domingo, 11 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3722: Fauna & flora (4): Tudo o que sabemos sobre o macaco-kom (Jorge Teixeira-Portojo / António J. P. da Costa)

1. Mais informações em resposta ao pedido da Maria Joana Ferreira da Silva, investigadora portuguesa que está a fazer, no Reino Unido, a sua tese de doutoramento sobre o macaco-cão da Guiné (*):


(i) Jorge Teixeira (ex-Fur Mil, Guiné, 1968/70):

Caro Luís:

Uma vez provei um pouquinho de carne que me disseram que era de macaco. Na realidade só sei isso. Creio que foi assado pelo pelotão fula da artilharia.

No Cantanhez, ali para os lados do cruzamento de Camaiupa, onde fiz algumas emboscadas e no tempo em que eram possíveis os reabastecimentos por terra para Cufar, avistei alguns macacos. Muitas vezes sentavam-se na picada. E voavam por entre as árvores, provocando-nos um cagaço tremendo. Mas não sei que raça eram.

O nosso cabo Valadares, e o furriel Mendes, da CCS do BART 1913, adoptaram um macaquito, mas era um sagui. Do qual o Furriel André tem uma estória engraçada, no tempo em que ele viveu no quarto deles. Com o dito sagui tenho uma foto com ele no meu ombro.

É tudo que eu sei sobre macacos.

Um abraço de amizade. Espero que já estejas de boa saúde. Eu já estou a 90%
Jorge Teixeira

(ii) Cor Art António Pereira da Costa (ex-Cap Art CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)

Por mim lembro-me de que na estrada Cutia - Mansabá havia um lugar que se chamava Mamboncó, ao qual chamávamos a Aldeia dos Macacos. Era uma aldeia abandonada devido à guerra e com muitos mangueiros onde os macacos-cães tinham inteira liberdade. Às vezes saíam à estrada asfaltada e iam à frnte das colunas mais de 1 Km, a correr. Pelo Google Earth creio que Mamboncó hoje foi reocupada.

Viviam em grupos da ordem dos 10 -15, entre adultos e pequenos.

Creio, sem confirmação, que os manjacos os comiam. Nunca vi matar nenhum e não creio que os comêssemos.

Lembro-me que as mascotes dos quartéis eram os saguis. Creio que os macacos-cães não se habituavam ao cativeiro. Os campos de mancarra (amendoim) e de abacaxi era protegidos dos macacos por miúdos que os afugentavam para não estragarem as culturas.

Lancei um campo de minas naquela aldeia. Os macacos desenterravam-nas com extrema perícia e chupavam na pontinha do elemento iniciador. Eram minas minúscula que pareciam uns tinteiros antigos. Nunca nenhum accionou nenhuma. Não sei o que é cabrito pé da rocha. Nunca detectei o uso de macacos para fins religiosos. Só numa operação à Ponta Varela encontrei un pequeno "pagode" com algo parecido, mas eram ratos do campo. Alguns naturais comiam animais que outros abominavam como os pelicanos. Em Cacine, o pescador senegalês comia pelicano e gostava, embora o pessoal Nalu dissesse que sabia a peixe.

Há uma curiosidade. É que a guerra criava regiões protegidas para os animais. Nem nós nem o PAIGC íamos caçar a certas zonas e os animais expandiam-se, como no Quitafine (extermo SW da Guiné) Aí o caçador Alfa Bá (civil marido da Mariama) vindo de Cacoca caçou porcos-espinhos, muito saborosos, javakis (porco de mato) cabras de mato e até um pangonlim enorme que é um bicho muitagiro!...

É tudo o que me lembro. Pergunte que se me lembrar digo.

Um Ab do
António Costa
________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anterioers desta série:

10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3714: Fauna & flora (1): Pedido de apoio para investigação científica sobre o Macaco-Cão (Maria Joana Silva)

11 de Janeiro de 2009 > Guiné 63774 - P3720: Fauna & flora (2): Os macacos-cães do nosso tempo (Luís Graça / J. Mexia Alves)

11 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3721: Fauna & flora (3): Mais histórias de macacos (Henrique Cabral / Luís Faria)

Guiné 63/74 - P3721: Fauna & flora (3): Mais histórias de macacos (Henrique Cabral / Luís Faria)

"A Cheta, macaquinha de estimação com ar de
poucos amigos. (Foto gentilmente enviada por Mário Trindade, ex-Operador Cripto, CMI/Cumeré-Guiné 1971/1973)" (foto à direita)

"Apesar de os macacos cão (babuínos) fazerem parte da alimentação,  este pequeno macaco é apenas uma mascote" (HC) (foto à esquerda).

Fotos (e legendas): © Henrique Cabral (2008). Direitos reservados


1. Mais respostas ao pedido de apoio da nossa doutoranda Maria Joana Ferreira da Silva (*):


(i) Henrique Cabral (ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Guiné, 1965/67)


Caro Luís, agradeço o teu mail pois a vida animal é um assunto que muito me atrai mas infelizmente as poucas fotos que tirei, ou tinham muito má qualidade ou eram tiradas de muito longe ou perdi-lhes o rasto como tantas outras que enviei para a Metrópole e "desapareceram".

Resultado, pouco ou nada posso ajudar.

De babuínos não tenho fotos, apenas imagens e sons que todos nós sentimos desde o seu alvoroço de alerta ao seu assustador silêncio de mau presságio.

Mesmo assim podes ver aqui:

http://entrefogocruzado.wordpress.com/aldeia-tabanca-ii/

duas imagens que demonstram a necessidade que todos sentimos de nos aproximar da natureza de que fazemos parte [Vd. fotos acima, em formato pequeno].

Tudo quanto seja feito para estudar/proteger quer os babuínos quer as outras espécies é de louvar.

Um abraço

Henrique

(ii) Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72):

Luis Graça:

Lamento não poder ser útil,mas na Guiné, que me lembre, só vi macaco sagui(?). Menciono-os até num texto a enviar à Tabanca e tenho foto. Havia muitos na região de Bula.

Nunca ouvi refêrencias a peles e medicinas praticadas. Sabia, sim, que o macaco servia de refeição e que até era apreciado. Sabia também que houve alguns militares que experimentaram.

Pelo parte que me toca macacos e gazelas nunca me passaram pelo gôto. Nem pensar! Os primeiros porque realmente me pareciam miúdos . As segundas pela elegância e fragilidade da sua silhueta, pela doçura do seu olhar. Este animal transmitia-me uma sensação de Paraíso, de paz. Ainda hoje não consigo comer veado!

Cobra comi, Enrolada em folhas e assada na fogueira era bem bom, parecia enguia da grossa, só que mais seca .

