quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P495: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite


Guiné-Bissau > Bissau, capital do país. Planta da cidade, pós-independência. (Vd. mapa ampliado na página sobre sobre Bafatá e Bissau)

© A. Marques Lopes (2005)


Começamos hoje a dar ínicío à publicação das memórias do Mário Dias relativamente à sua experiência na Guiné, como civil, na década de 1950. O Mário foi depois sargento comando durante a guerra (Brá, 1963/66).


Um cabaço de leite

Naqueles longínquos anos da década de 50 (do século passado) cheguei à Guiné ainda adolescente. Como qualquer pessoa nessa fase da vida, também o apelo da magia africana me enfeitiçava. Trazia a cabeça cheia com as descrições fantasiosas sobre África:
- Cuidado com os leões. Há bichos perigosos por todos os lados. Os pretos são muito maus. Ainda há antropófagos. É tudo selva inóspita.

Depressa verifiquei quão erradas eram as atoardas que um pouco por todo o lado pretendiam caracterizar aquelas terras. Encontrei um povo afável, uma terra linda, linda, linda como não imaginava pudesse existir. Foi amor à primeira vista!

Bissau era uma cidade pequena mas onde apetecia viver. Desfeito no meu espírito o mito de leões a rondar as casas, de selvagens canibais e de outras intimidantes tragédias, parti à descoberta da terra.

Guiado pelos amigos que rapidamente fiz, onde se incluíam naturais da Guiné, iniciei-me no convívio com os guineenses. Terminado o trabalho diário, lá íamos nós, avenida da República acima, praça do Império, - vira aí à esquerda, pá - direitos ao Alto do Crim. À nossa esquerda iam ficando os que se entretinham a treinar futebol no então chamado estádio Sarmento Rodrigues (1). Os mais esclarecidos informavam:
- Hoje é a UDIB. Estás a ver as camisolas com aquela risca verde larga, ao meio da camisola branca? É o equipamento deles. O Benfica tem camisolas iguais ao de Lisboa e o Sporting também.

Mais ao fundo, os mais afortunados jogavam ténis e nos campos ao lado praticava-se basquetebol e hóquei em patins. E a alegre comitiva prosseguia rua fora até alcançar o intrincado labirinto de ruas bordejadas por casas e moranças. À sombra de frondosas árvores, os habitantes repousavam as fadigas do dia conversando ou simplesmente meditando - sabe-se lá - talvez na dureza da vida que nem para todos era fácil. E, conforme avançávamos, íamos lançando à esquerda e à direita:
- Bôs tarde, bu ´stá bom ? qui noba di corpo? - Rostos afáveis e sorridentes nos respondiam, cabeças respeitosamente se descobriam. Uma ou outra mulher, atarefadas à volta dos potes de ferro onde se cozinhava a bianda, convidavam:
- Branco, bim nó cúmi.
- Obrigado, pa Deus djudábo. (Deus te ajude). - E neste doce deambular, o dia ia chegando ao fim. Quando as garças rompiam o céu direitas ao Ilhéu dos Pássaros onde pernoitavam pousadas nos frondosos poilões, sabíamos que eram horas do regresso. O crepúsculo era rápido e a noite calma caía sobre a terra tudo envolvendo no seu misterioso manto.

Estes passeios exploratórios eram muito frequentes e assim fiquei a conhecer, Gambeafa, Cupelon (2), Chão de Papel, Santa Luzia, Bandim, e mais bairros à volta de Bissau (3). Surgiu, porém, uma actividade em que me iniciaram e conquistou a minha preferência: a venatória. Nada de leões ou outras feras. Nem gazelas ou outros antílopes, que essas exigiam armas de maior calibre que não tínhamos nem autorizavam - devido a sermos menores - e só se encontravam em zonas já mais afastadas da cidade. Simplesmente rolas ou os saborosíssimos pombos verdes que abundavam por todo o lado e caçávamos com as pequenas espingardas de cartuchos de 9 mm conhecidas por flauberts.

Aos poucos fui-me tornando, ou julguei ser, um perito. Já me sentia na pele dos caçadores de feras africanas que povoavam os meus sonhos nos verdes anos. E foi assim que um belo dia, resolvi que estava na hora de me aventurar sozinho. Pensei, pensei, e decidi.

Num belo domingo, ainda o dia não tinha despontado, sorrateiramente peguei na flaubert e, pé ante pé para não acordar ninguém, saí da cidade caminhando para os lados de Bór. Antevendo a fartura de rolas e pombos verdes com que iria surpreender o meu pai e irmãos estuguei o passo. O local onde, com os meus amigos, anteriormente tinha visto e caçado muitas, ainda ficava longe. Quando finalmente lá cheguei, delas, nem sombras. Que desilusão! Fugiram? Naquela altura ainda não sabia que as aves, só de manhã muito cedo e ao fim do dia, ali se encontravam para passar a noite. Durante o resto do dia deambulavam por bolanhas ou por onde houvesse cereais e outras sementes.

Decidido a não voltar de mãos a abanar, continuei campo fora, olhar fixo nas árvores, ouvidos tentando escutar o arrulhar das aves. A manhã escoava-se. Nada. Raios dos pássaros, por onde andariam? À desilusão, sobrepunha-se a minha vontade de conseguir uma frutuosa caçada; doutra maneira iria ser alvo de gozo. E pensando no fracasso, dizia com os meus botões que o melhor seria não contar a ninguém tal desaire. Continuei o caminho e andei, andei, andei… o sol queimava, como é sua obrigação. Não sei se instintivamente, porque o calor era muito, ou por pensar que no meio do arvoredo seriam maiores as possibilidades de encontrar os fugidios pombos, fui-me internando no bosque, que depois já era mata, e depois floresta cerrada. Como era de esperar, às tantas já não sabia onde estava nem para onde me dirigir. Estava perdido. A tarde avançava e o estômago reclamava pois apenas tinha comido o pequeno-almoço que, embora substancial, à boa maneira africana, não era suficiente para tantas horas de jejum. Não entrei em pânico pois sabia que nada de mal me aconteceria e, além disso, o prazer da caça dominava o meu pensamento.

Finalmente alcancei uma clareira. Ah!... que bom. Aqui talvez conseguisse, pelo menos, um par de rolas. Olhando atentamente uma árvore, para ela me dirigi sempre olhando para a ramagem. E tão atento ia, que nem reparei num tronco partido atravessado no meu caminho. Deu-se o inevitável: tropecei e estendi-me ao comprido no chão cheio de carvão e cinzas do capim recentemente queimado. Fiquei todo enfarruscado; cara, braços e pernas, além de alguns pequenos arranhões.

Continuando a andar, algum tempo depois escutei vozes. Para lá me dirigi sabendo que me indicariam o caminho para alcançar a estrada que me conduziria a Bissau. Deparei com uma morança, debaixo de duas frondosas mangueiras à sombra das quais um homem sentado chupava fumaças do cachimbo. A ele me dirigi e, mal me viu, reparando ma minha figura, soltou um divertido:
- Có, có, có… éh, brancozinho, kuma qui bu fungli sim? (Como é que está assim enfarruscado?). - Contei-lhe, num incipiente crioulo que na altura ainda pouco dominava, a minha odisseia. A cada peripécia ria, bem disposto mas sempre com uma suave compreensão no semblante. Quando terminei e lhe pedi se me podia indicar o caminho que me levasse a alcançar a estrada, disse: Espera. E voltando a cabeça em direcção à palhota chamou. Surgiu uma mulher a quem deu algumas indicações na língua papel que era a sua. Nada percebi mas de imediato soube de que se tratava. A mulher pegou num pequeno cabaço e com ele se dirigiu a uma vaca que se encontrava ali perto e diligentemente a ordenhou. Regressou com o cabaço cheio de leite que, sorridente, me estendeu dizendo:
- Bibi. - Bebi, senti-me reconfortado e agradeci. Visivelmente satisfeito por me ver mais animado, o homem levantou-se e guiou-me até à estrada que, afinal, até nem era longe dali; simplesmente eu, na minha ainda pouca experiência de orientação e no entusiasmo de encontrar os pombos verdes ou as rolas, tinha andado às voltas sem me aperceber.

Enquanto caminhava de regresso a Bissau, fui meditando na afabilidade e simpatia daquela gente da Guiné que nesse dia me tinha sido revelada e se viria a confirmar durante os 14 anos que por lá vivi. Como tudo, afinal, era tão diferente do que corria entre os europeus como sendo a "selvajaria" dos africanos!

Algum tempo depois, logo que um colega de trabalho se disponibilizou a levar-me no carro dele até à morança do meu salvador, fui agradecer-lhe. Levei um garrafão de vinho, bebida que sabia muito apreciarem. Deixámos o carro na estrada, junto do caminho que nos conduzia, a pé, até à casa. Fomos recebidos com evidentes sinais de alegria pelo homem, que continuava a chupar o cachimbo. Oferta entregue, os cumprimentos do costume, as habituais mantenhas, e já nos dispúnhamos a regressar quando ele disse:
- Espera.- E mais uma vez chamou a mulher e deu as suas instruções na língua papel. (ficámos a zero).

A mulher torneou a casa e surgiu com uma galinha que de imediato degolou, depenou, temperou e pôs a assar nas brasas de uma fogueira. Não demorou muito a ficar pronta, tostadinha e apetitosa. Com o nosso hospedeiro foi por nós prontamente devorada, com lamber dos dedos e tudo, acompanhada de alguns copos do vinho que lhe havia trazido. Foram momentos de confraternização e são convívio que demonstra bem como dois povos tão diferentes, ao contrário do que propalavam os que denunciavam atrocidades dos colonos e incompatibilidades ou hostilidade por parte dos nativos, afinal, entendiam-se bem.

Assim era antes da guerra, assim continuou apesar dela ou por causa dela, e assim continua sendo.

© Mário Dias (2006)
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Notas de L.G.

(1) Oficial da marinha, governador Geral da Guiné, entre 1945 e 1949.

(2) Pilão, para os tugas do meu tempo...

(3) Vd planta de Bissau.

Guiné 63/74 - P494: Mansambo em 1973 (Sousa de Castro, CART 3494)

Em Abril de 1973, segundo informações do Sousa de Castro, a CART 3493 foi para o Cotumba, e a companhia dele, que estava aquartelada no Xime, a CART 3494 , foi para Mansambo. Ambas petenciam ao BART 3873 (1972/1974), sediado em Bambadinca. Publicam-se duas fotos dessa época.

Guiné > Mansambo > 1973 > O Sousa de Castro mais um camarada da CART 3494, junto ao monumento da CART 2339 - Os Viriatos (1968/69).
© Sousa de Castro (2006)

Guiné > Mansambo > 1973 > O Sousa de Castro junto ao oráculo da Virgem, mandado erigir pela CART 2714 (1970/72), pertencente ao BART 2917 (Bambadinca, 1970/1972). Em baixo pode ler-se: "Senhora, protegei-nos".

