLIX: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco (Do Pelundo ao Canchungo)

(2) A expressão mais vulgar, no nosso tempo, na Guiné, era velhice, velhinhos, como oposto dos periquitos, os mais novos.

sexta-feira, 16 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P171: Boas vindas do Humberto, madrugador, ao novo tertuliano João

© Manuel Ferreira (2005) Guiné > Zona Leste > Povoação e aquartelamento do Xime > O campo de futebol (!)(1)(1972)

Foto gentilmente cedida por Manuel G. Ferreira, ex-soldado condutor auto, da CART 3494 (1972/74), aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74), pertencente ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.


1. Texto de Humberto Reis (ex-Fur. Mil., ex-CCAÇ 12, Bambadinca, 1960/71), que hoje madrugou (mensagem enviada às 7h48).

João Tunes:

Bem vindo a esta desorganização bem organizada pelo Luís Graça.

Estive a ler a breve descrição da tua apresentação e veio-me à memória de que também eu e o Luís fomos para a Guiné em Maio de 69. Se calhar fomos no mesmo barco de cruzeiros, o Queen Mary 2, também conhecido por Niassa, que saiu de Lisboa em 24 de Maio e chegou à Guiné em 29. Desembarcámos a 30 e fomos direitinhos para um resort que havia para os lados de Brá, denominado quartel de Adidos.

Aí, no sistema de TI (tudo incluído, até a bicharada), fomos comidos pelos mosquitos durante 3 noites, antes de nos meterem numa LDG com destino ao Xime. Feita a eclusagem para autocarros com ar condicionado, a mim calhou-me um daqueles carros chamados matador, dos tais que tinham uma abertura circular no tecto da cabine, sobre o lugar do chefe de viatura e que serviam para rebocar peças de artilharia, e lá fomos felizes e contentes, passando por Bambadinca e Bafatá, a caminho de Contuboel.

Esta breve descrição foi só para te descontrair e te sentires bem no meio desta rapaziada nova, na casa dos 50 e muitos (...).

2. Segunda mensagem do Humberto Reis, enviada ás 8h28:

Peço desculpa a Vossa Senhoria, meu tenente, pelo lapso que cometi de não o ter tratado adequadamente, como manda o RDM, na mensagem de Boas Vindas que lhe enviei anteriormente.

Aqui fica o meu pedido formal de desculpas perante a formatura geral desta pequena, MAS BOA, unidade militar de Bloguistas.

Dado que o Sr. Tenente é um rapaz novo, de quase 60 anos, como nós todos, já está na reserva desde os 45, pelo que agora passará a usar o seu título civil de Sr. Eng. Por outro lado, como aqui somos todos uns pindéricos de uns ex-militares, deixámos os títulos académicos na gaveta e utilizamos o que vem no BI, não fosse alguém querer-nos explorar pedindo um Projectito grátis a um Sr. Eng, uma consulta médica ao Sr. Dr. com preço reduzido e sem recibo, ou uma cunha do Sr. Prof. Dr. para uma entradita na Universidade, mesmo com média de 10.

Tudo isto serve para descontrair e desopilar que é o que nos faz mais falta.
Mais uma vez BEM VINDO ao seio, não à maminha, desta família. Um abraço e Bom Dia a todos.

Humberto Reis

3. Comentário do João Tunes (antes do almoço, que os ex-combatentes da Guiné e de outras guerras por enquanto ainda vão almoçando):


É, pá, obrigado, que essa do Vossa Senhoria já se me tinha varrido da memória.
E fica esclarecido que, sendo rapaz novo, não tenho "quase 60 anos". Esses já lá vão que os 61 estão a bater à porta (fui para a Guiné com quase 25 anos pois tinha tido adiamentos para concluir o curso).

E como a velhice é um posto, se não me querem considerar como tenente (bolas, era a talvez única oportunidade de saborear o tratamento!), ao menos devem-me o cumprimento Vossa Senhoria, o Nosso Mais Velho. Ou nem isso? Não tem problema. Fique, como deve ficar, o tratamento pelo nome e por tú que isto não é malta de modas.

quinta-feira, 15 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P170: João Tunes, o novo tertuliano

Texto de João Tunes, novo membro da nossa tertúlia:

Camaradas,

Agradeço terem-me aceite na tertúlia. Tentarei merecer a vossa meritória obra e contribuir para ela com os meus modestos préstimos.

Passo a fornecer os dados "curriculares" para que figure na galeria dos ilustres "tertulianos":

- Nome: João Tunes

- "Posto": Alferes Miliciano de Transmissões de Infantaria durante a comissão na Guiné, promovido a "Tenente Miliciano" quando na disponibilidade (pelo que, considerando o devido respeito aos galões e aos procedimentos militares, deve ser este o posto em que me deve ser dado tratamento).

- Unidade: Várias (por favor não me peçam para lembrar os números)

- Locais: Bissau-Pelundo-Catió-Bissau

- Tempo de Comissão: Maio 1969/Maio 1971 (fiz 24 meses de comissão pelo facto de ter sido punido com 3 dias de prisão no Pelundo e que teve como consequências suplementares: 3 meses de comissão "extra", perda de direito a gozo de férias - medida depois revogada - e mudança imediata de unidade com transferência compulsiva de uma zona "calma" para a então considerada "pior" - Catió).

- Avaliação pela instituição militar:

- 3 dias de prisão (1 dia de prisão atribuído pelo Cmdt de Batalhão do Pelundo por "insubordinação" - ter-me recusado a cumprir ordem de bater num cabo prevaricador na hora de regresso a quartel com a agravante de, à ordem do TC "nosso alferes, vai ali o cabo ..., vá ter com ele e dê-lhe uma chapada", ter respondido "Eu não bato nem deixo bater nos homens que comando, bata-lhe vc se fôr capaz mas depois vai ter que se entender comigo de homem para homem". De seguida, a pena foi agravada pelo General Spínola para 3 dias de prisão com as consequências disciplinares conexas.)

- Louvor conferido pelo Cmdt de Catió (TC Mello de Carvalho) pelo desempenho das funções militares, disponibilidade para correr todos os riscos e participar em qualquer operação, mais valentia militar nas operações de penetração em território totalmente controlado pelo IN. Nota: este louvor, não me livrando do "reino do Nino" nem da extensão do tempo de comissão, proporcionou-me o bem supremo de ter podido recuperar o direito a férias que perdera pela punição e assim recuperar a oportunidade feliz de ver a minha filha Catarina que nascera dois meses antes e preparar-me para que as morteiradas do Nino, fizessem a mossa que fizessem, não me tirariam dos olhos a imagem do rosto da minha filha.

- Residência: Corroios (Seixal)

- Situação sócio-profissional: Desempregado (após 31 anos de actividade profissional como engenheiro químico na Galp)

- e-contactos:
mail - joao.tunes@netcabo.pt;
blogue - http://agualisa3.blogs.sapo.pt.