Um abraço
Luís Faria

____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anterioers desta série:

10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3714: Fauna & flora (1): Pedido de apoio para investigação científica sobre o Macaco-Cão (Maria Joana Silva)

11 de Janeiro de 2009 > Guiné 63774 - P3720: Fauna & flora (2): Os macacos-cães do nosso tempo (Luís Graça / J. Mexia Alves)

Guiné 63774 - P3720: Fauna & flora (2): Os macacos-cães do nosso tempo (Luís Graça / J. Mexia Alves)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Destacamento do Mato Cão > Pel Caç Nat 52 > 1973 > O Alf Mil Joaquim Mexia Alves, posando com um babuíno (macaco-cão) mais o Braima Candé (em primeiro plano), tendo na segunda fila, de pé, o seu impedido, o Mamadu, ladeado pelo Manga Turé.

Guiné > Zona Leste > Mato Cão > Pel Caç Nat 52 > 1973 > O Joaquim Mexia Alves, com um elemento guineense do seu pelotão, a segurando um Macaco Fidalgo...

Fotos: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados

1. Comentando o poste de ontem, de Maria Joana Silva, investigadora portuguesa a fazer o seu doutoramento no Reino Unido, com um tese sobre o macacão-cão da Guiné (*):

(i) Luís Graça (CCaÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71):

Tanto quanto me lembro e sei, nós - as nossas tropas - não caçávamos babuínos (a não ser muito esporadicamente)... Os fulas fazíam-no, um pouco às escondidas... Também os comiam, nas nossas costas -dizem que com algum sentimento de culpa. Eles sabiam que, para os tugas, carne de macaco era tabu alimentar (tal como o porco, para eles).

Nas tabancas fulas por onde passei ou onde estive em reforço ao sistema de autodefesa, vi crianças ou adolescentes com mausers (!) nos campos de cultivo: afugentavam os macacos-cães e às vezes matavam os mais atrevidos, quando eles tentavam invadir(e destruir) os campos de mancarra...

Amigos e camaradas, não façamos apressados juízos de valor, em função dos nossos padrões civilizacionais: no passado, os nossos caçadores também matavam, por exemplo, as aves de rapina, para poderem ter coelhos em abundância...

O consumo de carne de macaco era raro, entre os tugas. No meu tempo, vi uma vez um macaense, de origem chinesa, nosso camarada (já não posso precisar a subunidade, talvez a CCS do BART 2917 Bambadinca, 1970/72), preparar e assar na brasa um pequeno babuíno... No final, a carcaça fez-me lembrar os nossos bebés... Reconheço que ia quase vomitando...

Nas diversas tabancas fulas, em autodefesa, por onde andei (às vezes por períodos de algumas semanas), nunca me apercebi do consumo de carne de babuíno... Mas havia tantas coisas de que a gente não se apercebia naquela terra e naquela guerra (por exemplo, a mutilação genital feminina, o infantícídio, a feitiçaria, entre os fulas; as negociatas e a corrupção, entre os tugas)...

A única (e pouca) carne de caça que eu relutantemente comprava (ou que me ofereciam) era de gazela... A caça era uma actividade de risco nas tabancas por onde passei, de diferentes regulados: Joladu, a norte do Geba, Corubal, Xime...

Na floresta-galeria do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole e nas matas do Cuor, era relativamente frequente depararmo-nos, no decurso de operações, com bandos de cem e mais babuínos, ruidosos e agressivos perante a invasão do seu território... Eram zonas sem população ou que a guerra tinha despovoado... Terras de ninguém, ou terras onde a guerrilha do PAIGC se movimentava muito melhor do que nós... Admito que os guerrilheiros do PAIGC - sobretudo os pertencentes a etnias animistas - caçassem o macaco-cão para comer e alimentar a população sob o seu controlo...

Quem esteve no sector L1 (Bambadinca), literalmente na e com a tropa macaca - como eu, o Humberto Reis, o Jorge Cabral, o Beja Santos ou o Joaquim Mexia Alves ... - nunca mais esquecerá o maldito Mato-Cão onde se fazia segurança às embarcações (civis) que passavam pelo Geba Estreito, entre Xime, Bambadinca e Bafatá...

De um modo geral, pode dizer-se que as populações da Guiné-Bissau, não islamizadas, tradicionalmente caçavam e comiam o sancu. Esporadicamente, mas comiam. Depois de 1980, a caça (ilegal) ao macaco-cão terá aumentado significativamente.

Já em relação ao dari, o chimpanzé da mata do Cantanhez, parece haver um maior respeito, por parte da população local, devido às suas semelhanças com o ser humano. No entanto, o seu habitat está condicionado e cada vez mais ameaçado pelas actividades humanas (,destruição da floresta, expansão das áreas de cultivo, captura ilegal para o mercado negro...).

Voltando ao babuíno, e às recordações do meu tempo: Era difícil precisar o nº de machos, talvez dois ou três, talvez mais (posso estar a ser influenciado pelas minhas leituras posteriores na área da etologia, pela qual me interesso...).

Nunca vi, felizmente, ninguém matar um babuíno... Em contrapartida, havia crias de babuíno que serviam de mascote nos nossos quartéis... Um triste hábito que era tolerado por todos nós... Naquela época não havia consciência ecológica, nem respeito pelos direitos dos animais...

Também nunca dei conta da utilização da pele do babuíno para efeitos medicinais, por parte das populações com quem lidei (fulas, mandingas, balantas), quer em Contuboel (Maio/junho de 1969), quer em Bambadinca (Junho de 169 / Março de 71)...

Um alfa bravo
do Luís Graça

(ii) Joaquim Mexia Alves (Pel Caç Nat 52, Mato Cão, 1973)

Caro Luís:

Resposta rápida por falta de tempo agora. Se fores ao poema que fiz quando foste à Guiné, existe lá uma referência ao Macaco Cão e a um sítio perto da Ponte dos Fulas onde eles costumavam ter um grande grupo.

Lembro-me também que os nossos guias costumavam dizer que se ouvissemos o macaco cão agitado a gritar, era sinal de que havia turras, pois eles matavam-nos para comer.

Abraço camarigo do

Joaquim Mexia Alves

___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3714: Fauna & flora (1): Pedido de apoio para investigação científica sobre o Macaco-Cão (Maria Joana Silva)

sábado, 10 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3719: O Nosso Livro de Visitas (49): Mateus Sousa, suzanense que vive em Aveiro, Portugal

1. Mateus Sousa deixou este comentário no nosso poste de 15 de Agosto de 2007, Guiné 63/74 - P2052: Cusa di nos terra (5): Susana, Chão Felupe - Parte I (Luís Fonseca)

KASSUMAI. É com grande prazer que me leva a mandar esta pequena semente numa terra fértil. Sou felupe de Suzana, nasci perto da Missão Católica, mas já vivo cá em Portugal há 7 anos, em Aveiro.