© Sousa de Castro (2006)

Guiné 63/74 - P493: O abandono do Seni Candé (Zé Neto)

1. A triste sorte do Seni Candé e de tantos outros combatentes africanos que estiveram do nosso lado e que foram literalmente abandonados por nós, já mereceu alguns comentários dos membros da nossa tertúlia.

O Mário Dias enviou-me as suas memórias da Guiné dos anos cinquenta, para futura publicação, com uma curta nota: "Ainda mal refeito dos arrepios que a história do Seni Candé me causou"... Mais frontal e directo, foi o nosso Zé Neto. Aqui vai o testemunho dele. LG

2. Texto do Zé Neto:

Luis:

Estou arrepiado. O trabalho do meu homónimo Jorge Neto trouxe à minha velha cabeça um turbilhão de pensamentos, sem excluir o sentimento de raiva. Raiva por sentir que a minha voz já não tem a força dos tempos em que estava no activo. Tive muitos amargos de boca, mas também alguns sucessos. E sabes porquê?

Quando acabei o meu curso de Águeda e depois duma esporádica passagem pelo QG/RML, fui colocado no DGA, na Calçada da Ajuda, como tesoureiro da 4ª Companhia, a companhia dos evacuados com mais de quatrocentos doentes, feridos e estropiados. (E alguns sargentos e oficiais do QP evacuados profissionais que me metiam nojo).

Eu fazia os pagamentos à boca do cofre e, mensalmente em dias concertados, ia pagar ao Alcoitão, HMP (Estrela), Anexo do HMP (Rua de Artilharia 1), ADFA (Lumiar) e HMDIC (Infecto contagiosas de Belém). De 1973 a 1977(ano em que fui para a Guarda Fiscal) lidei com a parte mais horrenda e suja das nossas campanhas de África. O que eu passei, mais os/as funcionários/as civis que me acompanhavam com a papelada!!!

Sabes o que é assistir a um furriel enfermeiro a maltratar um desgraçado dum catanguês que, em Angola, combateu ao nosso lado e e ficou com a cabeça escaqueirada, perdendo um olho, numa acção de combate? Apresentei uma participação contra esse estafermo, mas naquela época de bagunçada ninguém punia niguém.

Quantas mães, quantas esposas, quantas namoradas tiveram a satisfação de rever os seus entes queridos em parte devido a esses valentes africanos? Lado certo, lado errado, isso é outra conversa.

O Seni Candé é uma das muitas vítimas que os fervores e delírios do PREC abandonaram deliberadamente, repito, deliberadamente, à sua sorte. Não posso mais.

Desculpa.
Um abraço do Zé Neto

3. O Sousa de Castro acaba de me enviar uma curta mensagem: "São 6.30horas, estou a ouvir o Candé. É um poço de memória e então aquela do Periquito vai no mato faz-me lembrar as tainadas, acabavamos sempre com esta canção, ainda hoje nos nossos convívios cantamos sempre Periquito vai no mato, olé, lé, lé / Que a velhice vai pra Bissau, olé, lé, lé...

Guiné 63/74 - P492: As baixas da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) (Carlos Marques Santos)

1. Lista dos mortos em combate:

1.º cabo Aux. Enfermagem Fernando R. de Sousa – 24 de Julho de 1968
Soldado de Transmissões Humberto P. Vieira – 19 de Setembro de 1968
1.º cabo condutor João M. J. Figueiras – 25 de Setembro de 1968
Soldado Atirador José Ferreira Bessa – 3 de Janeiro de 1969 (1)
Soldado Atirador - Joaquim M. Barbosa – 29 de Setembro de 1969 (2)


2. Desaparecido:

Soldado Armas Pesadas – Francisco M. Monteiro – 11 de Julho de 1968


3. Baixas por outras causas:

(i) Mortos por afogamento:

Soldado Atirador – Carlos Armando Duarte – 3 de Dezembro de 1968 (Op Dá Forte)
Soldado Atirador – Carlos Manuel Pimenta – 3 de Dezembro de 1968 (Op Dá Forte)

(ii) Mortos por acidente viação:

Soldado Atirador José Francisco Casadinho – 2 de Outubro de 1969


3. Feridos:

(i) Feridos:

8 evacuados para o HMP (Lisboa);
17 evacuados paar o HM 241 (Bissau);
8 não evacuados;
2 evacuados por acidente (um para o Hospital Militar Principal; outro para o HM 241)

(ii) Doentes:

4 evacuados para o HMP;
3 para o HM 241

© Carlos Marques dos Santos(2006)
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Notas de L.G.

(1) Em resultado de flagelação ao aquartelamento de Mansamo, às 2h00, com Mort 82, Mort 60, LGFog e armas ligeiras. Além da vítima mortal, houve um ferido grave.

(2) Emboscada , às 6h50, no intinerário Mansambo-Bambadinca (Xime 8B4-72), por grupo IN estimado em 15/20 elementos, com armas automáticas, Mort 60 e LGFog, durante 15 minutos, que causou um ferido grave às NT, além da vítima mortal.

Guiné 63/74 - P491: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (13): Vi a morte à minha frente (31 de Julho de 1969)


Guiné > Buba > 1969 > Contrapropaganda das NT > Uma costureirinha (pistola-metralhadora PPSH, de origem soviética) por meia dúzia de pesos...

A acção psicossocial é intensificada com o novo governador-geral e comandante-chefe António Spínola, apesar de ser considerado um grande cabo de guerra, seguramente o mais emblemático, com Kaulza de Arriaga, em Moçambique, dos generais que fizeram a guerra colonial. Na Guiné, a escalada da guerra, por terra e por ar, vai tornar-se irreversível e conduzir a uma espécie de suicídio das NT, com a criação do Movimento das Forças Armadas (MFA). Em Março de 1973, o PAIGC passa a dispor de mísseis terra-ar Strella, acabando com a superioridade portuguesa nos céus. Em 10 de Setembro de 1974, o Portugal revolucionário reconhecia a independência da Guiné-Bissau, proclamada unilateralmente um ano antes (LG).

© José Teixeira (2006)


XIII Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).

Buba, 31 de Julho de 1969

Vi a morte à minha frente. Saí de manhã até à Bolanha de Beafada, a montar segurança à coluna que ia para Aldeia Formosa. Tinha como missão assistir os Picadores que iam à frente a tentar detectar as possíveis minas que o IN costuma colocar. Coloquei a bolsa na 1ª viatura e segui à frente da mesma.

Como havia muitas poças de água, instalei-me ao lado do condutor. Em determinado momento tive um pressentimento e saltei da viatura seguindo à sua frente. Não andei 50 metros e senti um rebentamento, fui projectado pela deslocação do ar e senti algo a cair em cima de mim, deduzindo que eram estilhaços. Pensei:
- Desta não escapo.

Guiné > Buba > 1969 > Contrapropaganda das NT > 

A verdade é que "juntos não conseguimos vencer"... Não se tratava de Portugal e dos portugueses nem da Guiné e dos guineenses mas de um regime político que não tinha qualquer legitimidade (política, legal e moral) para continuar a exigir o supremo sacrifício dos nossos jovens (LG).

© José Teixeira (2006)


Logo a seguir cai à minha frente um africano que ia em cima da viatura e que deve ficar cego (1). Verifico então que a viatura de onde tinha saltado há momentos e do lado em que eu vinha, tinha pisado uma anticarro. Apanhei apenas com lama e pedras, e um grande susto. O condutor, sentado em sacos de areia, foi ao ar, mas apenas sofreu um grande susto, também. Os Africanos que vinham em cima foram projectados e um perfurou o olho esquerdo, ficando este ao dependuro. Desnorteado, não sabia o que fazer. A bolsa estava na viatura sinistrada. Havia o ferido para tratar, mas também havia o perigo de minas antipessoais.

Andava de um lado para outro, sem saber o que fazer, sujeito a cair numa mina perdida. Lentamente fui acalmando, entretanto chegaram os outros enfermeiros, fui buscar a minha bolsa à viatura destruída e tratei dos feridos

Tal como os outros companheiros, pensei em aproveitar-me das bebidas da viatura destruída e mesmo das outras, já que ao dar-se baixa da viatura descarrega-se tudo e o que ficou em condições de ser aproveitado desaparece. Deu-se um autêntico assalto às viaturas e foi um fartar de roubar, ou melhor, aproveitar a ocasião.

Pouco depois aparece-me o Franklim com uma perna ferida por ter ficado debaixo de um atrelado, com bidões cheios de combustível, pois o condutor da viatura, na confusão gerada deixou-a destravada e esta ao deslizar fez passar por cima da perna do Franklim o atrelado que arrastava.

Os feridos voltaram para Buba depois de assistidos, para serem evacuados para Bissau. Restabelecida a calma retomamos a marcha, para de seguida rebentar uma anti-pessoal que estava colocada no local, mesmo no centro da picada onde eu tratei os feridos, possivelmente pisada várias vezes, mas que só rebentou quando foi pisada pelo rodado de um atrelado de viatura, para sorte de algum de nós, talvez por estar um pouco funda. Continuei na coluna até Beafada, onde encontramos o Pelotão de Picadores que tinha partido de Aldeia Formosa, tendo regressado a Buba com mais esta história para contar.

O meu sistema nervoso que andava abalado foi-se de vez. Fui ao Dr. Franco que me receitou um calmante, pois preciso de reagir. Tenho 15 meses de guerra e ainda falta muito tempo para o regresso. A guerra ainda não acabou para mim.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P490: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (6): dos Lordes e das bestas

Guiné-Bissau > Guileje > 2005 > Restos arqueológicos da presença dos portugueses por terras de Guileje. E dos que por lá passaram havia de tudo, como em toda a parte do território: das bestas aos gajos bestiais...
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)


VI parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado).

Quanto às operações no terreno, as nossas - principalmente patrulhas de reconhecimento e nomadizações destinadas a manter o controle possível no itinerário de Gadamael Porto - decorriam sem sobressalto de maior, porque, era mais que evidente, o IN evitava o contacto para não denunciar os trilhos que utilizava nas suas infiltrações para o interior do território.
Mas, como já referi, era a partir de Guilege que se lançavam as operações conjuntas e de maior envergadura sobre o corredor de penetração dos turras.

Para executar as ordens do Comando do Batalhão ou até do Sector (sediado em Bolama) as unidades empenhadas deslocavam-se até Guilege, onde permaneciam o tempo necessário para a planificação, um, dois dias, e na hora H iniciavam a marcha para o alvo previamente referenciado.

Geralmente os resultados destas operações eram nulos ou pouco compensadores. Nós tínhamos um serviço de informações razoável, com a ajuda dos reconhecimentos aéreos, mas não éramos tão ingénuos que não soubéssemos que nesse aspecto o IN nos levava a vantagem da sua maior mobilidade, conhecimento do terreno e algumas cumplicidades de elementos das populações.