(...) Para todos, saudações amigas e camaradas do

João Tunes
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Nota de L.G.:

Intem já tinha chamado a atenção de todos os tertulianos para um post fabuloso que o João Tunes, o nosso penúltimo tertuliano, escreveu no blogue dele – Água Lisa (3): Guiné-Bissau: Armas em sucata, memória viva... É a nosso respeito, de nós e dele. A única coisa que está a mais é um elogio à minha pessoa (não havia necessidade…): alguém tem que fazer estas tarefas... Todos podemos contribuir de mil e um maneiras: basta darem os vossos dois cêntimos de tempo para a tertúlia (dos ex-combatentes da Guiné)... De em vez em quando...

O João é um senhor gajo, que pensa bem e que escreve melhor, um homem de cultura, sensibilidade e talento. Aproveitei, já ontem, para lhe dar, mais uma vez, as boas vindas à nossa tertúlia.

quarta-feira, 14 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P169: Levar a "carta a Garcia" ou a redescoberta da Guiné (Luís Graça)


© Manuel Ferreira (2005) Guiné > Zona Leste > Aquartelamento de Mansambo > Refeitório (2) (1973)

Foto gentilmente cedida por Manuel G. Ferreira, ex-soldado condutor auto, da CART 3494 (1972/74), aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74), pertencente ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.

Amigos & camaradas de tertúlia:

Eles não me levam a mal se eu vos der conhecimento dos e-mails (e dos mimos) que trocaram nestes últimos dias... em privado.

Eles... são o Humberto Reis e o Marques Lopes. Se eles se zangarem comigo, pior para mim... Isto não serve, obviamente, de incentivo para o resto dos membros da tertúlia usarem e abusarem da magnanimidade do nosso camarada Humberto Reis. De qualquer modo, foi uma das coisas (bonitas) que a escola da guerra, lá na Guiné, nos ensinou: a sermos magnânimos e solidários... Simplificando: a isto chama-se simplesmente camaradagem!

7 de Setembro de 2005:

1. Amigo e Camarada Marques Lopes:

Aqui vai o painel com a divisão da Guiné nas 72 partes cujas cartas a 1/50.000 adquiri. Em Dez de 94 já me custaram 450$00 cada uma, conforme factura do (...) Centro de Documentação e Informação do Instituto de Investigação Científica e Tropical (...).

Humberto Reis

2. Amigo e camarada Humberto Reis

Mais uma vez os meus agradecimentos. Não vou comprar as 72 folhas, mas vou ver se consigo aquelas que te referi, a 16, a 17 e a 28. A tua informação é extremamente útil (...).

Marques Lopes

9 de Setembro de 2005:

3. Amigo Marques Lopes:

Necessito que me indiques um endereço para onde te possa enviar uma encomenda postal. Tomei a liberdade de tirar fotocópias, infelizmente a preto e branco, mas já dá para matares saudades e passares uns serões a ver por onde andaste, das cartas a 1/50.000 que gostavas de ter. Anexo também a tal "Declaração" da embaixada, que tive de obter para poder comprar as cartas (...).

Humberto Reis

4. Caro amigo Humberto Reis:

És sensacional! Claro que estou interessado nas fotocópias que tiraste e desta vez deixo-te os meus, desta vez, mais que muitos agradecimentos. Para o que estou a escrever são importantísimas, pois que me vão fazer lembrar ao pormenor todos os caminhos e locais e, por eles, também as situações, certamente. Quando enviares manda-me um papelinho com a indicação das despesas feitas com fotocópias (o transporte vejo pelos selos) bem como o teu NIB para eu te pagar.

A minha morada é (...).

Marques Lopes

12 de Setembro de 20045:

5. Amigo António:

As despesas das fotocópias são: uma rodada aqui, na messe, aos que estiverem aqui mais perto ( como de costume os que estiverem em operações no mato lerpam na bebida) quando vieres cá ao burgo com algum tempo disponível.

As despesas de correio são: duas rodadas em vez de uma.

Por último permito-me MANDAR-TE DAR UMA VOLTA (para não dizer pior) SOBRE A QUESTÃO DO PAGAMENTO. Só o prazer que já estou a sentir com a tua alegria em teres estas cartas já pagou tudo.

Vão seguir hoje mesmo pelo correio.

Um abraço e diverte-te a recordar o que de bom passámos naquela terra (não venham dizer que foi tudo mau).

Humberto Reis

13 de Setembro de 2005:

6. Amigo Humberto Reis

Cá recebi as cartas que me enviaste. Um dia que for aí abaixo vou-te pagar a atenção e amabilidade, e trabalho, que tiveste. Estão prometidas as duas rodadas!

É fenomenal como estes mapas nos avivam a memória... Há tempos escrevi um texto do blogue e falei na bolanha de Canhamina. Propondo mistérios e eventuais utilizações de nomes fictícios, o Luís Graça perguntou se esse nome alguma vez terá existido...

De facto não existe, mas porque eu o confundi com o nome verdadeiro. E o nome está na carta que me enviaste de Bambadinca, que apanha grande parte da quadrícula da companhia de Geba. Lá está CANHAGINA, a seguir a Sare Madina (que eu também não vira em mais mapa nenhum), no caminho que eu segui para Sinchã Jobel (1) (também bem colocada na carta) nos idos tempos da Op Jigajoga (2).

Vão-me ser grandemente úteis estas cartas.

O meu obrigado e um abraço.

Marques Lopes


14 de Setembro de 2005:

7. Amigo e Camarada António Marques Lopes:

É uma grande alegria para mim sentir o quão bom foi teres olhado para esses bocados de papel e reviveres 35 anos atrás. Se calhar vieram-te as lágrimas aos olhos por recordares coisas boas, que também as houve.

Não há problema nenhum por isso. Costumamos dizer que só os burros (de 2 patas) é que não choram. Quando em Bambadinca, 25 após ter saído de lá, fui reconhecido por uma lavadeira (e isso está documentado num vídeo que um camarada nosso, que foi comigo, fez) também chorei de alegria. Aquela terra foi o nosso habitat natural durante quase 2 anos, e a maioria daquela gente até tem saudades nossas. É por essas e outras coisas semelhantes, que andamos aqui a contactar uns com os outros. Eu chamo a isto "Saudades".

Temos de nos manter vivos e o Luís Graça vai mantendo este endiabrado blogue.

Um abraço,
Humberto
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post,de A. Marques Lopes, de 30 Maio 2005 >
Guiné 69/71 - XXXVI: Na bolanha dá para pensar...

(2) Vd. post, de A. Marques Poes, de 30 de Maio de 2005 >
Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)

terça-feira, 13 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P168: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã (Luís Graça)



Guiné > Zona Leste > Aquartelamento de Mansambo > Refeitório (1)(1973)

Foto gentilmente cedida por Manuel G. Ferreira, ex-soldado condutor auto, da CART 3494 (1972/74), aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74), pertencente ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.