Gostaria de ter os vossos contactos a fim de falarmos de Suzana. A comunidade suzanense encontra-se num número acima dos 100 elementos, onde temos já uma associaçao legalizada.

Espero a vossa resposta.

por...djikobil@hotmail.com


2. Comentário de CV

Caro Mateus, obrigado pelo seu contacto.

Quando quiser contactar-nos, tem à disposição o endereço do Blogue que é luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com.

Não sei se viu só o poste a que faz referência, mas temos um série deles dedicado a Suzana, de autoria do nosso camarada Luís Fonseca, ex-Fur Mil Trms, CCAV 3366/BCAV 3846 (Suzana Varela , 1971/73) (*). Pode clicar nos endereços que vê no fim deste poste e acede a cada um deles.

Escreva-nos e fale da sua terra e da vossa Associação.

Receba um abraço de toda a tertúlia do nosso Blogue.
____________

Notas dos editores:

Vd. a excelente página do Carlos Fortunato, que lidou com balantas e felupes >
Guiné - Os Leões Negros > CCAÇ 13 > Bolama > Felupes

(...) "Adversários temíveis, os felupes possuem elevada estatura e grande robustez física. São referidos como praticantes do canibalismo no passado, são coleccionadores de cabeças dos seus inimigos que guardam ou entregam ao feiticeiro, e usam com extraordinária perícia arcos com setas envenenadas. "Embora se assegure que o canibalismo pertence ao passado, não era essa a opinião das restantes etnias, as quais referem igualmente que estes fazem os seus funerais à meia noite, pendurando caveiras nas copas das arvores, e dançando debaixo delas. O felupe é conhecido como pouco hospitaleiro para com as restantes etnias, pelo que existe da parte destas um misto de animosidade e desconhecimento."Os felupes são igualmente grandes lutadores, fazendo da luta a sua paixão. Este desporto tão vulgarizado nesta etnia, prende-o, empolga-o, constituindo o mais desejado espectáculo" (...)

Vd. postes de:

24 Março de 2006 >
Guiné 63/74 - DCL: Preocupação com a situação humanitária em Susana e Varela (região do Cacheu) (Luís Graça)

10 de Julho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1939: Susana, região de Cacheu: fantasmas do passado (Pepito)

11 de Julho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1942: Susana, chão Felupe (Luís Fonseca, CCAV 3366, 71/73)

(*) Vd. postes de:

15 de Agosto de 2007 >
Guiné 63/74 - P2052: Cusa di nos terra (5): Susana, Chão Felupe - Parte I (Luís Fonseca)

31 de Agosto de 2007 >
Guiné 63/74 - P2074: Cusa di nos terra (6): Susana, Chão Felupe - Parte II: Religião (Luís Fonseca)

5 de Setembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2081: Cusa di nos terra (7): Susana, Chão Felupe - Parte III: Trabalho, lazer, alimentação, guerra, poder (Luís Fonseca)

16 de Setembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2110: Cusa di nos terra (9): Susana, Chão Felupe - Parte IV: Mulher e Comunitarismo (Luís Fonseca)

6 de Outubro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2156: Cusa di nos terra (10): Susana, Chão Felupe - Parte V: Casamento (Luís Fonseca)

25 de Outubro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2215: Cusa di nos terra (11): Suzana, Chão Felupe - Parte VI: Princípio e fim de vida (Luís Fonseca)

1 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2397: Cusa di nos terra (12): Susana, chão felupe - Parte VII: O guerreiro João Uloma (Luís Fonseca)

6 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2410: Cusa di nos terra (13): Susana, Chão Felupe - Parte VIII: Onde se fala dum Tintin em apuros... (Luís Fonseca)

23 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2474: Cusa di nos terra (14): Susana, Chão felupe - Parte IX: Os indomáveis guerreiros felupes (Luís Fonseca)

1 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2598: Estórias avulsas (15): O bom pastor (Luís Fonseca)

Vd. último poste da série de 9 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3590: O Nosso Livro de Visitas (48): José Pedrosa, ex-Alf Mil da CCAÇ 4747 (Guiné, 1974)

Guiné 63/74 - P3718: A literatura colonial (3): A antologia do conto ultramarino, por Amândio César (Beja Santos)

Capa do 1º primeiro volume de Contos Portugueses do Ultramar, antaologia organizada por Amândio César

Capa de um livro de João Augusto Silva, um dos escritores que figuram na antologia do conto português ultramarino, organizada por Amãndio César.


Imagens: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2009). Direitos reservados


1. Mensagem de 8 de Dezembro, do nosso camarada Beja Santos:

Amândio César (1921-1987) foi, desde sempre, um escritor ideologicamente comprometido com o Estado Novo, tendo desenvolvido actividade como poeta, ficcionista e ensaísta literário (*).

Foi um dos elementos do grupo Poesia Nova, dedicou parte da sua actividade à divulgação das literaturas brasileira e africana de expressão portuguesa, onde ganha realce a edição em dois volumes de Contos Portugueses do Ultramar. Deixou-nos uma poesia por vezes muito bela, por vezes caldeada num lirismo de pendor tradicionalista e os seus contos, associados carinhosamente ao Minho onde nasceu, têm um vigoroso recorte neo-realista.

Dedicou um livro de reportagens à Guiné, em 1965 (*), e entre as suas traduções mais importantes há a salientar Kaputt, de Curzio Malaparte, porventura um dos mais importantes retratos sobre a guerra que alguma vez se escreveu.

No primeiro volume de Contos Portugueses do Ultramar, a escolha de autores guineenses recaiu sobre Alexandre Barbosa, Álvaro Guerra, Armor Pires Mota, Artur Augusto Silva, Fausto Duarte, João Augusto Silva, Julião Quintinha, Manuel Barão da Cunha e Óscar Ruas.

Concorda-se com a análise que Leopoldo Amado fez no seu ensaio intitulado “A Literatura Colonial Guineense” e publicado na revista ICALP, vol. 20 e 21 (**) , a que já se fez referência: a emergência de um jornalismo na década de 20 do século passado, revelando uma Guiné exótica, uma natureza luxuriante, com dramas amorosos indígenas, tudo dentro de uma idiossincrasia de matriz colonial; a partir dos anos 30 e 40 também do século XX assistiu-se a um surto literário relacionado com o incipiente desenvolvimento económico, estamos na Guiné que tenta a cristianização e a valorização do indígena, isto a par de aspecto etnográficos que são mostrados já num estado de colonização efectiva e de uma colónia onde tudo parece correr bem; o movimento emancipador e a luta pela independência propriamente dita fizeram surgir uma literatura exaltando os feitos militares e o carácter ideológico da dessa mesma luta. A antologia de Amândio César reflecte essas sucessivas ondas.