Além disso, o planeamento das operações era feito com as regras copiadas à pressa dos manuais clássicos e algumas leituras dos teóricos da guerrilha e, como tal, se não causavam autênticos descalabros nas nossas tropas isso se devia à bravura dos nossos soldados e ao discernimento dos seus comandantes que sabiam avaliar o momento em que deviam mandar às malvas o rigor dos papéis e actuarem em conformidade com o que deparavam no terreno.

Um pequeno exemplo: as cartas topográficas assinalam correctamente todas as características do terreno, ponto final.

Ponto final no Alentejo ou nas Beiras. Na Guiné nem sequer chega a ser vírgula, porque quando a maré sobe o mar engole uma parte considerável da área total do território. Por outro lado, as bolanhas são assinaladas como terreno alagado e vistas de avião até têm o aspecto de solo enlameado com farta vegetação, facilmente transponível. A realidade é bem diferente. Extensas zonas que, com os seus socalcos, tinham sido férteis campos de arroz, eram agora, quase abandonadas, autênticas armadilhas onde à mínima distracção um homem se afogava ou ficava atolado até ao pescoço.

Ganhou alguma notoriedade o diálogo entre o Celestino (1) e o Capitão Cadete. Numa operação em que as nossas tropas pretendiam desmantelar a fortificação que os turras tinham implantado em Salancaúr, o Celestino comandava comodamente instalado num avião Dornier.

A companhia do Capitão Cadete estava, a pouco mais de duzentos metros do objectivo, a ser fustigada por fogo de canhão sem recuo do IN e o Celestino berrava pela rádio:
-Avance! Organize o assalto pelo flanco esquerdo!!!

O Capitão, homem experiente, sabia que era de todo impossível dar mais um passo em direcção ao objectivo, estrategicamente defendido pelos lodaçais e, perante a insistência, gritou pelo microfone:
-Venha cá abaixo e enterre o seu focinho na bolanha, seu…

Isto foi ouvido em todo a rede de transmissões das unidades da zona que, em sintonia, seguiam o desenrolar da operação e… nunca constou que o Capitão Cadete tivesse sido punido.

A zona de Salancaúr, que era uma pequena península quando a maré subia, foi durante muito tempo um espinho cravado na nossa garganta. As informações diziam que os turras tinham ali instalado vinte e quatro canhões sem recuo (talvez um exagero), ao mesmo tempo que o reconhecimento aéreo dava conta de actividade rural por parte da população da tabanca nas redondezas o que punha fora de hipótese a destruição por bombardeamento da aviação.

Os comandos não desistiam de eliminar aquele importante ponto de apoio do corredor de Guilege e as surtidas das nossas tropas sucediam-se sem resultados palpáveis.

Numa dessas operações, poucos dias depois do Natal desse ano de 1967 (sei a data precisa, mas não a quero referir) tivemos mais três baixas estúpidas, a juntar à de São João.

As nossas tropas saíram ao alvorecer e, excepcionalmente, os Lordes (2) do Alferes Tavares Machado ficaram no quartel, constituindo a segurança das instalações.

Menos de uma hora depois ouvimos um tiroteio aceso. Os turras tinham emboscado a frente da nossa coluna. Pelo rádio o Capitão Corvacho disse que não havia novidade, que estavam a reagir à emboscada e que o IN estava a retirar.

Em resposta o Alferes Tavares Machado disse que sabia por onde os turras iam fugir e que lhes ia dar uma coça. O Capitão mandou-o ficar onde estava pois a situação estava controlada.
Qual quê? Reuniu os seus homens rapidamente e, ele de calças de ganga e camisola branca, embrenharam-se na mata em direcção ao sítio onde deflagrara o tiroteio.

Pouco tempo depois, talvez meia hora, ouvimos novo arraial e não tivemos dúvidas de que agora eram os Lordes que estavam sob o fogo bem conhecido das Kalash.

Posto ao corrente do sucedido, o Capitão retrocedeu ainda a tempo de enfrentar os turras e evitar uma chacina completa. Só não conseguiu evitar as mortes dos Alferes Nuno da Costa Tavares Machado, Soldado António Lopes (cuja alcunha era o Sargento, devido aos seus modos bruscos) e Soldado António de Sousa Oliveira (o Francesinho).

Se houvesse que configurar num homem só, a raça, o patriotismo e o espírito de sacrifício do valoroso soldado português eu escolhia o Francesinho, sem hesitação.

© José Neto (2006)
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Notas do autor:

(1) Celestino era o nome com que depreciativamente tratávamos o Ten-Cor. Celestino C... R..., comandante do BART 1896, sediado em Buba, personagem muito sombria da minha memória pois ameaçou-me com cinco punições, nunca concretizadas. Algumas vezes o trato por besta nesta narrativa, com alguma propriedade.

(29 Os Lordes era a designação dum Grupo de Combate formado por voluntários da companhia que recebeu instrução especial em Bissau com o fim de constituir o primeiro escalão de progressão e assalto, dado que a CART 1613 foi, inicialmente, companhia de intervenção à ordem do Comando Chefe e actuou em vários pontos do território.

Guiné 63/74 - P489: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)

Olá, Luís,

Junto envio um texto com quatro ficheiros sonoros acerca de um guineense que lutou do lado português. A estória de Seni Candé é muito interessante, a meu ver. Pena é que ele fale um mau português.

Se vir que tem interesse publique no Blogueforanada. Eu, no Africanidades, irei usar apenas a quarta parte.

O texto que se segue vai já editado, com tags para os ficheiros e tudo. É só fazer copy & paste (e as alterações que achar por bem fazer).

Um abraço,
Jorge Neto

Seni Candé, iludido pelo destino (entrevista e sonorização por Jorge Neto)

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Guiné-Bissau >Parque Natural do Cantanhez > 2006 > Seni Candé, à direita na imagem

Se ainda fossem necessárias provas como a guerra colonial deixou memórias, Seni Candé seria uma delas. Este guineense defendeu a bandeira de Portugal na guerra colonial e, pode dizer-se, esteve do lado errado da luta. Assim que as tropas portuguesas bateram em retirada, Seni foi perseguido pelo PAIGC. Preso por duas vezes, escapou à morte refugiando-se na vizinha Gâmbia.

Hoje é guia de ocasião no Parque Natural do Cantanhez, no sul da Guiné-Bissau. Com onze filhos, sem emprego certo e uma casa miserável, Seni alimenta a esperança de um dia conseguir uma pensão do Estado português:
- Na embaixada de Portugal em Bissau não sabem do meu caso, mas assim que souberem pagam-me... É só eu ir lá! - O destino ilude Seni. O Estado português nunca pagará o braço direito que lhe roubou. Muito menos o resto, a dívida moral que tem para com ele (e tantos outros Senis espalhados pelas ex-colónias).

Nestes registos, Seni Candé,[nascido em 10 de Fevereiro de 1947] explica, num português que exige paciência (muita!), como entrou no exército verde-rubro [e chegou a 1º cabo, nº 397/65, CCAÇ 6]. Diz ainda com uma ponta de orgulho: "Sou um combatnte português". Fala dos oficiais que ficaram na sua sua memória,e que um dia, "se tiver saúde", ainda vai procurar a Portugal. Avalia, por fim, a coragem dos soldados portugueses, desde os açoreanos aos lisboetas (aqui se fica a saber quem eram os mais valentes).

Antes do fim, Seni relembra duas canções daquele doloroso tempo e uma passagem pela metrópole quando, à conta de um braço cortado, foi evacuado de avião [em 1969]. O Intendente, o Martim Moniz e a Trafaria fizeram as delícias deste homem que continua a acreditar que um dia voltará a ganhar o equivalente aos 775 Escudos que auferia na altura [e que faziam dele um homem "muito rico"].


2. Comentário de L.G.:

2.1. Instruções - Ligar o som... O carregamento de cada ficheiro pode levar algum tempo... Tenham alguma paciência... Mas estes quatro excertos da entrevista do Seni Candé, feitos pelo Jorge Neto, valem bem a pena!...
2.2. Este homem, o Seni Candé, de apelido tipicamente fula, que começou como caçador nativo, teve "três louvores de guerra" (em Novembro de 1968 e já em 1974, capturou três armas), ficou sem braço, decepado por uma roquetada (creio que em 3 de Junho de 1969), esteve na Metrópole em convalescença nesse ano e, tanto quanto eu percebi, esteve na CCAÇ 3493 (Mansambo e Cobumba) - refere o nome de vários capitões, incluindo o do nosso camarada de tertúlia, o Manuel Cruz - e na CCAÇ 6... É como se eu estivesse a ouvir os meus queridos nahrros da CCAÇ 12...

É a primeira vez que inserimos este tipo de ficheiros (de som) no nosso blogue. No seu conjunto, constituem um documento, pungente, de destroçar o coração!... A verdade é que nós abandonámos miseravelmente estes homens!

Estou profundamente agradecido ao Jorge pela sua sensibilidade e talento em saber tocar nestas feridas de guerra (que também nos doem, e de que maneira!).... Mesmo assim, admirem, amigos e camaradas de tertúlia, a serenidade com que este homem, o Candé, relata a sua vida de luta ao lado dos tugas, sem um queixume, sem uma reivindicação, com uma voz doce, com orgulho e... com uma grande saudade! Vejam como ele recorda o dia, em Cufar, em que viu, mais uma vez a morte á sua frente, com a CCAÇ 6 a sofer 5 mortos e 25 feridos... mas era "preciso coragem" para salvar os camaradas... Vejam como ele fala dos seus amigos portugueses e de Portugal!... Confesso que fiquei muito sensibilizado...

PS - O Sousa de Castro acaba de me confirmar e corrigir: " Luís, quando o Candé refere CCAÇ 3493 deve querer dizer CART 3493, pertencente ao BART 3873 que saiu de Mansambo para Cobumba em Março 1973. A CART 3494 substituiu a CART 3493 em Mansambo que estava no Xime. Era de facto o Manuel Cruz , o CMDT da CART 3493".

Primeira parte [Da CCAÇ 6 aos ajustes de contas do PAIGC, em 1975: fuzilamento do pai, do régulo e mais 5 pessoas da tabanca]
(Duração: 4.09mn)

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Segunda parte [Opinião sobre os combatentes portugueses, incluindo vários capitães / Referência à CCAÇ 3493 que veio de Mansambo para Cobumba, em Abril de 1973]
(Duração: 5.03m)

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Terceira parte [Evocando a Lisboa de 1969/70,as bajudas do Intendente e do Bairro Alto... quando era "muito rico"]
(Duração: 4.04m)

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Quarta parte [CCAÇ 6, Operação em Cufar, 5 mortos e 25 feridos / As nossas canções: Periquito vai no mato.../ Elisa, á-u-é, Elisa, á-u-á... ]
(Duração: 6.02m)

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Guiné 63/74 - P488: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (12): A morte do Cantiflas (Julho de 1969)

Guiné-Bissau > Empada > 2005 > Bajudas
© José Teixeira (2006)

XII Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).