© Manuel Ferreira (2005) 



A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã 


1.− E no fim quem levou a taça foi o capitão!... Quer-se dizer, mais uns galões, mais graveto ao fim do mês…

− Mas, ó Campanhã, era a vida dele, a carreira dele!  atalhou o ex-alferes Pimentel, transmontano, que nada tinha perdido do seu espírito de subserviência em relação a todas as hierarquias deste mundo.

 E depois nós éramos milicianos, estávamo-nos nas tintas para as divisas e os galões! – atalhei eu, tentando sem jeito deitar água na fervura.

− E, nós, soldados do contingente geral! – ripostou o Campanhã.

 Estávamos todos metidos no mesmo barco, essa é que essa! - opinou o Pimentel.

 
   Mas mesmo assim havia diferenças, carago! No meio daquela merda toda – desculpem lá a expressão! – vocês até eram uns fidalgos: tinham patacão, graveto; tinham messe, bar, bebidas estrangeiras; iam matar a malvada a Bafatá; comiam umas garinas, brancas ou verdianas de vez em quando, em Bissau; vinham de férias, na TAP, à Metrópole…

E lá continuou o reguila do Campanhã a vociferar contra os privilegiados dos tugas que na guerra tinham messe, com direito a comer de garfo e faca e toalha branca na mesa:

 Alguns de vocês, alferes e furriéis (não vale a pena citar nomes) até nem queriam outra vida se não fosse terem de andar com a puta da canhota no mato!... Mais: alguns milicianos que eu conheci, em Bambadinca, nunca tinham ganho um tostão na puta da vida, a não ser a mesada do velho…

 Calma aí e pára o baile, ó Campanhã! Estás a ser injusto, ao fazer generalizações abusivas ! - interrompeu, de chofre, o Pimentel.

− Muitos de nós, furriéis e alferes, já trabalhávamos... - comentei eu, ajudando a cortar o fio à meada do discurso torrencial do Campanhã, a quem os primeiros goles da cerveja da Trindade começava a abrir as goelas da desinibição.

−  Cá o Zé Soldado como eu já era chefe de família e há muito que fossava no duro, antes de ir parar com os quatros costados à Guiné. É bom que não se esqueçam isto, carago!... Quanto ao resto, reconheço que éramos todos tugas e iguais, que elas no mato não traziam código postal!

2. O Campanhã, o nosso soldado Campanhã!... Era com emoção, com alguma emoção, mal disfarçada, que eu voltava a abraçar, ali no Trindade, no Bairro Alto, em Lisboa, dez depois, em 1981, o soldado Campanhã, com o seu inimitável sotaque tripeiro e a franqueza que era timbre da boa gente do Norte.

Tínhamo-nos tornado amigos (ou, talvez melhor, confidentes e cúmplices um do outro, camaradas, no sentido etimológico do termo, já que na tropa não havia amigos, mas apenas gente que partilhava o mesmo chão, a mesma caserna, o mesmo bivaque, o mesmo abrigo, a mesma tenda, o mesmo beliche, a mesma cama, o mesmo buraco) nessa longa noite em que viajáramos juntos, de comboio, do Campo Militar de Santa Margarida (1) até ao cais de embarque, em Lisboa.

Entre dois tragos de bagaço de vinho verde, rasca, o Campanhã fora-me contando a sua vida, os seus sonhos, os seus projectos, a mim, seu confidente de circunstância, vizinho de lugar e companheiro de infortúnio, lucidamente deprimido, à medida que o comboio da CP, requisitado pela tropa, galgava as terras banhadas pelo Tejo, pela calada da noite.

Para lá do Douro, ficava uma infância pobre, uma adolescência truculenta, uma filha de mãe solteira, um futuro incerto de operário do têxtil. Filho de pequenos rendeiros pobres, de Entre Douro e Minho, cedo pegara na trouxa para apanhar o comboio da Linha do Douro e assentar arraiais numa ilha na freguesia de Campanhã, razão de ser da alcunha que lhe deram na tropa.

− Em busca de melhores dias, já que em casa o caldo, a broa e o binho berde tinto, o "jaqué",  mal chegavam para dez bocas.

−  Fome... mesmo, a sério ? - insinuei eu, timidamente, cujo rio mais a Norte que conhecia ero o Vouga...

 Não, meu furriel, você não sabe o que é isso: uma sardinha para três em dia de festa; um bocado de toucinho quando se matava o porco lá pelo Natal; um caldo de água quente, pencas e pão de milho esfarelado para aconchegar o estômago; batatas com batatas, quando as havia… Castamhas, na época delas...Mas um homem habitua-se a tudo... Fome, fome, não. Digamos que passei necessidades...

E no Porto, na sua Campanhã, ainda popular e operária, faria entretanto a sua "universidade da vida": marçano, barbeiro, trolha, futebolista, empregado de café, chulo de puta fina – “azeiteiro, como se diz na minha terra”… até descobrir o duro caminho que o levaria aos portões da fábrica.

 Cães grandes ?!... Aprendi a tirar-lhes o chapéu e a cuspir-lhes na sombra desde o dia em que, descalço, mas já com pêlo na venta, acompanhava o meu velho  na visita anual à Casa do Fidalgo, pelo São Miguel, para acertar a renda: dois terços do vinho, metade do milho, a melhor fruta para a senhora, a viúva de um juiz salazarista que tinha mais quintas na zona do que dedos na mão…

Falava do seu velho pai, com ternura contida e com o respeito comovido que lhe mereciam os mortos de que a História não fala. Tinha falecido em Fevereiro de 1969, nas vésperas da ordem da sua mobilização para a Guiné.

 As alegrias passam, meu furriel. Só as desgraças e as injustiças nunca se perdoam e nem se esquecem. As tainadas, as bezanas, tudo isso a gente caga e mija... Veja o meu falecido pai. Trabalhou uma vida inteira como uma besta de carga para morrer pobre como Job, sem um cantinho a que chamasse seu, como qualquer cabaneiro. Sem saber uma letra. Sem nunca ter ido sequer à Foz a ver o mar… Conheceu muitos fidalgos, como ele chamava aos senhorios ou patrões… Sempre o conheci de chapéu na mão, agradecendo a suas senhorias o grandessíssimo favor de continuar na terra por mais um ano, depois do São Miguel… Viveu uma vida emprestada, viveu por favor... É isso que me revolta, carago. E é por isso que me chamam reguila… Mas eu digo-lhe: há coisas que um homem nunca esquece por muitos tombos que dê na puta da vida, por muitas bezanas que apanhe ou por muitas sacanices que faça… E eu já fiz muita merda, nesta meia dúzia de anos em que me tornei homem.

Curiosamente, verificava ali no Trindade, dez anos depois de "tudo ter acabado em bem", como dizia o safado do Pimentel, que nenhum de nós se desculpava por feito aquela guerra e muito menos de a ter perdido. Para alguns de nós, por ventura para a maior parte de nós, tugas, agora despidos, desfardados, paisanos, passados à peluda, nus de corpo e alma como no dia em que fomos à inspecção, alcunhados de antigos combatentes do ultramar, últimos guerreiros do império colonial português, mal amados 
−  "mas vivinhos da costa como o carapau, graças a Deus!" (era a voz efeminada do Peniche, o básico, que sempre acabara por ir parar à vida artística da noite)  , tinha sido afinal a primeira e a última grande aventura das nossas vidas cinzentas, um rito de passagem, uma iniciação (entre dolorosa e divertida) à vida adulta. Uma espécie de acidente de percurso. Um pesadelo climatizado. Uma trovoada fantasmagórica numa bela noite de verão tropical. Um abcesso. Um furúnculo. Uma dor de dentes...