Alexandre Barbosa, natural de Lisboa, fundou o jornal O Bolamense e colaborou no Boletim Cultural da Guiné, tendo sido nomeado membro residente do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. A sua prosa está repassada de episódios da vida africana, é uma bonita prosa portuguesa onde acidentalmente há caçadas, nomes guineenses, detalhes da floresta.

Álvaro Guerra (1936-2002) (***), talvez o nome mais importante dos escritores compilados desta antologia, fez serviço militar entre 1961 e 1963, tendo sido ferido em combate. Os seus primeiros livros reflectem inequivocamente essa Guiné em luta e o seu conto “O tempo em Uane” é uma pequena obra-prima digna de um Salinger ou de Hemingway. Ora oiçam:

“A meio da tarde, vieram três alferes de Bedanda, na canoa a motor, tendo como pretexto a dominical caça aos crocodilos. Amarraram a canoa às velhas estacas de cibe do cais de Uane e encaminharam-se para a aldeia, os três alferes, o cipaio e os dois soldados da guarnição de Bedanda, o sol a abrir as primeiras gretas da seca nos estreitos valados do arrozal, o calor a martelar a terra e as costas reluzentes dos balantas que colhiam arroz, enterrados na lama e na água estagnada da bolanha que se estendia, na geografia infalível dos canteiros, desde a margem do rio até à longínqua orla do mato, limite sombrio daquele infernal e extensíssimo quadrado de sol chispando na água, dentro do qual os negros se dobravam sobre o resto dos débeis caules verdes”.

Segue-se um conto de Armor Pires Mota, um escritor nacionalista que continua actuante nos dias de hoje. Dá-nos uma poderosa cena de combate entre os bons e os maus, entre os defensores da nossa pátria e aqueles cujos chefes tiveram a instrução em Praga e Moscovo.

Sucede Artur Augusto Silva (1912-1983), um poeta modernista e um estudioso da África ocidental. Voltamos às histórias indígenas, há fauna em desfile na floresta, tudo num português escorreito, é quase uma história de encantar para branco que nunca foi África (****).

Fausto Duarte (1903-1953) (*****) foi nome importante na literatura guineense e o seu romance Auá é seguramente o livro mais emblemático que se escreveu em toda a literatura colonial até aos anos 50. Fausto Duarte era um homem muito culto e dominava com absoluta segurança a técnica literária mas este seu conto “O mestiço” está muito bem escrito e pouco mais.

João Augusto Silva (1910-?) dedicou-se às artes plásticas, distinguiu-se nomeadamente como ilustrador de livros como comprova o livro “Grandes Chasses-Tourisme dans l’Afrique Portuguese”. As suas páginas revelam um gosto cosmopolita e um sentido requintado da descrição mas não se sente alma africana. O mesmo se dirá do contista seguinte, Julião Quintinha, intelectual muito viajado que escreveu sobre a Guiné cheio de curiosidade e para satisfazer a curiosidade alheia.

Manuel Barão da Cunha combateu na Guiné entre 1964 e 1965, está presentemente a refazer todos os seus trabalhos literários, em “O capelão” descreve a presença de um padre que acompanha as forças operacionais fazendo dele a irradiação da tranquilidade que animava todos aqueles que tinham deixado a sua terra natal para defender aquela terra.

Enfim, uma antologia ao sabor do seu tempo (Amândio César publicou em 1969, na Portucalense Editora), há lá páginas muito importantes, registam sentimentos, valores e atitudes que também conhecemos e com quem até convivemos.

_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. o poste de A. Marques Lopes, de 16 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 – CLXXIII: Informação e Propaganda: os 'grandes repórteres' de guerra, disponível na I Série do blogue > http://www.blogueforanada.blogspot.com/2005_08_14_archive.html

(**) Disponível em formato pdf, 18 pp., no sítio do Instituto Camões:Amado, L. - A Literatura Colonial Guineense. Revista ICALP [Instituto de Cultura e Língua Portuguesa], 20-21 (Julho-Outubro de 1990): 160-178.

Vd. também:

5 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3272: A novíssima literatura da Guerra Colonial (Leopoldo Amado)

6 de Outubro de 2008 >Guiné 63/74 - P3275: Clarificar o conceito de novíssima literatura da Guerra Colonial (Beja Santos)


(***) Vd. poste de 28 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1323: Bibliografia de uma guerra (15): Os Mastins e o Disfarce, de Alvaro Guerra (Beja Santos)

(****) Artur Augusto Silva (1912-1983), jurista e escritor, pai do nosso amigo Pepito:

31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: História de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)

20 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)

(*****) Vd. postes anteriores desta série:

5 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)

10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P3717: História de Vida (20): Completamento de dados (George Freire)

1. Em 31 de Dezembro de 2008, foi enviada esta mensagem a George Freire (*):

Caro camarada George Freire :

Bem-vindo ao nosso Blogue. Espero que nos conte coisas do seu tempo que é coincidente com o início da Guerra na Guiné.

Temos poucos camaradas desse tempo a escrever, pois a imensa maioria não domina estas modernices da informática.

Venho ao seu contacto, porque entre várias funções faço o registo dos tertulianos e faço-o com o mínimo de informações de ordem militar, o mais correctas possível.
Assim peço-lhe que me diga com que posto passou à Reforma. Capitão? A sua primeira Unidade, Companhia 164, era CCAÇ ou tinha outra designação?

O resto, sei que esteve lá entre 1961 e 1963, andou por Fulacunda, Nova Lamego e Bedanda.

Deixo-lhe um grande abraço e votos de um Ano Novo pleno de saúde, junto dos que lhe são mais queridos.

Este camarada que fica ao seu dispôr,
arlos Vinhal
Co-editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné



2. No mesmo dia era recebida esta resposta do nosso camarada George Freire, Cap Ref, CCAÇ 153 e 4.ª CCAÇ, Fulacunda, Nova Lamego e Bedanda, 1961/63.

Caro Carlos Vinhal,

Obrigado pelo e-mail. Como já tinha dito ao Luís Graça, tenho seguido com grande interesse o vosso Blog.

Achei-o por acaso, pois também sigo o Blog do João Soares, (http://www.domirante.blogspot.com/), meu camarada de curso e agora coronel na reforma. Um dos seguidores deste Blog é o António Manuel Marques Lopes, o qual segue o vosso Blog Luís Graça & Camaradas da Guiné. Foi assim que vos descobri.