Empada, 5 de Julho de 1969

Empada parece ser o que os meus colegas diziam. A partir de l de Julho é a minha nova morada. A população é um misto de todas as raças onde predomina a Manjaca e a Bijagó. É trabalhadora e parece fiel. Recebe a tropa com muita simpatia e, pelo seu proceder, confirma mais ainda que a população da Guiné quer viver em paz no amanho das suas terras.

A região é bastante rica, tem muitas bolanhas e os africanos aproveitam para semear milho, mancarra, malagueta e batata doce. Também se dedicam à plantação de arroz na bolanha da Punderosa.

Porque o IN vem, destrói e mata, sinto que existe um ódio tremendo e uma insegurança na população, que no entanto se arrisca a trabalhar nas bolanhas para seu ganha pão.

Esta população, de raças diferentes da de Buba e Aldeia Formosa (Mandingas e Fulas), é muito mais trabalhadeira.

Não gosto da posição estratégica do Quartel, mas como já fizemos um grande desbaste na vegetação, eles não tem condições para se aproximarem muito. Há que estar atento e continuar a confiar. As instalações são boas, superiores às de qualquer quartel na Metróple. A alimentação, porque as refeições são bem feitas, pode-se dizer-se que são do melhor. Se assim continuar, teremos um fim de comissão em beleza.

A situação moral é caótica. O sexo avança em toda a linha. Quase todas as jovens lavadeiras se prostituem por dinheiro.

Guiné-Bissau > Empada > 2005> A antiga (e actual) rua principal de Empada
© José Teixeira (2006)

Buba, 10 de Julho de 1969

Em Buba novamente desde o dia sete, por um mês, segundo diz quem tem os livros, no entanto eu duvido um pouco. Recordo-me do ano passado, quando vim para este Sector, por um mês e ainda cá ando...

Presentemente Buba está calmo, já não mete, até certo ponto, o medo que metia nos tempos em que se andava a rasgar a nova estrada para Quebo (Aldeia Formosa). Mas é de temer , pois mesmo sem o terrror de há meses atrás, o trabalho ainda é muito, as saídas para o mato são constantes e o tempo não ajuda.

Tem chovido muito. Ainda ontem, fui impossibilitado de passar a noite emboscado pela chuva que caíu torrencialmente durante todo o dia. Saí de manhã cedo em patrulha de reconhecimento e ao fim da tarde estávamos ensopados de tal maneira que um colega caíu sem forças e cheio de frio e angustiado por o Comandante não autorizar o regresso a quartéis. Viemos traz-lo e fomos autorizados a ficar.

Não sei o tempo que vou estar por Buba. Parece que querem arranjar a velha estrada de Nhala e tenho medo de lá cair. As recordações que touxe de lá e de Samba-Sábali não foram as melhores e estrada está toda alagada pelas chuvas da época.

A estrada nova Buba/Aldeia Formosa (Quebo) está feita e pretende substituir a velha estrada de Nhala com as suas bolanhas lamacentas, mas ninguém se atreve a passar na dita, pois na primeira e única coluna que se fez, houve três terríveis emboscadas que provocaram três mortos e nove feridos.

Empada está a tornar-se uma zona perigosa. Desde que saí de lá já sofreram dois ataques cujos resultados desconheço. É certo que está lá pouca tropa. Talvez seja essa a razão que faz o turra. ir até lá chatear mas... qual será melhor ? Buba, um pouco calma, com muitas saídas, fraca comida, más instalações, ou Empada que tem melhores condições, com o terrorismo a aparecer ?!


Guiné-Bissau > Empada > 2005> A antiga casa do chefe de posto
© José Teixeira (2006)

Buba, 12 de Julho de 1969

Há qualquer coisa que me falta. Sinto isso mais forte em mim desde que vim de férias. Pego num livro, porque de momento sinto vontade de ler para em seguida o fechar e pensar em qualquer coisa. Procurei na leitura qualquer coisa que precisava e não encontrei.

Sinto-me vazio. Por vezes sonho acordado, imagino a felicidade. Quero mais, quero ir mais além. Creio ser esta a razão do meu vazio. A sede de ir mais longe abrasa-me.
Comecei a sentir medo. Tenho medo de tudo, da vida e da morte, da guerra e do ódio, tenho medo. Tenho medo de mim mesmo, da minha fraqueza. Sinto-me um pouco fraco espiritualmente, mesmo com tudo o que as férias me deram. As forças do lado oposto também são mais fortes.

Será o meu querer forte o suficiente para vencer ? Tenho medo...

... Depois de deixar a pena correr, sinto o mesmo vazio que me persegue, que me atormenta. Que quero eu afinal ? Ir mais além, dar mais, continuar firme na minha construção como HOMEM...

Empada voltou a ser atacada hoje, enquanto por Buba não se nota o mais pequeno sinal do IN, aliás parece-me que as acções do bandido diminuiram em toda a Guiné.


Buba, 18 de Julho de 1969

Para morrer basta estar vivo, não interessa o local ou meio. De paz ou de guerra. A morte aparece em qualquer sítio e a qualquer hora. O Cantinflas estava na guerra.. Caíu debaixo de fogo várias vezes, sofreu os efeitos de uma guerra traiçoeira, sem o mais pequeno ferimento, mas a morte espreitava-o impiedosamente e há dias, através de um choque eléctrico, veio ter com ele.

Mulher e uma filha, os pais e familiares, os amigos, todos o esperavam. Que choque sentirá aquela esposa ao receber a notícia que o marido morreu electrocutado ?! Aquela criança...os pais que o adoravam!...

Veio para os Maiorais [ CCAÇ 2381] em substituição do Alzira que se encontra na Metróple com uma perna artificial depois de pisar uma mina na estrada de Buba. Duas figuras típicas e muito queridas. O Alzira (cujo verdadeiro nome não sei) , um infeliz sem pais, que nos deliciava com os seus fados. O Cantinflas pela sua boa disposição permanente que deixava transparecer através de comiquices e lhe valeram o nome.

Empada voltou a ser atacada. Hoje emboscaram no Rio Grande duas Lanchas de Desembarque e o Barco Patrulha que transportavam uma Companhia para Gadamael. Creio que não houve problemas.


Buba, 22 de Julho de 1969

Domingo (20) saí para o mato pela tarde a patrulhar a estrada nova e emboscar o IN em seguida. De certeza que fomos seguidos pelo IN que nos deixou montar a emboscada e abriu fogo de seguida. A nossa reacção foi rápida e os indivíduos calaram-se. Uma granada caíu bem perto de mim mas não feriu, aliás, nenhum dos meus camaradas foi ferido pelo IN. Apenas o homem do morteiro 60 se feriu na mão com o morteiro.

Retirámos silenciosamente sem mais novidades e chegámos a Buba pelas 20 horas onde toda a gente esperava ordens para avançar em nosso auxílio. Este pequeno ataque não foi pera doce para mim. Quando notei que o camarada do morteiro estava ferido - tinha a mão rasgada por não ter utilizado o prato e o morteiro ao disparar enterrou-se na terra escorregando-lhe pela mão - , passei mensagem que não havia feridos graves e dispus-me a tratá-lo para evitar a hemorragia.

O Comandante, na sua pressa de se afastar da zona de perigo, mandou retirar e quando nos apercebemos estávamos a 300/400 metros dos companheiros de luta com o IN, na retaguarda que também não se tinha apercebido da situação. Iniciamos uma fuga a alta velocidade. Valeu-os o colega do ´lança-rockets que se apercebeu e fez passar algumas granadas por cima de nós obrigando o IN a manter-se em defesa.

Guiné 63/74 - P487: Victor David, ex-Alf Mil da CCAÇ 2405 (Galomaro e Dulombi, 1968/70)

Mensagem do Victor David, ex-alf mil da CCAÇ 2405 (Galomaro e Dulombi, 1968/69) (1)

Camarada Luis Graça:

Tive um imenso prazer em conhecer-te e espero que me autorizes a entrar de quando em vez no Blogue.

Parabéns pela iniciativa e dentro em breve contactarei com camaradas da minha companhia – a dos baixinhos do Dulombi, a CCAÇ 2405, para que eles também possam dar a sua achega a tão excelente ideia (2).

Um grande abraço e até breve
Victor Fernando Franco David

COIMBRA
_____

Nota de L.G.

(1) vd. post, do José Martins, de 6 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - D: Madina do Boé, 37 anos depois

(2) A CCAÇ 2405 participou, entre outras, na Op Mabecos Bravios (Fevereiro de 1969) e Op Lança Afiada (Março de 1969). Era a unidade de quadrícula de Galomaro (e Dulombi)(vd. carta de Duas Fontes).

Até Julho de 1969 Galamaro fazia parte do Sector L1 (BCAÇ 2852, Bambadinca). Em Agosto de 1969, a ZA (Zona de Acção) da CCAÇ 2405 passou a constituir o COP 7, criando-se em Outubro seguinte o Sector L5, sob a responsabilidadew do BCAÇ 2851 e formado pelas ZA das CCAÇ 2405 (Galomaro) e 2406 (Saltinho).

terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P486: O monumento da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) (Luís Graça)

Estive hoje em Coimbra, nos Olivais, com o nosso camarada Carlos Marques dos Santos, ex-furriel miliciano atirador de artilharia, da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), bem com o seu primo, o Vitor David, que foi alferes miliciano da CCAÇ 2405 (Galomaro, 1968/69).

Este último prometeu entrar para a nossa tertúlia e esclarecer alguns pontos (polémicos) da travessia do Corubal, no Cheche, que esteve na origem na tragédia do dia 6 de Fevereiro de 1969, já aqui ontem evocada. O Vitor não participou na Op Mabecos Bravios, ficou no aquartelamento com o seu grupo de combate, mas assistiu, com a angústia na alma, à recepção, na sala de cripto, das mensagens com a lista dos mortos...

Proporcinou-se estar com estes dois camaradas, que tiveram a gentileza de me ir buscar e levar ao comboio, estação de Coimbra-B (1). Almoçámos juntos, matámos saudades, juntos, dos tempos da Guiné e até mandámos vir rancho (!) para o almoço.

Prometi voltar aos Olivais onde, nos bons velhos tempos, os futricas impunham a lei aos estudantes, impedindo-os de ultrapassar o famoso paralelo 98... Por sorte o serviço (académico) que eu tinha a fazer era para aqueles lados, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Espero lá voltar mais vezes, até por que fiquei com enorme pena de poder visitar a belíssima igreja de Santo António dos Olivais. Tanto o Carlos como o Vitor são excelentes cicerones e têm o privilégio de continuar a viver no chão que nos viu nascer e criar.