   Um parto, meu furriel, um parto!  arrematava o Peniche, no meio da galhofa geral.

Talvez, eu, ingénuo, esperasse ouvir a confissão pública de alguém que, agora, à distância dos acontecimentos e na atmosfera distendida do Trindade, quisesse tomar partido e se levantasse para fazer um discurso puro e duro sobre a traição dos capitães de Abril, do Spínola, do Caetano e de todos os gajos que andaram a gozar connosco. Ou então sobre o trágico equívoco que fora a guerra colonial, ceifando vidas, gastando cabedais, hipotecando o futuro. Mas não, nenhum dos presentes levantara a caneca para gritar Viva ou Morra !...

É que todos fazíamos o jogo da cumplicidade, jogo cujas regras tacitamente ninguém estava disposto a violar. Porque o momento era único, era mágico, e todos sabíamos que nunca mais voltaria a repetir-se, apesar das trocas de cartões e de fotos da família e das promessas de, para o ano, irmos comer uma valente feijoada à transmontana e provar a famosa posta mirandesa, para lá do Marão "onde mandam os que lá estão" (assegurava o Pimentel, "agora autarca do poder local democrático").

 Nunca lá pus os butes, e bibo no Porto, carago
    ironizou o Campanhã que continuava, a miúde, a trocar os vês pelos bês, sentindo que ainda lhe achavam alguma graça, os gajos do Sul.

No fundo, sabíamos que, na vida, há momentos irrepetíveis, pelo que nem os fantasmas, dolorosos, do passado, nem as paixões, ainda mornas, do presente, nem muito menos as inquietações, impercetíveis, do futuro deveriam perturbar este insólito e fugaz encontro de meia dúzia de ex-combatentes da Guiné, mesmo quando, já no fim do jantar e depois de uma nova rodada de uísques (de uma Old Parr que o vago-mestre trouxera de lembrança, "from Sctoland to the Portuguese Armed Forces"), alguém tivera o mau gosto (ou o azar) de evocar os mortos da companhia...

 Agora é que foderam tudo! – arrematou o Campanhã.

Nunca conheci nenhuma alma tão sensível como a dele. Ou melhor: nenhum ator, com lágrima tão fácil como a dele... 

Fonte: (Pre)texto: “Na Guiné, longe do Vietname” (inédito). © Luís Graça (1981-2005)(2)

Revisto: 24/11/2022
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 24 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXX: A cerimónia de despedida no Campo Militar de Santa Margarida

(2) Nenhum destes heróis foi condecorado, muito menos o Campanhã (que antes de ir parar à Guiné levou uma porrada, sendo despromovido do posto de cabo atirador de infantaria). Felizmente que nenhum deles foi condecorado no 10 de Junho, a título póstumo. Também nenhum destes heróis existiu. Nem poderiam existir: afinal, perdemos a guerra. Em todo o caso, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.

Guiné 63/74 - P167: Tabanca Grande: Luís Moreira, Alf. Mil. Sapador, CCS/ BART 2917


© Luís Moreira (2005)

1. Mensagem enviada pelo Luís Moreira ao David Guimarães, com data de 11 de Setembro de 2005:

Caro camarada ex-combatente:

Pela mão do Belmiro Vaqueiro, que conheço há muitos anos mas que só há pouco tempo soube que também ele esteve na Guiné nos mesmos locais que percorremos, tive acesso ao site do Luís Graça e a felicidade de rever fotos de locais que muito me dizem e de alguns camaradas do meu Batalhão, no qual te incluis assim como o Padre Poim, o Quaresma, o Cap. Espinha de Almeida, o Alf. Soares e outros a quem a memória já não me ajuda a recordar.

Estive em Bambadinca na CCS [do BART 2917] e sou o ex-alferes sapador Luís Moreira que fui ao ar com uma mina anti-carro no reordenamento dos Nhabijões (espero não estar a errar no nome).

Na sequência desse acidente passei aos serviços auxiliares e fui colocado no Batalhão de Engenharia, em Bissau, até ao fim da minha comissão que terminou já depois de vocês terem regressado e que fez com que eu hoje faça parte do grupo dos DFA [Deficientes das Forças Armadas].

Infelizmente não me recordo do nome da maioria dos camaradas com quem convivi, talvez devido ao traumatismo craneano que sofri na sequência do acidente. No entanto gostaria de recordar e contactar com o maior número de camaradas para tentar reconstituir esse período de quase um ano que passei em Bambadinca.

Tenho algumas fotos que vou retirar da "arca" onde têm estado depositadas todos estes anos, e que depois enviarei. Ainda recordo o nome dos alferes Machado e Guerreiro, da CCS, e tenho bem presente a figura do alferes mecânico, mas já não lhe recordo o nome. Outra figura ímpar que recordo com saudade é a do alferes Vacas de Carvalho, das Daimler, e da sua viola que nos animava os serões.

Fico a aguardar notícias e possíveis contactos.

Um abraço, Luís Moreira.


2. Mensagem do David Guimarães, com data de ontem:


Olá, Luís Moreira. Se pelo nome já não me lembrava de ti, já o facto de seres o Alferes Sapador da CCS do BART 2917 da CCC me diz muito mais. Efectivamente o tempo passa e os nomes também. Hoje resta-nos a imagem que tínhamos na altura : eramos uns miúdios, todos muito novinhos....

Eu estive na CART 2716 do Xitole, comandada pelo Cap Mil Espinha de Almeida... Os Alferes eram o Soares, o Correia, o Sampaio e o Coutinho que foi substituir o Ferreirinha (que se tinha ferido na instrução ainda na Pesada 2, isso te lembrarás possivelmente). Se do Coutinho não tiveres a imagem, é natural que tenhas a do Ferreirinha que foi desmobilizado do nosso Batalhão (mais tarde parece que foi num BART para Moçambique)...

Guiné > Zona Leste > Xitole > CART 2716 >1970: Da esquerda para a direita: O Cap Mil Espinha de Almeida, o Fur Mil Guimarães e o Alf Mil Soares.

© David J. Guimarães (2005).

Os Furriéis desta CART 2716 eram o Rei, o Augusto, o Quaresma, o Leones, o Santos, o Martins, o Ribeiro, o Ferreira e eu, o Guimarães, todos natiradores. Depois havia ainda o Meirinho, o enfermeiro; o Cabete, o mecânico; o Marques, Vago-Mestre e o Henriques, de armas pesadas. Estes eram os quadros da CART 2716...