Ontem enviei um novo e-mail ao Luís Graça, com mais entradas do meu diário e algumas fotografias, (se não muito boas), e não sei se ele recebeu este e-mail. Tenho que desculpar a soletração, mas é difícil escrever no meu computador sem usar os acentos graves, agudos, tiles, circunflexos, etc. o que torna o texto às vezes difícil de ler. Contudo o Luís fez a correcção do texto, como devia ser.

Agora quanto às tuas perguntas:

A companhia que originalmente fiz parte quando partimos para a Guiné, no dia 26 de Maio de 1961, foi criada em Vila Real de Trás-os-Montes, onde eu ainda tenente, segundo comandante e o capitão Curto, comandante, (do curso um ano mais velho do que o meu), passámos semanas a organizar a companhia.

De Vila Real todo o pessoal viajou para Lisboa de comboio e passados talvez uma ou duas semanas, partimos de avião, (dois aviões transportes da FA), do aeroporto de Lisboa para Bissau, onde chegámos no mesmo dia ao anoitecer. Com o passar do tempo, a memória prega-nos partidas e não tenho bem a certeza se a companhia era a CCAÇ 164 ou CCAÇ 153.

De Bissau, onde passámos a noite, seguimos logo para Fulacunda, onde permaneci à volta de dois meses, após os quais chegou a minha promoção a capitão. De Fulacunda fui transferido para Bissau para comandar uma companhia de nativos e render o capitão Helder Reis. Passei 4 ou 5 meses em Bissau, daí para o Gabu (outros 6 meses) e daí para Bedanda onde passei o resto da minha comissão.

Voltei para Portugal e fui novamente colocado na Academia Militar, (nesse tempo ainda chamada Escola do Exército), onde tinha sido instrutor desde 1957 até à minha ida para a Guiné.

Durante os anos de 1958 até 1961, tive a oportunidade de trabalhar (nas horas livres) com um tio direito, que tinha uma firma de serviços de engenharia e caldeiras industriais. Durante as férias de verão todos esses anos viajei aos EUA duas ou três semanas para ajudar o meu tio em assuntos relativos aos seus negócios com duas companhias no estada da Pensilvânia.

Quando voltei da Guiné, uma dessas companhias ofereceu-me uma posição, (com o título de gerente de operações internacionais), e com uma remuneração muito difícil de recusar.

Nos fins de Agosto pedi a minha demissão e parti com a minha família, (mulher e duas filhas de 3 e 2 anos), para os EUA onde me encontro faz este ano 45 anos. Desde então tirei um curso de engenharia mecânica, trabalhei para outras duas companhias e, em 1989, formei a minha própria companhia de consultaria de projectos relacionados com energia de gás, co-geração, etc.

Em 2001 parei de trabalhar full time, e estou basicamente reformado. Felizmente de boa saúde, vou a Portugal todos os anos onde me encontro com um bom grupo de antigos camaradas de curso e família. Tenho 3 filhas, a mais nova nasceu aqui, embora todas casadas, somente tenho um neto e uma neta da filha mais velha. A filha do meio e a mais nova não têm descendentes.

Comecei há pouco um Blog dedicado a ajudar amigos e quem quer que o siga, sobre problemas de computadores:

http://whatisyourquestionblog.blogspot.com/ (faz-lhe uma visita!)




Um Bom Ano Novo para todos vocês e famílias e um forte abraço.
George Freire

3. Comentário de CV

É sempre com algum orgulho que publicamos Histórias de Vida, quando elas coincidem com histórias de êxito e principalmente de compatriotas que na diáspora se distinguem pelo seu trabalho e emprendedorismo.

O nosso camarada George Freire é um caso de sucesso nos States, onde há muitas décadas decidiu viver. Longa vida para ele para desfrutar do repouso do guerreiro.

Com respeito à dificuldade em escrever-nos, caro George, não há problemas, pois temos imensos camaradas a residir no estrangeiro e o problema põe-se igualmente para todos. Nós cá nos comprometemos a tornar os textos em português de Portugal.

Já fui espreitar o teu utilíssimo blogue, mas como o meu inglês é muito básico, não consigo tirar partido dele. No entanto aconselho quem tem alguma desenvoltura na língua de Sua Majestade a visitá-lo.

Julgo que a tua Companhia original seria a CCAÇ 153 que foi formada em Vila Real. Da 164 não tenho registos.

Daqui de Portugal, para ti, um abraço e até um possível encontro.
____________

Notas de CV

(*) Vd. poste de 29 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3681: Tabanca Grande (106): George Freire, ex-Comandante da 4ª CCaç (Fulacunda, Bissau, N. Lamego, Bedanda). Maio 1961/Maio 1963)

Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3685: História da CCAÇ 2679 (11): Encontro imediato e estórias contemporâneas (José Manuel Dinis)

Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)

Capa do livro de Fausto Duarte, Auá, novela negra, 2ª ed. Lisboa: Livraria Clássica (1ª edição, 1934, 223 pp.).

Imagem: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados


1. Mensagem de Beja santos, com data de 8 de Outubro último:



Auá, de Fausto Duarte: A obra-prima da literatura colonial guineense

por Beja Santos


Coube a Leopoldo Amado (“A Literatura Colonial Guineense”, Revista ICALP, Julho – Outubro de 1990)(*) o mérito de destacar a importância do romance Auá, de Fausto Duarte, contextualizando-o ao sabor das transformações operadas na Guiné portuguesa a partir dos anos 20 do século passado.

Dera-se a “pacificação” ou estava em processo terminal; surgiam os primeiros jornais publicados na Guiné e com eles surgia a literatura jornalística; Maria Archer e Fernanda de Castro (**) escreviam sobre a Guiné em Portugal, e com relativo sucesso; uma elite cabo-verdiana (Fausto Duarte, Juvenal Cabral e Fernando Pais Figueiredo) promovia os interesses africanos pugnando pelo alargamento do ensino aos guineenses.

Fausto Duarte [1903-1955] (***) apareceu como repórter, colunista e cronista desportivo numa Bissau que já é capital comercial da colónia; participou na primeira Exposição Colonial de Paris, dedicando um número especial ao evento no jornal O Comércio da Guiné onde destacou a etnografia guineense.