E a propósito, tinha aqui,desde há uns tempos, material que o Carlos me tinha
enviado e que evoca a construção do momumento da CART 2339... É uma boa ocasião para inseri-lo no blogue.


Guiné > Mansambo > CART 2339 > 1968 > Aquartelamento de construção
© Carlos Marques dos Santos (2006)


Guiné > Mansambo > CART 2339 > 1968 > Monumento aos mortos da Companhia
© Carlos Marques dos Santos (2006)

Na lápide a meio do documento pode ler-se:

"Aos Vindouros: O aquartelamento de Mansambo foi construído pela CART 2339. Respeitá-o tal como é pois nas suas paredes há suor, lágrimas e um pouco do seu sangue. Inaugurado em 20 de Janeiro de 1969".

Guine > Mansambo > CART 2339 > 1969 > No dia (festivo) da inauguração do monumento. Cerimónia oficial. O Furriel Miliciano Marques dos Santos posa para a posteridade.
© Carlos Marques dos Santos (2006)

Guine > Mansambo > CART 2339 > 1969 > O monumento, no meio da parade. Ao fundo, a famosa árvore que sinalizava o aquartelamento, ao longe
© Carlos Marques dos Santos (2006)

Guine > Mansambo > CART 2339 > 1969 > No dia (festivo) da inauguração do monumento. O hastear da bandeira.
© Carlos Marques dos Santos (2006)

Guine > Mansambo > CART 2339 > 1969 > Dia de festa. O 3º Grupo de Combate, a que pertencia o Fur Mil Marques dos Santos, em estado de prontidão.
© Carlos Marques dos Santos (2006)

Guiné > Mansambo > CART 2339 > O monumento tal como foi deixado na altura do regresso da companhia à Metrópole, em Novembro de 1969: brazão da compnhia e a lista dos mortos. Ao fundo o abrigo do Furriel Miliciano Marques dos Santos.
© Carlos Marques dos Santos (2006)

Guiné- Bissau > Região Leste > Mansambo > 1996: Restos (calcinados) do monumento erigido pela CART 2339 ("Os Viriatos"), pertencente ao BCAÇ 2852 (1968/1970), quando o Humberto Reis por lá passou em 1996...
© Humberto Reis (2005)
_________________

(1) Uma sugestão: vd. post de L.G., no Blogue-Fora-Nada... e Vão Dois > 1 de Dezembro de 2005 > Blogantologia(s) II - (20) : O país que via passar os comboios

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P485: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (11): Desenfiado, em férias na Metrópole (Maio/Junho de 1969)

Guiné > Ingoré > CCAÇ 2381 > 1968 > O 1º cabo Teixeira era muito mais do que um simples enfermeiro, era um verdadeiro animador sociocultural... Aqui, ainda no início da sua comissão, com duas crianças vestidas com a farda da Mocidade Portuguesa.
© José Teixeira (2006)


Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) (1)

 
Bissau, 19 de Junho de 1969

Regressei a Bissau depois de um mês de férias na Metrópole onde pude participar no casamento do meu irmão Joaquim.

A minha [licença] de férias foi cheia de aventura. O Comandante não assinou o Passaporte, pelo que não podia ir, apesar de ter a viagem comprada. Mandei um rádio para Bissau a anular a viagem e entretanto o Comandante foi para uma Operação.

Como tinha a papelada toda pronta apresentei-a ao Capitão mais antigo que ficara a exercer o Comando, e que era um bolas, estava ali de castigo. Este assinou e logo enviei novo rádio a Bissau a reservar a viagem, só que a avioneta do correio não veio no dia habitual e o risco de perder o avião e o dinheiro da viagem era grande.


Guiné > Empada > CCAÇ 2381 > 1969 > O 1º cabo enfermeiro Teixeira, para além da sua intensa actividade operacional, estava sempre disponível para os outros e arranjava maneira de se divertir e divertir os seus camaradas. Aqui, caricaturando o festival da Eurovisão.
© José Teixeira (2006)

Entretanto aparecem dois bombardeiros no ar e o lugar do atirador vago. Ao pressentir que iam aterrar, fardei-me, peguei na mala e dirigi-me à pista com intenções de pedir ao Comandante da Esquadrilha para me levar, só que vejo sair do outro Bombardeiro nada menos que o meu Comandante que regressava da Operação. Olhou para mim, muito espantado, e regressámos ao quartel na mesma viatura, isto porque o meu Passaporte perdera de imediato o valor, e anulei novamente a viagem. No entanto pedi ao Alferes Barbosa para o guardar.

Nessa noite veio a Buba uma lancha trazer uma peça necessária para uma máquina, um caterpillar, que estava parado por ter pisado uma mina e era utilizado na construção da estrada para Aldeia Formosa.

Guiné > Empada > CCAÇ 2381 > 1969 > O 1º cabo enfermeiro Teixeira tinha, além disso, um trato fácil e afável com a população local. Aqui vemo-lo "muçulmano por um dia", ou melhor, vestido à maneira tradicional da população islamizada... © José Teixeira (2006)

Alguém me veio avisar e eu rompi a barreira, fui ter com o Barbosa que estava a jogar cartas com o Comandante, fiz-lhe sinal para vir cá fora, pedi-lhe o Passaporte falso e, à revelia do Comandante, fui para a Praia. Um colega pegou em mim e atirou-me para dentro da lancha e lá fui eu rumo a Bissau.

No dia seguinte de manhã cheguei a Bissau, corri à Agência, consegui ainda reservar a viagem e esperei 24 horas pela partida para Lisboa via Ilha do Sal.
____________

(1) Demos início à publicação de O Meu Diário, em 1 de Janeiro de 2006. Recorde-se o percurso do nosso amigo e camarada de tertúlia nas terras da Guiné:

"Fui enfermeiro de campanha na CCAÇ 2381. Fui para a Guiné em fins de Abril de 1968 e regressei em Maio de 1970.

"Estacionei cerca de 3 meses em Ingoré, no Norte, onde a companhia fez o seu treino operacional.

"Seguimos depois para Buba [, na região de Quínara, no sul] e fixámo-nos em Quebo (Aldeia Formosa), [no final de Julho de 1968].

"Aí a CCAÇ 2381 teve como missão fazer escoltas de segurança às colunas logísticas de abastecimento entre Aldeia Formosa/Buba e Aldeia Formosa/Gandembel, ao mesmo tempo que garantia a autodefesa de Aldeia Formosa, Mampatá e Chamarra.

"Regressámos a Buba, em Janeiro de 1969, para servirmos de guarda às equipas de Engenharia que construiram a estrada Buba/Aldeia Formosa.

"Face ao desgaste físico/emocional fomos enviados, a partir de 1969, para Empada onde vivemos os últimos meses de Comissão".

Guiné 63/74- P484: O rali Porto-Bissau (2): ajudar os guineenses... a estudar (Albano Costa)

Matosinhos > Guifões > Um apelo solidário: "Vamos ajudar a Guiné... a estudar. Contribua com material escolar e roupa de verão"...
© Albano M. Costa (2006)


1. Texto do Albano Costa (Guifões):

A solidariedade para com os países de língua portugueses e, neste caso a Guiné, está patente neste cartaz. Estando eu a falar com o Sr. Presidente da Junta de Freguesia de Guifões, concelho de Matosinhos, sobre a viagem que se vai realizar à Guiné-Bissau no próximo dia 5 de Abril, logo se fez um movimento como a foto ilustra.

Eu bem te dizia, meu caro L.G., que isto já nunca mais pára, estes jovens estão todos entusiasmados, agora vamos imaginar, eles descobrirem a Guiné, não saíam mais de lá.

Um abraço,
Albano Costa


2. Comentário de L.G.:

Albano e restantes amigos e camaradas da Guiné:

Solidariedade é uma palavra bonita. Temos que a traduzir em boas acções. Temos que lhe dar asas para voar. E pernas para andar. E mãos e cabeça para se tornar efectiva. Ora as boas acções, no meu entender, não são mais do que ir ao encontro das necessidades e expectativas dos nossos irmãos da Guiné-Bissau.

Há uma segunda independência a conquistar pelos guineenses, essa talvez até bem mais difícil do que a primeira, pela qual combateram contra os tugas... Enquanto houver um guineense com fome, sem casa, sem educação, sem bianda, sem paz, sem segurança, sem liberdade, sem saúde nem cuidados de saúde, sem futuro, o sonho de Amílcar Cabral ainda está muito longe de se realizar (1)...

Guiné > Rio Geba (largo) > 1970 > Vista aérea... "Esta é a nossa Pátria amada, /Sol, suor e o verde e mar,/ Séculos de dor e esperança!"...

© Humberto Reis(2006)

Achei bonito o gesto do Albano e do presidente da Junta de Freguesia de Guifões. Que podemos fazer pelo povo da Guiné-Bissau, nós, tertulianos, neste dia, 6 de Fevereiro de 2006, em que ainda estamos de luto pelos 47 camaradas que perderam a sua vida em Cheche, na travessia do Rio Corubal, há 37 anos atrás ? Dar sentido ao nosso luto, mas também dar esperança àqueles, homens, mulheres e crianças, que no dia 24 de Setembro de 1973, nas colinas do Boé, acreditavam estar a fazer história, proclamando a independência de um país novo (e lusófono!)...

Até ao dia 5 de Abril, em que parte o nosso rali Porto-Bissau, hão-de por certo surgir mais algumas ideias para ajudar os nossos amigos e irmãos guineenses a ganhar a difícil guerra do futuro. Que passará sempre pela educação e pela saúde. Por isso, "ajudar a Guiné... a estudar" parece-me uma palavra de ordem mobilizadora.
______

Nota de L.G.:

(1) Esta é a Nossa Pátria Bem Amada (hino nacional da República da Guiné-Bissau)

Esta é a nossa Pátria amada,
Sol, suor e o verde e mar,
Séculos de dor e esperança!
Esta é a terra dos nossos avós!
Fruto das nossas mãos,
Da flôr do nosso sangue:
Esta é a nossa pátria amada

Refrão

Viva a pátria gloriosa!
Floriu nos céus a bandeira da luta.
Avante, contra o jugo estrangeiro!
Nós vamos construir
Na pátria imortal
A paz e o progresso!
(repete as três linhas anteriores)
Paz e o progresso!

Ramos do mesmo tronco,
Olhos na mesma luz:
Esta é a força da nossa união!
Cantem o mar e a terra,
A madrugada e o sol
Que a nossa luta fecundou.

Guiné 63/74 - P483: Efemérides: Madina do Boé, 37 anos depois (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Madina do Boé > 1998 > 

Diz o Albano que vai procurar nos seus arquivos a foto, "para oferecer ao Mário Dias", da "placa que existe em Madina de Boé sobre o Domingos Ramos" (morto em 1966).