No nossa página sobre o Xitole podes ver a minha figura de então - eu também era daqueles que tinha numa mão a espingarda e noutra mão a Viola... Avivarás a memória... Creio que um dia foste tu que me levaste ao [Major] Anjos de Carvalho para me apresentar: estavas de oficial de dia.

Já da malta da CCS, de Bambadinca, o tempo me fez esquecer os nomes. Mas, como Alferes Sapador, deves lembrar-te do Furriel Rebelo, também sapador, do Vinagre, o mecânico... O Machado é daqui de Riba D'Ave. Digo daqui, do Norte e perto relativamente de onde vivo (eu moro em Espinho). Guerreiro, só hoje mo lembraste... Do Vacas de Carvalho, sim, com a sua viola, e que o Machado também acompanhava...

Claro que a CCS enquadrava o Comando: Tenente Coronel Magalhães Filipe , que foi substituído pelo Tenente Coronel Polidoro Monteiro (cuja figura já aqui evoquei, neste blogue); Major Anjos de Carvalho, 2º Comandante; Major Barros e Bastos, major de operações; e o Cap Passos Marques, comandante de Companhia. Depois vocês todos...

No Xime [CART 2715], e de nome, lembro-me do [Furriel] Cunha (morto em combate) [vd. post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970) ], do Furriel Carias, do Baptista ... Outros nomes já não me ocorrem. Lembro-me do Alferes Torres, esse de Mansambo. Enfim, a memória esvai-se porque já lá passa muito tempo...
Quero contudo apresentar-te ao ex-Furriel Henriques, da CCAÇ 12, e que tem um blogue importante onde estamos a colocar a nossa guerra toda. Creio que ele esteve envolvido nesse acidente de que tu saíste muito maltratado...

Mando este mail com conhecimento a ele e vamos continuar a nossa guerra, reconstituindo as nossas memórias, o que só nos fará bem...

Um abraço, Guimarães (ex-Furr Mil da CART 2717, a companhia do Capitão Espinha de Almeida).

Luís Graça: mando-te aí um alferes que conheceste pela certa - um abraço, David Guimarães.

3. O meu comentário:

Amigos & camaradas de tertúlia:

Façam o favor de se acomodar e arranjar espaço, na nossa camarata, para mais um camarada da Guiné. Ele chegou aqui por mão do Belmiro Vaqueiro e do David Guimarães. Era alferes sapador da CCS do BART 2917 (1970/72), sedeado em Bambadinca.

E, espantosamente, é o mesmo que foi vítima do rebentamento da mina a/c, accionada às 11.25h, do dia 13 de Janeiro de 1971, pela viatura Unimog 411, conduzido pelo nosso (da CCAÇ 12) soldado Soares que ia buscar, a Bambadinca, a 2ª refeição, para o pessoal destacado no reordenamento de Nhabijões…

O Soares teve morte imediata, tendo ficado gravemente feridos um oficial (o Luís Moreira) e um soldado da CCS/BART 2917, mais o nosso (desta tertúlia) Jaquim Fernandes, furriel miliciano da CCAÇ 12...

Eu, pessoalmente, nunca mais esqueci essa data fatídica de 13 de Janeiro de 1971... Porque logo a seguir fui eu, mais o Furriel Mil. Marques e o nosso grupo de combate, em socorro das vítimas, que fomos cair noutra mina anticarro, no mesmo sítio, à entrada do reordenamento de Nahbijões...

É claro que a malta da CCAÇ 12 se lembra dele, Luís Moreira: estou a referir-me ao Tony Levezinho, ao Joaquim Fernandes e ao Humberto Reis, além do blogador, que fazem parte desta tertúlia…

Por sua vez, o Luís Moreira lembra-se de amigos comuns, que conviviam com a malta da CCAÇ 12 (a velhice de Bambadinca, partir de meados de 1970, com a rendição do BCAÇ 2852 pelo BART 2917), tais como o Alferes Machado (de Riba D’Ave) ou o Alferes Vacas de Carvalho... Lembra-se do Furriel Cunha, do Xime, que morreu na operação em que participámos (Op Abencerragem Candente, em 26 de Novembro de 1970)...

Em suma, o Luís Moreira está em casa e é bem vindo. Entra, camarada. Temos muito que conversar.

Luís Graça (ex-furriel miliciano Henrqiues, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).


PS – Luís Moreira: Aqui vai o endereço de e-mail do Joaquim Fernandes que ia contigo no Unimog e que hoje mora no Barreiro (haveremos de voltar a esta trágica estória de Nhabijões). Se assim o entenderes, manda-nos uma foito tua, antiga e actual, que é para gente te pôr na fotogaleria.

segunda-feira, 12 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P166: No "reino do Nino": Catió, Cacine, Gadamael, Guileje (1970) (João Tunes)


Brazão actual de Catió, vila da Guiné-Bissau
Fonte: International Civic Heraldry (por sugetsão do nosso tertuliano Jorge Santos)

Texto de João Tunes (que, em 1970, era alferes miliciano de transmissões na CCS do Batalhão sedeado em Catió):

O Afonso Sousa, a quem agradeço a saudação de amizade (com o exagero do tamanho da efusão de um abraço camarada) pergunta-me sobre a localização de Ganjola (onde terá estado o José António, soldado da Lourinhã e justamente evocado) e enumera uma data de nomes de tabancas da zona Sul.

Ora, em 1970, quando estive em Catió (e esse Batalhão comandava todas as unidades no Sul até à fronteira da Guiné-Conacry) todos os pontos assinalados (que evoco por mera ressonância de memória) estavam no mapa das NT assinalados como pontos a bombardear (por aviação e artilharia) ou para sofrerem golpes de mão de forças especiais.

Porque tudo isso estava sob absoluto controlo militar e populacional do "Reino do Nino" (Frente Sul do PAIGC, comandada por Nino Vieira). As nossas únicas posições, e com dispositivos meramente defensivos e de apoio a operações especiais, já só eram: Catió (comando do Batalhão), Cacine, Gadamael e Guileje.

Por natureza das minhas funções militares eu, pelo menos uma vez por mês, tinha de dar a volta a todos os Quartéis do Sul e o único meio de comunicação entre qualquer combinação de dois quartéis era apenas por via aérea. Ou seja, os quartéis enumerados eram ilhas NT (únicas) no meio de território libertado pelo PAIGC. E todas as unidades resistiam numa postura defensiva e de sobrevivência (todos os quartéis eram sistematicamente flagelados pela artilharia do PAIGC) e a capacidade operacional (mais evidente em Gadamael em que se dispunha de uma unidade de blindados ligeiros que permitiam um certo raio de acção) era garantir a sobrevivência da presença militar e as populações sob controle, funcionando ainda como ponto de apoio e retaguarda de operações de golpes de mão e emboscada a realizar por paras, fuzas e comandos.