É um homem culto que capta as novas contradições da assimilação colonial e do gosto pelo exotismo. A Guiné que ele vai descrever em Auá é completamente diferente da retratada quer por Maria Archer e Fernanda de Castro e outros. Pela sua formação, revela atenção e um elevado espírito de observação pelas tensões de civilização: entre as etnias no mato remoto e em Bissau; entre o trabalho agrícola de sobrevivência e o trabalho ao serviço do colono em Bissau; mesmo ao de leve, refere estados de identidade de aproximação entre a realidade colonial e a adesão das populações guineenses. Tudo leva a supor que Fausto Duarte escreveu sinceramente e de acordo com o seu compromisso cultural de hibridação e de exaltação dos valores africanos.

Auá foi galardoada com o 1º prémio de Literatura Colonial em 1934, ano em que aparece editada pela Livraria Clássica Editora, de Lisboa, e com prefácio de Aquilino Ribeiro (ele escreve: “O primeiro que viu a Guiné foi Nuno Tristão, o segundo foi o autor de Auá... Com simplicidade encantadora, vai nos pintando o que é a vida naquele trato de terra e humanidade... Fausto Duarte é pela civilização, mas a sua sensibilidade não cala a ternura que lhe merece o homem escravizado. Os que sonham com um Portugal de além-mar engrandecido hão-de de ficar gratos à pena colorida, equilibrada, emotiva sem excesso que escreveu Auá, estreia literária de maior realce e obra de elevação lusíada”).

Aquilino Ribeiro exaltou o romancista mas também foi excessivo. Fausto Duarte era tudo menos simples: cita Schiller em alemão, Paul Morand em francês, conhece profundamente a cultura europeia e tem uma riqueza vocabular espantosa. Não acredito que a sua Novela Negra, como lhe chamou, tenha sido popular quer na Guiné quer em Portugal. Basta ver como se inicia a sua obra:

“As águas tranquilas do Impernal acariciando o debrum da paisagem dormente, anquilosada pelo sol adusto, áscua viva que se reflectia na opacidade plúmbea dos céus, espreguiçavam em torcicolo ocultando-se entre o tufo emaranhado dos mangais. A vazante tinha posto a descoberto a orla mádida e lamacenta do rio, e uma variedade abjecta de moluscos deslocava-se sobre a terra lodosa, aquecendo-se ao calor estuante de Novembro”.

De que versa Auá ? Malam é um fula que trabalha em Bissau, tinha trabalhado como criado de alemães. Frau Wrede não resiste à beleza de Malam e fazem amor. Depois pede a alguém para escrever uma carta ao administrador de Bissau a oferecer os seus préstimos, quando os alemães partiram. Foi admitido ao serviço e agora vai a caminho do Gabu, vai casar com Auá, a mais bonita bajuda do leste da Guiné. É uma viagem longa, atravessam o Impernal, seguem para Mansoa, depois Mansabá, depois Bafatá. Leva na mala muitas prendas para a sua noiva: lenços, panos, bandas, missangas, manilhas de prata, um fio de ouro. Fica a descansar em Bafatá em casa de um tenente de 2ª linha.

Perguntado sobre como está Bissau, responde: “Os brancos fizeram grandes coisas. Ruas largas por onde passam automóveis e grande caminhões; lojas enormes de panos de todas as qualidades que os brancos fabricam na sua terra; contas douradas, bicicletas e até máquinas de lavrar a terra. Há tempos, veio de Lisboa um aeroplano que parece um grande pássaro”.

O motorista da casa Gouveia leva-o para Contubo-El, daqui seguirá para Sare-Sincham onde vivem as suas famílias, a dele e a de Auá. É uma viagem onde Fausto Duarte aproveita para falar de usos e costumes, da religião e até das povoações. Por exemplo, Geba é descrita como uma vila tristonha, outrora berço do catolicismo heróico, tem o aspecto místico habitado por um povo indigente. De um modo geral, as povoações têm uma rua com casas e lojas comerciais, estão cercadas pelas moranças dos indígenas. Nisto, avista-se a tabanca de Sare-Sincham, onde ele vai ficar em casa dos pais, Braima e Tacô. Fausto Duarte polvilha a obra de frases em fula e até mandinga e crioulo. Mostra-nos Auá e o seu amor por Abdulai, os preparativos para o casamento, há grandes descrições das lutas dos fulas durante a festa, Abdulai desafia Malam para o combate, é derrotado.

A critica social também abundante: o colono que vive com indígena, a superstição e a feitiçaria, o peso da religião muçulmana entre os fulas, a profunda simpatia de Malam pela cultura dos brancos. Segue-se o casamento, a chegada de um feiticeiro, um hipócrita e arranjista que acabará por violar Auá. Malam e Auá irão viver em Bissau, cidade que é descrita por Fausto Duarte como um local de sensualidade, um permanente bordel. Em Sare-Sincham, virão os guardas-fiscais que levarão o curandeiro, Issilda, preso. Terminam entretanto as colheitas, Auá está grávida, dará à luz um filho de Issilda. Malam pratica justiça e mata o curandeiro. O conselho dos anciãos reúne-se para ouvir Malam e praticar justiça. Fausto Duarte é primoroso na descrição do choque de civilizações. Abdulai propõe comprar Auá, Malam aceita e deixa Sare-Sincham. As tradições sobrepunham-se a uma grande paixão. Malam vai trabalhar em Dakar e à noite tem saudades de Auá. A velha cultura conseguira vencer os sentimentos transbordantes de Malam, o criado dos brancos.

A despeito de uma escrita laboriosa e quase laboratorial, o escritor Fausto Duarte descreveu a Guiné com um olhar novo de grande desvelo pela paisagem, com rigor no registo das tradições, destacando os contrastes de uma Guiné onde a aculturação se transformou num problema maior da civilização. É uma pequena jóia literária e merecia ser reeditada tanto em Portugal como na Guiné-Bissau.

_________

Notas de L.G.:

(*) Disponível em formato pdf, 18 pp., no sítio do Instituto Camões: Amado, L. - A Literatura Colonial Guineense. Revista ICALP [Instituto de Cultura e Língua Portuguesa], 20-21 (Julho-Outubro de 1990): 160-178.

(**) 5 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)

(***) Vd. Breve resenha sobre a literatura da Guiné-Bissau, por Filomena Embaló (Novembro de 2004)

(...) "I. A fase anterior a 1945

"Autores marcados pelo cunho colonial

"Os primeiros escritos no território guineense foram produzidos por escritores estabelecidos ou que viveram muitos anos na Guiné, muitos deles de origem cabo-verdiana. A maior parte das suas obras têm um caracter histórico, com a excepção da de Fausto Duarte (1903-1955), que se destacou como romancista, Juvenal Cabral e Fernando Pais Figueiredo, ambos ensaístas, Maria Archer, poetisa do exotismo, Fernanda de Castro, cuja obra dá conta das transformações sociais da colónia na época e João Augusto Silva, que recebeu o primeiro prémio de literatura colonial. Porém a maior parte destes autores caracterizam-se por uma abordagem paternalista e/ou próxima do discurso colonial.