O Domingos Ramos é uma herói da guerra de libertação. O Albano regressou à Guiné-Bissau em Novembro de 2000. Foi aqui que o PAIGC declarou a independência da Guiné-Bissau em 1973. Embora esta zona seja pouco habitada, o Xico Allen (ou os seus companheiros) encontrou e fotografou população civil quando lá esteve em 1998, com o Camilo, o algarvio, e outros camaradas (Neste momento o Camilo vai a caminho da Guiné-Bissau, por via terrestre, na sua expedição 2006: ontem ouvi uma entrevista dele na Antena 1 e vi uma reportagem na SIC sobre o assunto. O Camilo citou expressamente o Xitole como um dos sítios aonde tenciona levar material escolar) . Na época o grupo de portugueses que se deslocou ao Boé, partiu de Quebo (Aldeia Formosa), tomando uma picada existente sempre junto à fronteira com a Guiné- Conacri até Madina de Boé. No regresso vieram por Cheche onde atravessaram o Rio Corubal e seguiram Gabu.


Guiné-Bissau> Picada de Cheche - Gabu > 1998 > Restos de viaturas das NT abandonadas... 
© Francisco Allen / Albano M. Costa (2006)

Faz hoje 37 anos que a Op Mabecos Bravios (destinada a cobrir a retirada das forças estacionadas em Madina do Boé) teve um desfecho trágico para 47 camaradas nossos, da CCAÇ 2405 (Galomaro) e da CCAÇ 1790 (Madina do Boé). Na história do BCAÇ 2852 (Bambadinca,19768/70), lê-se resumida e cruamente, no final:

"Na Op Mabecos Bravios, que durou 6 dias, interveio [o BCAÇ 2852] com a CCAÇ 2405 que constituiu o Dest F como força de segurança para a travessia do Rio Corubal (Cheche) de forças de Madina do Boé. Devido ao afundamento da jangada em que se fazia a travessia do último contingente militar foram dados como desaparecidos 17 militares desta Companhia".

Em Fevereiro de 1969, a CCAÇ 2405 estava sediada em Galomaro, com um pelotão em Samba Juli, outro em Dulombi e um terceiro em Samba Cumbera. Voltamos a transcrever o post de 2 de Agosto de 2005, com o relatório da Op Mabecos Bravios, o que se justifica não só pela efeméride (o 37º aniversário desse dia trágico de 6 de Fevereiro de 1969) como também por atingirmos o post nº 500 (CDC) e ainda devido ao facto de, no post original, haver alguns erros e omissões que se aproveita a ocasião para corrigir.

É também um pretexto para a nossa tertúlia prestar a sua sentida homenagem aos camaradas desaparecidos para sempre nas águas do temível Rio Corubal, quer os da CCAÇ 2405 quer os da unidade de quadrícula de Madina do Boé, a CCAÇ 1790 (2).

A evocação desse dia negro na história da guerra colonial da Guiné e a homenagem aos nossos mortos já aqui foram feitas, recentemente, pelo José Martins (ex-furriel miliciano de transmissões da CCAÇ 5, Canjadude, 1967/69: vd. post de 4 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCV: Madina do Boé: 37º aniversário do desastre de Cheche (José Martins).

Associam-se ainda à esta singela homenagem os nossos camaradas Francisco Allen e Albano Costa (este último acaba de mandar uma série de fotografias tiradas pelo Xico Allen, quando este esteve em Cheche e Madina do Boé, em 2003, creio eu: ou foi em 1998 ? ou em 20005 ?) (1),além do Humberto Reis (que me facilitou uma cópia mais legível da história do BCAÇ 2852). Aos três o meu/nosso muito obrigado.

Extractos de: Guiné 68-70. Bambadinca: Batalhão de Caçadores nº 2852. Documento policopiado. 30 de Abril de 1970. c. 200 pp. Classificação: Reservado. Cap. II. 36-38.

Op Mabecos Bravios (omiti os nºs mecanográficos dos nossos camaradas e fiz alguns correcções de erros óbvios como Cajadude, em vez de Canjadude)

Iniciada a Op Mabecos Bravios, em 1 [de Fevereiro de 1969], com a duração de 8 dias, para retirar as nossas tropas de Madina do Boé. Entre vários destacamentos, tomou parte no Dest F a CCAÇ 2405.

Desenrolar da acção:

O Destacamento F com o efectivo de 112 homens (4 oficiais, 10 sargentos e 98 praças - estão incluídos 1 secção de sapadores e 8 condutores auto), saiu de Galmaro em 1 de Fevereiro de 1969, pelas 9.30h, e chegou a Nova Lamego por volta das 13.00h do mesmo dia, sem qualquer novidade.

Guiné-Bissau> Picada de Cheche-Gabu > 1998 >. Trinta anos depois ainda continuam vísiveis os sinais das emboscadas e das minas... 

© Francisco Allen / Albano M. Costa (2006)

Aqui fizeram-se os preparativos finais da organização da coluna que partiu às 5.30h do dia 2 [D]. Abre [o autor do relatório] um parêntesis para discordar do pormenor da organização da coluna: os meus condutores e mecânicos tiveram que conduzir e dar assistência técnica a viaturas que não lhe pertenciam e das quais desconheciam as mazelas. Daqui resultaram perdas de tempo inúteis e uma tremenda confusão resultante do facto de os atiradores terem guardado parte dos seus haveres e utensílios militares em viaturas que supunham pertencer às unidades e que, sem que se saiba porquê, foram trabalhar para unidades diferentes.

A coluna saiu de Nova Lamego para Canjadude com o pessoal totalmente embarcado e atingiu-se esta povoação por volta das 9.00h sem qualquer problema. A partir de Canjadude a coluna progrediu com guardas de flancos tendo o Dest F colaborado na guarda da rectaguarda da coluna fazendo uma progressão apeada que não estava prevista.

Atingiu-se o Cheche [entre Canjadude e Madina do Boé] por volta das 17.00h (sempre com uma cobertura aérea excelente). Imediatamente os Dest D e F fizeram a transposição do [Rio] Corubal e foram ocupar as posições estratégicas previstas. Já escurecia e o Dest D levava 1 minuto de avanço sobre o Dest F. Subitamente o 1º Pel[otão] revelou achar estranho algo que se passava à nossa direita, parecendo-lhes ter visto elementos estranhos. Por outro lado o guia assegurou tratar-se de turras pelo que a Companhia tomou posições de combate, lançando-se ao solo e imobilizando-se. Seguiram-se dois disparos rápidos de morteiro (os clarões foram facilmente visíveis quando as granadas saíram à boca da arma). Foram tiros curtos na direcção sudoeste, e os rebentamentos deram-se próximo do local que o Dest F iria ocupar daí a momentos.

O IN não voltou a manifestar-se mas obrigou-nos a uma vigilância nocturna permanente e a uma mudança de posição por volta das 23.00h. Às 20.00h ouviram-se na direcção oeste dois tiros que me pareceram de arma nossa, fazendo fogo de reconhecimento. Pelas 5.30h [do dia 3, D + 1] mandou-se um Pelotão a Cheche buscar um Pelotão do Dest E que fazia guarda imediata às viaturas e que eu devia levar até Madina.

Pelas 6.30h dirigi-me à zona do Dest E onde se organizou a coluna com o Dest F à frente e uma guarda de flanco avançada e o Dest D atrás igualmente com guarda de flanco. Iniciei o movimento guiado com carta e bússola porque a marcha foi feita a cerca de 200 metros (mínimo) da estrada. O meu objectivo era surpreender o IN pela rectaguarda tanto mais que os aviões me anunciaram haver possibilidade de sermos emboscados.

Cerca [ das 10.00h ] o Dest F sofreu um violento ataque de abelhas e teve que recuar cerca de um quilómetro para se reorganizar de novo. Um soldado, em consequência, ficou imediatamente fora de acção. Foi pedida a respectiva evacuação bem como a de outro soldado que apresentava sintomas de insolação. As evacuações fizeram-se para Nova Lamego dos 1ºs cabos (…) Carlos G. Machado, (…) Agostinho R. Sousa, e dos soldados (…) José A. M. S. Ferreira, (…) Manuel N. Parracho, (…) Benjamim D. Lopes, (…) Fernando A. Tavares, (…) Cândido F. S. Abreu, (…) SAntónio S. Moreira e, para Bissau, O 1º CABO (…) Adérito S. Loureiro. O héli desceu mais tarde para reabastecer o pessoal de água.

Guiné-Bissau> Rio Corubal > Cheche > 1998 > Praia fluvial com rampa de acesso. Foto tirada a meio do rio, na viagem de Quebo (Aldeia Formosa) - Madina do Boé - Cheche- Gabu (Nova Lamego) .... 
© Francisco Allen / Albano M. Costa (2006)

Reiniciada a marcha, sofremos segundo ataque de abelhas que inutilizaram mais uma praça para quem teve de ser pedida mova evacuação. Entretanto, eram 14.30h, e mais 2 soldados, esgotada a sua provisão de água, apresentavam sintomas de insolação. Foram evacuados conjuntamente com 2 praças do Dest D que apresentavam sintomas semelhantes (vómitos, intensa palidez, olhos dilatados, respiração frenética).

O Dest D passou para a frente e reinicou-se a marcha, sempre fora da estrada até à recta que leva a Madina. Nada mais se passou além do sofrimento intenso das tropas por via do calor. O Det D foi reabastecido de água. Atingimos Madina por volta das 19.00h desligados do Dest D que prosseguiu a sua marcha quando F teve que parar para reajustar o dispositivo e tratar os mais debilitados (4 praças e 1 furriel).


Guiné-Bissau> Madina do Boé > 1998 > A famosa fonte da Colina do Boé, com ornamentação de azulejo português, pintado à mão, de 1945. Parece haver vestígios de impacto de balas de armas automáticas. É um sítio onde se concentra muita população da actual Madina.
© Francisco Allen / Albano M. Costa (2006)

Houve descanso em Madina e tomou-se uma refeição quente. No dia 4 (D + 2) o Dest F dirigiu-se para [... Cumbema ?, ilegível] ocupando a posição 3 que atingiu sem dificuldade por volta das 11.00h. Alternadamente ocupou-se as posições 3 e 4 de acordo com o plano.

Em D + 3 [5 de Fevereiro de 1969] por volta das 7.30h recebemos ordens do PCV [Posto de Comando Volante] para a abandonar a nossa posição e seguir ao encontro da coluna. Uma hora depois atingimos o campo de aviação de Madina onde fomos reabastecidos de água e r/c [rações de combate].