Os dramas em 1973 de Guileje e Gadamael foram como que a prova do "algodão" (não enganaram - faltando o apoio aéreo, toda a zona passou a ser de defesa e sobrevivência impossíveis, sobrando a opção racional da debandada ou a irracional do martírio). Assim, o quartel (destacamento) a que se refere o José António na sua carta ao "Alvorada" de 1965 (Ganjolá, confirmando-se que era cerca de Catió) (1), a que se seguiu a sua morte, terá sido depois ocupado pelo PAIGC (desculpem lá, NT ainda consigo usar mas essa do IN é que não me passa pelo estreito) e portanto constava já no meu tempo (1970) não de território com bandeira portuguesa hasteada mas sim do "Reino do Nino".

Abraços do
João Tunes
___________

Nota de L.G.:

(1) O nosso post de 8 de Setembro de 2005 (Guiné 63/74 - CLXXXI: Antologia (18): Um domingo no mato, em Ganjolá ) foi gentilmente reproduzido no sítio do João Tunes - Água Lisa (3) -, em post de 9 de Setembro de 2005, com o seguinte comentário que ajuda a contextualizar e a compreender o conteúdo da carta, escrita pelo soldado Nogueira, destacado (e provavelmente morto) em Ganjolá (1965):

"Esta carta tem quarenta anos. Foi uma das últimas enviadas pelo Soldado nº 2955/63 antes de se encontrar com a morte na terra da Guiné-Bissau. Foi publicada no quinzenário regionalista Alvorada da Lourinhã. Reveladora da forma muito própria como os soldados do exército colonial português, de uma forma geral, sentiam a atmosfera da guerra e procuravam conservar o optimismo e a auto-estima. Embora se notem os cuidados sublimados na sua redacção por ser uma carta dirigida a um jornal da época, portanto sabendo que existiam os crivos da polícia e da censura, e referindo-se a um teatro de guerra que só se agravou dramaticamente mais tarde, a candura épica do povo fardado está ali entranhada e que é um dos muitos factores que ajudam a explicar como foi possível que, no fascismo-colonialismo português e durante treze anos, centenas de milhares de cidadãos portugueses aceitassem lutar e morrer, procurando matar e sobreviver, para prolongar o pesadelo da quimera de uma demência imperial.

"Texto e imagem obtidos no blogue do Luís Graça".

Guiné 63/74 - P165: Alpoím Calvão e Amílcar Cabral (Marques Lopes)

Texto do A. Marques Lopes:

Caros amigos:

Estou completamente de acordo que o principal é contarmos as nossas experiências pessoais. Isso é um contributo importante e fundamental para conhecermos a totalidade do que foi a nossa experiência colectiva durante a guerra colonial, nomeadamente na Guiné. A visão que cada um de nós teve foi a do real e do concreto, experimentada no terreno. Na altura, foi aquilo que vivemos, foi aquilo que vimos, foi os sentimentos que experimetámos com o que nos tocou directamente.

Para alguns certamente, mas para a generalidade não houve tempo para reflectir, era o imediato que exigia acção, não reflexão sobre as razões da acção. Daí que eu pense que, decorridos tantos anos, a reflexão já feita, a que tivemos tempo e condições para fazer, nos possa dar já uma outra visão, não subordinada ao ter que disparar para não morrer, ao ter que matar para poder viver.

É pois natural que, perante certas opiniões e experiências, possamos já dar outras opiniões fundamentadas no nosso sentimento íntimo, construído na realidade vivida, naquilo que soubemos e viemos a saber depois. O esclarecimento depende desta troca de opiniões.

Permitam-me, então, que faça algumas considerações sobtre a entrevista de Alpoim Calvão de que só agora tomei conhecimento e que está, em minha opinião e usando a bela expressão do novo membro da nossa tertúlia (de acordo com a entrada dele!), pintada e filtrada de um só côr.

Não sei onde é que Alpoim Calvão foi buscar o "Congresso do PAIGC de 1969, em Conakry". É que, são dados históricos, o PAIGC realizou dois congressos antes da independência da Guiné: o primeiro realizou-se, de 13 a 17 de Fevereiro de 1964, em Cassacá, a cerca de 3km a SW de Catió, durante a chamada Batalha de Como, liderada por Nino Vieira; o segundo realiza-se a 18 de Julho de 1973 em Madina do Boé, seis meses depois do assassinato de Amilcar Cabral e dois meses antes da declaração unilateral da independência. Como pode ele ter documentos de um congresso que não existiu?... Estranho, pelo menos e com boa vontade.

Sobre quem o mandou matar, já o próprio Amilcar Cabral tinha adivinhado quem seria, num documento que distribuíu aos quadros do PAIGC em Março de 1972 (in "Guiné-Bissau - Nação Africana Forjada na Luta", de Amilcar Cabral, editado por Maria Natália Teixeira Lopes, em Lisboa, 1974, pp 123-125):

"O objectivo principal do inimigo é destruir o nosso Partido, porque em África e em todo o mundo o seu prestígio e o prestígio dos seus principais dirigentes estão no auge.

"Ele está convencido de que a prisão ou a morte do principal dirigente significaria o fim do Partido e da nossa luta.

"Por isso mesmo, o objectivo real dos portugueses na sua tentativa de invasão da República da Guiné (Conakry), em 22 de Novembro de 1970, era o assassinato do secretário geral do Partido e a destruição da base na retaguarda da revolução constituída pelo regime de Sékou Touré.

"Numa palavra, destruir o Partido agindo no seu interior.

"O plano inimigo far-se-á em três fases:

"Primeira fase:

"Actualmente, muitos compatriotas abandonam Bissau e outros centros urbanos para se juntarem às nossas fileiras. Nesta ocasião, o general Spínola espera poder introduzir agentes (antigos ou novos membros do Partido) nas nossas fileiras.

"A sua tarefa: estudar as fraquezas do nosso Partido e tentar provocações apoiando-se no racismo, no tribalismo, opondo os muçulmanos aos não-muçulmanos, etc.

"Segunda fase:

"1. Criar uma rede clandestina (penetrando, por exemplo, no Partido e nas forças armadas);

"2. Criar uma direcção paralela, se possível com um ou dois agentes e alguns dirigentes actuais do Partido (de entre os descontentes);

"3. Desacreditar o secretário geral, para preparar a sua eliminação no quadro do Partido ou, se a necessidade o impuser, pela sua liquidação física;

"4. Preparar a nova direcção clandestina para fazer dela o verdadeiro organismo dirigente do P. A. I. G. C.;

"5. Paralelamente, lançar uma grande ofensiva para aterrorizar as populações dos territórios libertados.

"Terceira fase:

"a. No caso de falhar a segunda fase, tentar um golpe contra a direcção do Partido, fazendo assassinar o seu secretário geral;

"b. Formar uma nova direcção baseada no racismo e opondo guineenses e caboverdianos, utilizando o tribalismo e a religião (muçulmanos contra não-muçulmanos).

"c. Impedir a luta no interior do país, liquidar os que permanecem fiéis à linha do Partido;

"d. Entrar em contacto com o governo português. Falsa negociação, autonomia interna, criação de um govemo-fantoche na Guiné-Bissau que seria designada Estado da Guiné e faria parte da comunidade portuguesa;

"e. Postos importantes estão prometidos pelo general Spínola a todos os que executaram o plano.