"Durante este período apenas uma figura guineense se destaca : o Cónego Marcelino Marques de Barros que deixou trabalhos no domínio da etnografia, nomeadamente 'A literatura dos negros' e uma colaboração com carácter literário dispersa em obras diversas. A ele se deve a recolha e a tradução de contos e canções guineenses em diferentes publicações e numa obra editada em Lisboa em 1900, intitulada 'Contos, Canções e Parábolas'. "
(...)

Guiné 63/74 - P3715: As Boas-Festas da Nossa Tabanca Grande (14): Em Gandembel - O Adeus à Guerra (Hugo Guerra)

1. Embora fora de tempo, não quisemos deixar de publicar esta mensagem do nosso querido camarada Hugo Guerra (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60, (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70), hoje Coronel, DFA, na reforma, com data de 18 de Dezembro de 2008. 

 Aproveitamos para deixar ao Hugo renovados votos de bom 2009, pleno de saúde e disposição para colaborar connosco. Prometemos estar mais atentos e sermos lestos na publicação dos seus trabalhos.


 

2. Vou passar as Festas à Bélgica a casa de uma filha. Estarei de regresso a partir de 04 de Janeiro. Esta página do Jornal que mandei digitalizar faz referência a velhinha memória de Gandembel exactamente a um dia qualquer do Natal de 1968. Tal como diz o Zé Teixeira fiquei admirado de o artigo não ter sido lancetado pela censura..... Como me pareceu ter lido que há aí uma rapaziada de Porto de Mós ou Leiria que está a preparar-se para lá dar uma saltada de Jeep, porque além do mais andei a estudar dois anos no Liceu da cidade do Liz em 1958/59, às tantas ainda tenho ex-colegas ou seus filhos nessa aventura. Um grande abraço de Boas Festas e melhores entradas em 2009, até ao meu regresso, como se dizia nessa altura prás famílias




 

Recorte da página do velhinho Diário Popular


Na foto está este vosso amigo entre o Cap Barroso de Moura e o Ex-Alferes Barge. Hugo Guerra
 ____________ 


 OBS:- Infelizmente a qualidade das imagens não permite ler o artigo referenciado, nem distinguir o nosso camarada entre os oficiais que refere. Fica a intensão. 

Guiné 63/74 - P3714: Fauna & flora (1): Pedido de apoio para investigação científica sobre o Macaco-Cão (Maria Joana Silva)

Guiné-Bissau > Bissau > Abril de 2006 > Viagem Porto-Bissau > Babuíno, macaco-cão (sancu, macaco, em crioulo), em cativeiro.

Foto: © Hugo Costa / Albano Costa (2006). Direitos reservados


1. Mensagem de Maria Joana Ferreira Silva:

Boa noite, Sr. Luís Graça

O meu nome é Maria Joana Silva e sou uma aluna de doutoramento da Universidade de Cardiff (Reino Unido). O meu projecto de doutoramento é acerca da genética do babuíno da Guiné (mais conhecido na Guiné-Bissau por macaco Kom).

Tenho-me deslocado à Guiné-Bissau, mais propriamente a Cantanhez, onde comecei por fazer uma recolha de amostras biológicas exploratória. Logo percebi que a história demográfica desde primata está intimamente ligado à história daquele local. Fiz algumas entrevistas a antigos caçadores da tropa portuguesa que me falaram do tempo da guerra, do facto dos babuínos terem sido caçados principalmente por tropas do PAIGC e que durante o tempo da guerra era relativamente fácil encontrar babuínos.

Gostaria de pedir a ajuda dos bloguistas para obter informações acerca dos babuínos daquele tempo (1963-1974). O que gostaria de saber é:

(i) onde foram avistados os grupos de babuínos;

(ii) quantos animais existiriam num grupo social e quantos machos adultos;

(iii) se os babuínos eram caçados pelos caçadores das tropas para os portugueses;

(iv) se as crias de babuínos eram levadas para os quartéis;

(v) se os bloguistas ouviram falar de medicinas tradicionais que usassem peles de mamíferos (nomeadamente babuínos);

(vi) onde se comeria "cabrito pé de rocha" na Guiné;

(vii) e outras informações deste teor que considerem relavantes.

Estas informações poderão ser enviadas para o meu e-mail: .

Por outro lado, os antigos caçadores referiram alguns nomes de antigos combatentes (e também amigos). Gostaria de saber se algum dos bloguistas conhece as seguintes pessoas (com quem gostaria de ser posta em contacto):

- do destacamento de Cabedu, da milícia G3, o coronel Peixoto;

- do grupo caçador 6 de Bedanda/1974, companhia 34/1993, o capitão Pimenta e o capitão Miliciano Pereira da Silva.

Estas pessoas que entrevistei, pareceram-me bastante saudosistas dos portugueses e gostariam de saber notícias dos seus amigos!

Agradeço qualquer ajuda que vocês possam prestar.

Atenciosamente,

Maria Joana Silva

2.Comentário de L.G.:

Amigos e camaradas da Guiné:

Recebi o mail, acima transcrito, de uma bióloga portuguesa, que está fazer um trabalho de investigação, para efeitos académicos (doutoramento, no Reino Unido), sobre os babuínos da Guiné-Bissau, mais concretamente o nosso tão conhecido e querido macaco-cão, tão abundante ainda no tempo da guerra, apesar da guerra...

Hoje o macaco-cão é uma espécie ameaçada, a par de outras como o dari (o chimpazé): o babuíno continua a ser caçado e comido pelos guineenses, é um iguaria apreciada em Bissau, parece ser também um bom substituto para a falta de uma alimentação mais proteica nas cidades (e no campo) (*)...

Vamos ajudar a nossa nova amiga, Maria Joana, com depoimentos, fotos, histórias, etc. relacionados com o babuíno... Já publicámos no nosso blogue algum material. Lembro-me de fotos do Joaquim Mexia Alves, do Hugo Costa, do Samúdio... E de uma história fabulosa do Victor Junqueira que comeu a mais saborosa sandocha do mundo, em Bissau, com carne de "cabrito pé de rocha" (**)...

Vamos ser solidários: ajudando a conhecer melhor a genética, a demografia e o habitat do babuíno, também ajudamos os guineenses a conhecer, a admirar, a respeitar e a proteger o seu património biológico (fauna e flora), que inclui esse animal fabuloso que é o babuíno, nosso parente (uma vez que, segundo os zoólogos, pertence à ordem dos primatas, como nós...).