Pelas 9.00h a coluna pôs-se em movimento e meia hora depois 4 carros da rectaguarda tiveram um acidente. Não obstante, a coluna prosseguiu e o pessoal do Dest F mais os mecânicos resolveram a dificuldade. Entretanto, o final da coluna pôs-se em movimento acelerado para apanhar as viaturas da frente e deixaram a guarda da rectaguarda isolada no mato, num momento particularmente difícil em que precisávamos evacuar 2 soldados vencidos pelo esgotamento físico e nervoso (2 noites seguidas sem dormir, ataque de abelhas em D +1, intenso calor).

Guiné-Bissau> Picada Madina do Boé- Cheche - Gabu > 1998 > Fantasmas da guerra colonial que, de tempos a tempos, perturbam a paisagem e o viajante... Mais uma viatura dos tugas abandanada à beira da picada... 
© Francisco Allen / Albano M. Costa (2006)

O Comandante da coluna ordenou que se fizesse a evacuação e o reabastecimento de água. Feitos estes, iniciou-se a marcha e abreve trecho tomámos contacto com a coluna e tudo correu normalmente até ao Cheche. A cobertura aérea pareceu-me impecável. Próximo de Cheche recebi ordens para ocupar a posição que ocupara que tivera em D / D+1 porque o Exmo. Comandante da Operação entendeu dever poupar alguns quilómetros ao Dest F e D, bastante atingidos pela dureza dos respectivos percursos. Essa foi a razão porque não transpus o [Rio] Corubal em D + 3 [ 5 de Fevereiro] só o vindo a fazer em D + 4 [6 de Fevereiro] por volta das 9.00h.

O IN continua sem se manifestar (ou sem se poder manifestar). Durante a transposição do Corubal a jangada em que seguiam 4 Gr Comb [da CCAÇ 2405 e da CCAÇ 1790], respectivos comandos e tripulação afundou-se espectacularmente acerca de um terço da largura do rio, provocando o desaparecimento de 17 militares do Dest F e grandes quantidades de material perdido.

Guiné-Bissau> Picada Cheche-Gabu > 1998 > Trágicas memórias da guerra... 
© Francisco Allen / Albano M. Costa (2006)

Por voltas das 10.00h de D+ 4 [6 de Fevereiro] saímos de Cheche para Cajadude [vd. mapa local de Cheche] que atingimos por volta das 16.30h com o pessoal deste Dest embarcado. Descansou-se e em D + 5 [7 de Fevereiro] às primeiras horas a coluna pôs-se em movimento para Nova Lamego que foi atingida por volta das 11.00h. Às 12.00h as tropas ouviram uma mensagem do Exmo. Comandante-Chefe que se deslocou propositadamente para a fazer.

Permaneci em Nova Lamego para organizar a coluna do dia seguinte. Às primeiras horas de D + 6 [8 de Fevereiro] iniciei o movimento para Galomaro onde cheguei cerca das 10.30h.
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(1) Mensagem do Albano:

Caro amigo Luís Graça: Envio sete fotos sobre Madina de Boé, a picada onde foram destruídas várias viaturas durante a guerra colonial, a fonte da Colina de Medina e a população civil de Madina.

Luís, vou procurar nos meus arquivos para ofereceres essa imagem ao Mário Dias de uma placa que existe em Madina de Boé sobre o Domingos Ramos.

Estas fotos são do arquivo do Francisco Allen (ainda hoje estive com ele), fica contente em saber que são úteis, as fotos.

Um abraço, Albano Costa

(2) Sobre a CCAÇ 1790 (que teve 30 desaparecidos em Cheche), vd. post de 17 de Jukho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)

" (...) Há cerca de três anos, a SIC passou um documentário sobre a guerra colonial. Nesse documentário, que relata um dos episódios mais tristes e violentos da guerra em África, participaram, entre outros antigos combatentes, Gustavo Pimenta, o tenente-coronel José Aparício, seu antigo comandante, e vários oficiais dos exércitos português e guineense.

"O filme conta a história da operação militar da retirada da Companhia 1790 do aquartelamento de Madina do Boé, durante a qual morreram 46 militares, 15 dos quais pertencentes ao pelotão comandado pelo ex-alferes miliciano Gustavo Pimenta. A tragédia, de incomensuráveis proporções, ocorreu quando a jangada que ligava as duas margens do rio Corubal, para o transporte dos homens e das viaturas, se virou inexplicavelmente. Muitos salvaram-se, muitos morreram. Vinham de Madina – essa região vasta e despovoada no leste do território, junto à fronteira com a República da Guiné-Conacri – onde a companhia de caçadores, de que fazia parte Gustavo Pimenta, estivera estacionada durante treze meses. E em treze meses, não contando com o número de ataques da forças do PAIGC de duração inferior a dez minutos, que em muitos casos só serviam para causar desestabilização e afectar psicologicamente os militares, o quartel foi bombardeado por 243 vezes" (...).

domingo, 5 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P482: O ataque de foguetões 122 mm a Canjadude, em abril de 1973 (João Carvalho, ex-fur mil enf, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", 1973/74)

Guiné > Gabu (Nova Lamego) > Canjadude > 1973 > CCAÇ 5 (Gato Preto) > Vista geral do aquartelamento... Em Abril de 1973, as NT são surpreendidas por um ataque certeiro de 6 foguetões 122 mm... Mais uma escalada na guerra... 

© João Carvalho (2005) (1)

Olá Luis

Peço desculpa de só agora te enviar qualquer coisa. ´Tenho falta de tempo, para procurar arquivos. 

Envio- te:

1 - a cópia de um aerograma que enviei de Canjadude em 1973 ao meu irmão. O original, não sei se ainda existe, mas por vezes eu escrevia numa agenda a cópia dos aeros que enviava e, por isso, ainda tenho o texto (com uma péssima redacção, mas...)

2 - Foto tirada no interior do Clube de Oficiais e Sargentos de Canjadude (sou o 2º a contar da direita).

3 - Foto tirada de cima duma das grandes pedras existentes em Canjadude. Vista geral da CCAÇ 5 .

João Carvalho
(ex-furriel milicano enfermeiro da CCAÇ 5, Canjadude, 1973/74)
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Canjadude (CCAÇ 5)

(...) No dia 27 de abril de 1973 às 22h e 50m, estava eu no clube de oficiais e sargentos, a conversar com mais dois furriéis e com o soldado que trabalha lá, quando ouvimos Bum-bum!!! (dois sons graves, logo seguidos). Um dos furriéis virou-se para o outro e disse:

- Não batas com os pés no balcão que é chato.- (Quando se bate no balcão, parece uma saída de morteiro).

Então o outro, com um ar muito espantado, diz:

- Mas eu não toquei no balcão. - Ficámos a olhar uns para os outros, assim meio desconfiados, até que chegámos à conclusão que devia ser um ataque pois, de imediato ouvimos um estrondo enorme e o clube abanou por todos os lados. Logo a seguir outro igual. Ficamos completamente despassarados e resolvemos sair a correr pela porta principal, porque se abrissemos a porta lateral, via-se luz cá de fora e podiam começar a atirar para nós.


Guiné > Gabu (Nova Lamego) > Canjadude > 1973 > CCAÇ 5 (Gato Preto) > Interior do Clube de Oficiais e Sargentos de Canjadude (o furriel miliciano Carvalho é o 2º a contar da direita... No mural, na pintura na parede, pode ler-se: [gato] preto agarra à mão grrr.... Percebe-se que estamos no Rio Corubal com o campo fortitifaco de Cheche do lado de cá (margem direita) e... a mítica Madina do Boé, do lado de lá (margem esquerda)... Em 24 de Setembro de 1973, em Madina do Boé, o PAIGC proclama a independência da nova República da Guiné-Bissau.

© João Carvalho (2005)


Eu vinha em último lugar a correr (semiagachado) a contornar o clube para ir para a vala, quando bati com a cara numa coisa duríssima e caí para trás e em cima do outro furriel que estava ainda no chão e que lhe tinha sucedido o mesmo. Levantámo-nos e ele disse que era uma viatura que estava ali parada (nós não víamos o Unimog porque saímos dum sítio com luz e ainda por cima como não havia lua não havia claridade nenhuma e a viatura não costumava estar estacionada naquele lugar).

Contornámos a viatura e metemo-nos na vala, andando ao longo desta para sairmos debaixo dos mangueiros. Olhei para dentro do quartel e vi um clarão enorme acompanhado de um grande estrondo (parecia que estava numa sala com 10 amplificadores ligados ao mesmo tempo). Entretanto começaram a sair do quartel, morteiradas para o mato e também rajadas de metralhadora, ou seja o fogo era já o nosso.

Um indivíduo que estava na metralhadora Breda, perto de nós, dava uma rajada, parava e depois berrava:

- Filhos disto e daquilo, não querem lá ver ?! Vêm gozar com a velhice ?! ... d

Depois, mais uma rajada e repetia a mesma coisa. Agora, quando me lembro, até dá vontade de rir! O fogo parou e eu e o outro furriel, fomos à enfermaria tratar da cara e dos outros feridos se os houvesse. Fiz um corte no nariz e debaixo de cada vista... o outro furriel tinha cortes um pouco menos profundos...

Um dos furriéis que também estava no clube contou que foi a correr pela parada do quartel e que se meteu dentro de um dos abrigos, tendo entrado pela janela um estilhaço que lhe passou por cima. 

Em conclusão, fomos atacados por 6 foguetões lançados mais ou menos a 12 km daqui. Um deles caiu a uns 300 m do arame farpado, outro mesmo no centro do quartel e os outros mais ou menos em cima do arame farpado. Não faço ideia como é que a 12 Km conseguem enfiar com os 6 foguetões praticamente dentro do quartel (2).

Felizmente não houve nada de grave. Só 3 pessoas é que apanharam com estilhaços, mas já com tão pouca força que só tiveram umas feridas superficiais. Houve muitos joelhos esfolados das valas mas... O foguetão que caiu no meio do quartel, deitou abaixo parte da cozinha, o que não faz mal pois aquilo já estava a cair! 

Este ataque pregou-nos um bom susto mas, com uma sorte incrível, não houve nada de especial. (...)
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Nota de L.G.:

(1) Vd post de 23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIV: O nosso fotógrafo em Canjadude (CCAÇ 5, 1973/74)

(2) A utilização de foguetões 122 mm (ou mísseis terra-terra Katyusha), a partir de 1970,   e de mísseis terra-ar Strela, ambos de origem soviética, implicou uma escalada da guerra...

sábado, 4 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P481: Os dias felizes na ponte do Rio Undunduma (CCAÇ 12) (Luís Graça)


Guiné > Rio Undunduma > 1970 > A estrada Xime (à direita) - Bambadina (à esquerda), com a respectiva ponte. Vísivel também o troço da nova estrada que estava em construção, a cargo da empresa Tecnil, e que implicou a construção de uma nova ponte. © Humberto Reis(2006)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Estrada Xime - Bambadinca > 1997 : Ponte (velha) do Rio Undunduma. Em 1969/71, no tempo da CCAÇ 12, a segurança desta ponte, construída em 1952, era de importância estratégica para toda a região leste. Ficava a 4 km de Bambadinca e a 7 do Xime. No ataque em força, a Bambadinca, em 31 de Maio de 1969, os guerrilheiros do PAIGC tentara dinamitá-la. Embora parcialmente destruída (era de bom cimento armado...), continuou operacional. Já sabemos que a partir daí passou a ser defendida permanentemente por uma força a nível de pelotão, a cargo das unidades do BCAÇ 2852.