"Conclusão — Devemos reforçar a nossa vigilância para desmascarar e eliminar os agentes do inimigo, para defender o Partido e encorajar a luta armada Assim poderemos frustrar todos os planos criminosos dos colonialistas portugueses.

"O inimigo tentou corromper os nossos homens, mas a esmagadora maioria dos responsáveis contactados não aceitou vender-se, comportaram-se como dignos militantes do nosso Partido e contribuíram mesmo para castigar severamente os portugueses que tentavam comprá-los, como foi o caso dos quatro oficiais, próximos colaboradores de Spínola, liquidados no norte do país.» [os negritos são meus, M.L.]

Alpoim Calvão sabe muito bem que, na luta "anti-subversiva" ou "contra-revolucionária", há um objectivo importante que pode ser decisivo na evolução dessa luta: a eliminação ou aniquilamento da cabeça pensante da subversão e da revolução, do elemento congregador das vontades nesse objectivo.

Para não ir mais longe, em Portugal prenderam os comunistas e outros subversivos, tentando evitar o inevitável: o progresso da história e do sentimento de liberdade dos povos. Desde muito, pelo menos desde 1967, a organização policial portuguesa PIDE/DGS procurava matar Cabral. Alguns guerrilheiros prisioneiros foram manobrados para colaborarem com a polícia política. Ficou provado em relação a alguns dos intervenientes no atentado. Tudo leva a crer que, em medida ainda desconhecida, a PIDE não foi alheia a toda a trama. Já o conseguira com Edward Mondlane.

Na obra atrás citada vem também a intervenção feita por Amilcar Cabral perante a IV Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas (XXVII Sessão) em Outubro de 1972:

«Sr. Presidente, submetemos à apreciação da O. N. U., por intermédio desta Comissão, as seguintes propostas, baseadas na realidade concreta da vida do nosso povo e em tudo o que dissemos:

"1. Diligências junto do governo português a fim de que sejam imediatamente abertas negociações entre os representantes desse governo e o nosso Partido. Propomos que essas negociações tenham como base de trabalho a pesquisa das vias e dos meios mais adequados e mais eficazes para o acesso imediato do nosso povo à independência. No caso de o governo de Portugal responder favoravelmente a tal diligência, poderíamos encarar, ao mesmo tempo, como tomar em consideração os interesses de Portugal no nosso país.

"2. Aceitação dos delegados do nosso Partido, com a capacidade de membros associados ou de observadores, em todos os organismos especializados da O. N. U., como únicos e legítimos representantes do nosso povo, como acontece já em relação à Comissão Económica para a África (C. E. A.)

"3. Desenvolvimento de um auxílio concreto desses organismos especializados, especialmente da U.N.E.S.C.O., da U.N.I.C.E.F., da O.M.S. e da F.A.O., ao nosso povo, no quadro da reconstrução nacional do nosso país.

"4. Apoio da O. N. U., moral e político, a todas as iniciativas que o nosso povo e o nosso Partido decidam empreender para acelerar o fim da guerra colonial portuguesa e a independência da nossa nação africana, para que essa possa em breve ocupar o lugar que lhe é devido por direito no seio da Comunidade Internacional.

"Na perspectiva de estas propostas serem seriamente consideradas, lançamos um veemente apelo a todos os Estados membros da O. N. U., em particular aos aliados de Portugal, aos países da América Latina, e muito especialmente ao Brasil, para que compreendam a nossa posição e dêem o seu apoio às aspirações legítimas do nosso povo africano à liberdade, à independência e ao progresso a que tem direito.»[osnegritos são meus, M.L.]

Em 27 de Outubro de 1971, numa entrevista concedida à revista Anticolonislismo, disse Amilcar Cabral:

«Como sabe, nós temos uma longa caminhada juntamente com o povo de Portugal. Não foi decidido por nós, não foi decidido pelo povo português, foi decidido pelas circunstâncias históricas do tempo da Europa das descobertas e pela classe dirigente portuguesa de antanho, como se diz em português antigo; mas é verdade, é isso! Há essa realidade concreta! Eu estou aqui falando português como qualquer outro português, e infelizmente melhor que centenas de milhares de portugueses que o Estado português tem deixado na ignorância e na miséria.

"Nós marchamos juntos e, além disso, no nosso povo, seja em Cabo Verde, seja na Guiné, existe toda uma ligação de sangue, não só de história mas também de sangue, e fundamentalmente de cultura, com o povo de Portugal. Quando falei há bocado sobre a nossa cultura não tive necessidade de lembrar que essa nossa cultura também está influenciada pela cultura portuguesa e nós estamos prontos a aceitar todo o aspecto positivo da cultura dos outros. Nós, em princípio, o nosso problema não é de nos desligarmos do povo português. Se porventura em Portugal houvesse um regime que estivesse disposto a construir não só o futuro e o bem estar do povo de Portugal mas também o nosso, mas em pé de absoluta igualdade, quer dizer que o Presidente da República pudesse ser tanto de Cabo Verde, da Guiné, como de Portugal, etc., que todas as funções estatais, administrativas, etc., fossem igualmente possíveis para toda a gente, nós não veríamos nenhuma necessidade de estar a fazer a luta pela independência, porque já seríamos independentes num quadro humano muito mais largo e talvezmuito mais eficaz do ponto de vista da história. Mas infelizmente, como sabem, a coisa não é essa: o colonialismo português explorou o nosso povo da maneira mais bárbara e criminosa e quando reclamamos o direito de ser gente, nós mesmos, de sermos homens, parte da humanidade, e de termos a nossa própria personalidade, a resposta é a repressão com a guerra colonial.

"Mas nós nunca confundimos colonialismo português com povo de Portugal e temos feito tudo, na medida das nossas possibilidades, para preservar, apesar dos crimes cometidos pelos colonialistas portugueses, as possibilidades duma cooperação, de amizade, de solidariedade e de colaboração eficaz com o povo de Portugal, numa base de independência, de igualdade de direitos e de reciprocidade de vantagens, seja para o progresso da nossa terra, seja para o progresso do povo português.

"O povo português está submetido há cerca já quase de meio século a um regime que, pelas suas características, não pode deixar de ser chamado fascista.

"A nossa luta é contra o colonialismo português. Nós somos povos africanos, ou um povo africano, lutando contra o colonialismo português, contra a dominação colonial portuguesa, mas não deixamos de ver a ligação que existe entre a luta antifascista e a luta anticolonialista. Nós estamos absolutamente convencidos de que se em Portugal se instalasse amanhã um governo que não fosse fascista, mas fosse democrático, progressista, reconhecedor do direito dos povos à autodeterminação e à independência, a nossa luta não teria razão de ser. Aí está a ligação íntima que pode existir entre a nossa luta e a luta antifascista em Portugal; mas também, vice-versa, estamos absolutamente convencidos de que na medida em que os povos das colónias portuguesas avance com a sua luta e se libertem totalmente da dominação colonial portuguesa estarão contribuindo duma maneira muito eficaz para a liquidação do regime fascista em Portugal. E cremos mesmo que até hoje, embora nenhum dos países esteja completamente independente, o que já fizemos nas nossas terras tem contribuído, e claro que também a ajuda dos próprios fascistas-colonialistas portugueses, a mostrar ao povo português claramente que o caminho da luta é o único caminho que poderá libertá-lo da dominação e da opressão a que está sujeito. Nós queremos entretanto exprimir claramente o seguinte: nós não confundimos a nossa luta, na nossa terra, com a luta do povo português; estão ligadas, mas nós, no interesse do nosso povo, combatemos contra o colonialismo português. Liquidar o fascismo em Portugal, se ele não se liquidar pela liquidação do colonialismo, isso é função dos próprios portugueses patriotas, que cada dia estão mais conscientes da necessidade de desenvolver a sua luta e de servir o melhor possível o seu povo."

E o que dizia o Governo por essas alturas? Já não vou buscar o Salazar, pois o seu pensamento era demasiado claro e evidente em matéria de Ultramar. Quando começaram a soprar os chamados "ventos da História", isto é, quando o Terceiro Mundo começou a tornar-se independente, as colónias passaram a chamar-se "províncias ultramarinas", porque a palavra colónias começou a ter uma carga muito pejorativa. Os grandes impérios abriram mão dos seus domínios políticos, mas não económicos, e deram a independência aos países que até aí dominavam. Mas Salazer continuou a mesma política, continuando na contramão da História, porque julgou que podia vencer pela força, que era a única coisa que não tínhamos. Veio Marcelo e criou os "Estados Ultramarinos", mas seguindo a mesma política. Vamos ao marcelismo ver como é que a sua "abertura" e a revisão constitucional de 1971 encarava os criados "Estados" do Ultramar.

Marcelo Caetano ao jornal L'Aurore, em 7 de Abril de 1971:

«Os terroristas pretendem que ocupam dois terços do nosso território ginéu... (...)Na verdade o tipo de guerra que temos de enfrentar corresponde a uma série de pequenas infiltrações, efectuadas no nosso território por comandos vindos do estrangeiro, armados e treinados pelo estrangeiro. É uma guerra subversiva que nos fazem e nós sabemos como responder... Na Guiné, repito, eles atacam as populações, incendeiam as aldeias e, depois, retiram-se. É a isto, é a estas breves operações, limitadas no espaço e no tempo, que se chama a ocupação de dois terços do território da Guiné."

E, mais à frente, quando lhe perguntaram sobre o alargamento da autonomia às províncias de África:

"Trata-se de desenvolver a autonomia financeira das províncias e, por outro lado, de aumentar os seus poderes legislativos. É assim uma reforma interna que de modo algum atenta contra o conjunto formado pelo Ultramar e pela Metrópole, conjunto que continuará rigorosamnte indivisível."

Marcelo Caetano, numa entrevista à BBC em 12 de Julho de 1973, quando lhe perguntaram se pensava dar a independência aos territórios ultramarinos:

«São perguntas que não podem ser feitas a uma pessoa que não é um autocrata. Eu não tenho a possibilidade de, por mim, dar ou não dar. A independência é uma solução que só os povos podem resolver [curioso!]. Não pode ser dada por um político.»

Marcelo Caetano, citado pelo jornal O Século, de 18 de Março de 1974, disse ao semanário Le Point que «nunca negociará com os adversários de Portugal, aqueles que, pagos por potências estrangeiras, sustentam uma luta de guerrilhas, inútil e cruel».

Rui Patrício ao Jornal do Brasil, de 16 de Março de 1974: «A autonomia dos Estados e das províncias ultramarinas é já extremamente ampla e, na prática, superior à de muitps Estados membros de certas federações... aquela autonomia abrange a faculdade de legislar, através de órgãos próprios sobre todas as matérias de interesse local e de aprovar orçamentos e planos de desenvolvimento próprios de cada território. É isto que corresponde às aspirações dos portugueses de África assim como aos seus desejos de manter a unidade nacional...»

Não me parece, pois, que Amilcar Cabral quizesse a guerra pela guerra, mas quereria, sim, uma solução que o governo de Lisboa não queria. Mas nem esta Salazar queria. Efectivamente, nunca houve vontade de se sentarem à mesa com os movimentos de libertação e discutir uma solução. Tudo tinha de caminhar, pois, no sentido do fim da guerra com a vitória dos contestatários, mais tarde ou mais cedo, de acordo com o curso da História. Nem Salazar nem Caetano tiveram esta percepção que evitaria os milhares de mortos? Acho que tiveram, mas, por interesse político, fingiram que não viram. Foi a forma de se manterem no poder. E era uma guerra votada ao fracasso. A única maneira de termos evitado a derrota seria termos feito um pacto com as populações e com os movimentos de libertação. Mas é claríssimo que nunca houve vontade do regime em dar esse passo.

Racista o Amilcar Cabral, casado com a branca Maria Helena de Athayde Vilhena Rodrigues, sua colega no Instituto de Agronomia com quem viria a ter duas filhas? Não me parece, nem é essa a opinião dos que o conheceram no Instituto de Agronomia, à Ajuda. Por dizer que "dar um tiro num portuga numa emboscada é um acto político de primeira grandeza"? Que andámos nós a fazer senão dar tiros nos turras, alguns a ganhar medalhas e louvores por isso mesmo? Por racismo? Eu dei muitos tiros em emboscadas e nunca foi por racismo. Foi para cumprir a missão que me tinham, mal ou bem, dado e para sobreviver. A acção política deles vingou e a minha não. Eles estariam mais certos da sua razão do que eu (é verdade, sempre tive dúvidas).

É para rir que um militar de carreira possa dizer uma coisa destas. Qual é o papel de quem anda em guerra, de um lado ou do outro, não é disparar e matar o outro? E não tem nada de racismo, evidentemente. Os meus jagudis fizeram emboscadas contra os da sua côr sem racismo nenhum. Foi um acto político, sem consciência política, tenho a certeza. Se Cabral de facto disse isso no tal congresso que não existiu (...) foi para transmitir consciência política aos guerrilheiros do PAIGC, tal como nos quizeram transmitir consciência política para que matássemos os turras quando nos falaram do "património nacional" e da "defesa da civilização ocidental"... Essa do Alpoim Calvão é muito primária. A que chamará ele às imagens que envio (1) ? Precalços de uma "sociedade multirracial" que viu a superioridade dos brancos ameaçada pelos nharros ou contingências de uma guerra sem razão?

Todos os homens têm o direito de defenderem livremente os seus pontos de vista, mas devem fazê-lo de forma honesta e correcta, sem albergar ódios no coração, sem desvirtuar e falsear os fundamentos reais das questões. Não me parece que Alpoim Calvão tenha feito isso nesta entrevista.

A. Marques Lopes
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(1) Imagens que, por enquanto, só circulam dentro da tertúlia. L.G.