A partir de 16 de Dezembro de 1969 a segurança permanente passou a ser feita pelos Gr Comb da CCAÇ 12 e pelo PEL CAÇ NAT 53 (Bambadinca). Havia apenas abrigos individuais, extremamente precários: bidões de areia com cobertura de chapa de zinco, e valas comunicando entre os abrigos individuais.

© Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor em Bambadinca)

Comentava há dias o Jorge Cabral, com uma ponta de fina ironia, que nós - aqui no blogue - somos demasiado sérios e que escrevemos como se a guerra (da Guiné) ainda não tivesse acabado para nós. Os nossos relatos são dramáticos. As nossas memórias estão carregadas da tensão dos dias, do cansaço dos meses e do silêncio dos anos.

Guiné > Rio Undunduma > Destacamento da CCAÇ 12, 2º Grupo de Combate > 1970 > O Humberto, à ré, mais um soldado de transmissões, à proa, treinando as suas perícias na difícil modalidade da canoagem local... "Era o António Dias Santos, de alcunha, não sei porquê, O Bacalhau. Quando estava em Bambadinca normalmente andava pela tabanca ao cheiro das bajudas e quase sempre com uma varinha na mão a imitar um pingalim. Há uns anos, quando organizei um dos primeiros almoços da rapaziada, procurei na lista telefónica o nome dele na zona da Régua, pois sabia que ele tinha sido funcionário da CP e que morava ali. Descobri-o, mas quando falei com a senhora é que fiquei a saber que ela já era viúva do Bacalhau" (HR)
© Humberto Reis (2006)

Se calhar o Jorge tem razão. Pelo menos, alguma razão. Os nossos sentimentos são contraditórios. Alguns de nós conseguem ter (ou mostrar) uma visão mais diurna e positiva da Guiné do tempo da guerra. São capazes de se encantar com as imagens e as recordações da Guiné. Alguns conseguiram até lá voltar e fazer as pazes com os jagudis ou os sinistros fantasmas que os perseguiam. O Humberto, o Marques, o Guimarães, o Albano, o Teixeira, o Allen, o Camilo, o algarvio, voltaram lá (O Camilo, que ainda não pertence à nossa tertúlia, prepara-se, em Fevereiro de 2006, para voltar à Guiné-Bissau, com um novo grupo de camaradas e os jipes carregados de material escolar)... . O Paulo vive lá, como cooperante.
Outros ainda querem lá voltar ou andam a arranjar coragem para fazer a viagem de retorno, divididos entre uma certa imagem mítica do passado e o medo (traumático) do desencanto e do pesadelo dos dias de hoje.

Guiné > Rio Undunduma > Destacamento da CCAÇ 12, 2º Grupo de Combate > 1970 > Passados mais de meio ano, ainda eram visíveis os sinais da tentativa de destruição da ponte... © Humberto Reis (2006)

Enfim, outros continuarão a ter uma visão mais nocturna e negativa dos acontecimentos que os marcaram: as emboscadas, as minas, os ataques e as flagelações, a morte, a dor, o sofrimento, a solidão, a angústia, o absurdo da guerra que fomos obrigados a fazer...

Guiné > Rio Undunduma > Destacamento da CCAÇ 12, 2º Grupo de Combate > 1970 > O Tony (Levezinho) e o Humberto sentados na manjedoura... Era ali, protegidos da canícula, que tomavámos em conjunto as nossas refeições, escrevíamos as nossas cartas e aerogramas, jogávamos à lerpa, bebíamos um copo, matávamos o tédio... © Humberto Reis (2006)

Guiné > Ponte sobre o Rio Undunduma > Saltos para a água... Soldados africanos da CCAÇ 12. Uma cena idílica... © Humberto Reis(2006)

Já deixámos, porém, aqui provas do nosso bom humor, já aqui contámos estórias, mais pícaras, mais divertidas ou mais banais, tentando dar cor, cheiro e sabor àqueles 700 ou mais dias das nossas vidas que passámos na Guiné... O próprio Jorge deu o exemplo, deliciando-nos com as suas pequenas estórias que eu chamei cabralianas... O Jorge sempre teve uma maneira muito própria, desalinhada, talvez até marginal, de ser e de estar na tropa e, por extensõa, na guerra... O nosso convívio era esporádico mas foi o suficiente para eu o sinalizar como uma das figuras impagáveis que passaram por Bambadinca... Felizmente, que está de regresso e que podemos relembrar, em conjunto, velhas estórias...

Guiné > Ponte do Rio Undunduma > 1970 > Pesca à linha, banho à fula, um dia descontraído ... © Humberto Reis(2006)

Tens razão, Jorge. Nem todos os dias eram sofridos, dramáticos, tensos, esgotantes... Nem todos os dias eram de vida ou de morte... Também houve dias ou tardes ou manhãs, calmos, poéticos, bem dispostos e até felizes. Por exemplo, os dias que passávamos no destacamento da Ponte do Rio Undunduma (e tu em Fá Mandinga). Eu, pessoalmente, não guardo nem boas nem más memórias dos dias em que era obrigado a lá ficar (2). À noite, aquilo era um pesadelo... Já o Humberto, a avaliar pelas suas fotos, soube tirar partido da situação: por exemplo, pescava, que era uma coisa que eu não sabia fazer...
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(1) Vd. post do Carlos Marques dos Santos, de 4 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIX: Os Solitários da CART 2339 na Ponte do Rio Undunduma e em Fá

"Em 28 de Maio de 1969 ouvimos rebentamentos para aqueles lados e pensámos ser na tabanca Moricanhe. Afinal, para nosso espanto, era mesmo em Bambadinca, sede do Batalhão.

"Dia 29, pela 05.30 da manhã, seguimos para reforço da sede de Batalhão. 15 dias. Salvo erro com o Pel Caç Nat 63 estivemos em tendas (panos de tenda com botões), em vigília constante, àquela que era uma passagem importante [,a ponte sobre o Rio Undunduma, na estrada Xime-Bambadinca]" (...).

Guiné > Rio Undunduma > Destacamento da CCAÇ 12, 2º Grupo de Combate > 1970 > Da esquerda para a direita: O soldado Arménio e os Furriéis Milicianos Humberto Reis e Tony Levezinho... © Humberto Reis (2006).

(2) Vd post de Luís Graça, de 3 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma

"Ponte do Rio Undunduma, 3 de Fevereiro de 1971: De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem, com uma matilha de cães grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivente da Wermacht nazi (...).Cumprimentou-me mecanicamente. Eu devia ter um aspecto miserável. Eu e os meus nharros, vivendo como bichos em valas protegidas por bidões de areia e chapa de zinco. O coronel (?) que vinha atrás do General chamou-me depois à parte e ordenou-me que, no regresso a Bambadinca, cortasse o cabelo e a barba"...

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P480: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (5): Ecumenismo e festa do fanado

V parte das memórias do primeiro-sargento da CART 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (hoje, capitão reformado) (1).

Uma das boas características do meu pessoal era a de que não gostavam de estar parados nos intervalos das operações. Cada um, nas suas profissões ou aptidões, ia bulindo e foi assim que se reconstruíram e melhoraram abrigos, se implantou uma horta que aproveitava a água, depois de decantada, dos chuveiros das praças e se construiu a obra mais emblemática que deixámos em Guileje: a Capela.

Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68) > Aqui também se rezava, num espírito de ecumenismo e de tolerância religiosa entre cristãos e muçulmanos. Foto da capelinha (cristã) erguida pelas NT . 
© José Neto (2006)

Por sugestão do capelão, Padre João Batista Alves de Magalhães, que apenas pediu um coberto para oficiar a missa quando ia a Guileje, pois dava a volta a toda a área da responsabilidade do batalhão, os Furriéis Maurício (Transmissões) e Arclides Mateus (Atirador), ambos com conhecimentos de desenho de construção civil, planearam e dirigiram a construção do pequeno templo.

Vinte ou trinta anos depois muito se falou em ecumenismo e outras ideias do mesmo sentido, mas nas profundezas da Guiné isso já se praticava.

Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68) > Interior da capela © José Neto (2006)

Na pequena festa de inauguração da Capela e a convite do Capitão Corvacho, o Régulo Suleimane compareceu com toda a sua família e vestido a rigor, embora fosse muçulmano.

As portas da Capela nunca se fecharam. Os europeus iam lá fazer as suas orações e nunca constou que alguém tivesse mexido fosse no que fosse.

Do mesmo modo, quando da celebração do fim do Ramadão, com rituais próprios, mas completamente desconhecidos para a quase totalidade dos rapazes, estes comportaram-se com respeito, a que não faltou uma ponta de curiosidade, é certo.

Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68) > Cerimónia do fim do Ramadão. Um grupo de militares observa com curiosidade mas com respeito. 
© José Neto (2006)

Saliento o facto ocorrido durante a festa do fanado em que as meninas foram preparadas para a, para nós bárbara, ablação de parte dos seus órgãos genitais (2).

Atraídos pela música, os militares metropolitanos acercaram-se do local onde decorria o ritual – as meninas postadas à volta do enorme almofariz enquanto as mulheres, com o pilão, moíam cereais cuja farinha se derramava sobre as cabeças das ainda crianças – e sem quaisquer constrangimentos dançaram e cantaram como se fossem parte da cerimónia.

Houve nesta festa uma excepção que me apraz referir: Eu fui o único fotógrafo autorizado a registar as cenas preliminares. Na palhota onde se procedeu à cirurgia nem pensar.

Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68) > Preparativos para a fsta do fanado. O nosso sargenti foi o fotógrafo oficial, mas a fanateca não o deixou entrar na sala da cirurgia... 
© José Neto (2006)

Tal deferência nada tinha a ver com o meu cargo ou posição na companhia, mas sim porque quando o correio me trazia os slides revelados, eu montava o cenário e mostrava à população as suas caras e os seus lugares que provocavam grandes ovações e expressões de alegria dos visados. Era o que chamavam de cenima do nosso sargenti.
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Notas de L.G.

(1) Vd posts anteriores do Zé Neto, respeitantes às suas Memórias de Guileje:

23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(4): os azares dos sargentos

21 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (3): Dauda, o Viegas

13 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (2): Ordem de marcha

10 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (1): Prelúdio(s)

(2) vd post de Luís Graça > 4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)