Quanto à nossa amiga Maria Joana, podemos dizer-lhe que o seu pedido já seguiu através da nossa rede de 3 centenas de mails. E desejar-lhe bom sucesso para a sua tese de doutoramento. Dentro de pouco tempo vai a nossa máquina solidária a funcionar...

A nossa amiga também faz referência a alguns antigos militares portugueses, que terão sido citados em entrevistas com habitantes do Cantanhez... Há referências a Cabedu e a Bedanda... Há erros na identificação das unidades militares, que não será difícil de corrigir: por exemplo, Grupo Caçador 6, de Bedanda (em vez de CCAÇ 6 )... Mas o mais importante são as saudades que nos traz do sul da Guiné e as notícias que nos dá desses homens que andaram connosco em Bedanda, Cabedú e outros sítios da Região de Tombali... Vamos ver se localizamos os nossos camaradas citados...

_____________

Notas de L.G.

(*) Vd. poste de 8 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1575: A TSF no Cantanhez, com uma equipa de cientistas portugueses, em busca do Dari, o chimpanzé (Luís Graça / José Martins)

Vd. reportagem na TSF > 2 de Março de 2007 > Dari, Primata como Nós

"No sul da Guiné-Bissau, o chimpanzé tem nome de gente. Na pista de Dari, uma equipa de cientistas portugueses estuda, há cinco anos, os chimpanzés das matas de Cantanhez com o objectivo de ajudar a salvar uma espécie ameaçada.

"Um jornalista da TSF passou 15 dias com o grupo de investigadores, coordenado pelas primatólogas Catarina Casanova e Cláudia Sousa. Acompanhou o quotidiano das caminhadas pelo mato, da recolha de vestígios, das conversas com os habitantes das tabancas e testemunhou, guardando o registo sonoro do momento raro, o encontro com um grupo de chimpanzés.

"Reportagem de Carlos Vaz Marques com montagem e sonorização de Alexandrina Guerreiro".

Para escutar o ficheiro áudio (43' 2'') clicar aqui.

(**) Vd. poste de 11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3713: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (1): Just married...

Bilhete Postal > Guiné Portuguesa > 118 – Vista aérea de Bissau. Fotografia verdadeira – Reprodução proibida. Edição Foto Serra. C.P. 239 – Bissau… Impresso em Portugal. Sem data. Bilhete postal gentilmente cedido pelo nosso camarada Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (*). 

 Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


  1. Mensagem de Joana Beja Santos: Ao cuidado de Luís Graça: A pedido da minha mãe, Cristina Allen, remeto o texto "Em Bissau, controlado desespero", destinado à "Tabanca Grande", se achar oportuno. Cumprimentos, Joana Beja Santos 2. Os meus 53 dias brasa em Bissau (1) > Controlado desespero (I) por Cristina Allen (*) [Título da série e subtítulos a negrito no texto, da responsabilidade do editor L.G.]

Caro Luís Graça, seus co-editores, e ainda Torcato Mendonça e Hélder Sousa, Um agradecimento comovido pelos comentários que o meu texto suscitou (*). 

Que é isso, meus bravos? Uma mulher anónima diz: “Afinal, a nossa geração viu muitas coisas”. E Torcato Mendonça escreve um poema belíssimo (nunca ninguém se lembrou de me trazer à vida em poesia), o Luís Graça cita V. Briote em “As nossas mulheres (…)” e surgem, no Blogue, a fotografia da pequena catedral e mais uma fotografia minha, já olheirenta e profundamente angustiada, para além de mais um endereço de aerograma (**). 

Para os que coleccionarem informações soltas e, sobretudo, para os camaradas deste blogue que nasceram no Alto Alentejo e conheçam bem Évora, o arquitecto daquela igreja foi o alentejano José Pedro Cordovil, nascido no belíssimo palácio Cordovil (Rua da Mesquita n.º 7). Num imenso jantar de família, deu-me a sua direita e falou-me dessa obra de juventude, que não ficara muito a seu gosto… aos dezoito anos, nada me faria pensar que viria a casar ali. 

O mundo é redondo, dá muitas voltas, mas quer o acaso que, num ponto inimaginável do tempo, nos encontremos, fisicamente ou nos recônditos obscuros da memória, prontos a saltar em vivíssimos vislumbres. Como neste blogue. E também para os gulosos de azeitonas (grandes, verdes, retalhadas à mão!), que estiveram na Guiné e viram a Praça da Senhora da Candelária, em Bissau, aqui vai um errático e estimulante percurso – “Tigre de Missirá” – Cristina - Catedral – “azeitonas cordovil”. Espetem um palito, levem à boca este petisco e vereis o casal mais mal emparelhado que Bissau tão brevemente viu. E brindem aos vossos amores! Passados, presentes e… futuros. 

   Chegar a 15 de Abril, casar a 16...

Luís Graça, temos um problema (que não é seu). Ao fazer a citação de uma passagem que, creio, ser do segundo volume da obra do camarada Mário Beja Santos (distraído historiador) li: “A Cristina chegou a 18 de Abril (…). Durante os praticamente vinte dias que ela aqui viveu (…)”. 

Li e pasmei. É que eu não vivi só vinte dias em Bissau. Nem cheguei a 18 de Abril. Se estou certa, na tarde de 18 de Abril de 1970, estaria a assistir a um batuque em nossa honra, e recordo um incidente: nesse magnífico batuque, um dos dançarinos, com uma camisola às riscas verdes e brancas, atirou para o meu colo um grande trapo sujo e o Cherno atacou-o, fazendo-o desaparecer de imediato. 

 Quer mais provas? Reza assim a minha certidão de casamento, que tenho à frente: “Certifico que (…) às dezoito horas do dia dezasseis de Abril do ano de mil novecentos e setenta (…) perante mim, Padre José Afonso Lopes (…) compareceram os nubentes (…)”, etc. 

 Cheguei a Bissau a 15 de Abril, casei a 16, parti para Lisboa a 8 de Junho. Cinquenta e três dias. Se achar interesse a isto que escrevo, pode editar, pois já esclareci com o Mário esta questão. Terá havido uma semana e poucos dias de alegria e em todos os restantes, a quotidiana eternidade de desespero controlado. O meu marido sofria do que hoje chamamos, sem complexos, “stress de guerra”. E um súbito muro se atravessava entre nós. Não sei se o escreveu, mas, de olhos desmesuradamente abertos, mandava-me embora e dizia que queria morrer e ser enterrado em Missirá. Pior ainda, eu obrigara-o a casar e o nosso casamento não era válido porque não estava consciente. Doença de guerra, pura e dura. 

 Levei-o ao Padre. Experiente conhecedor de almas, o Padre Afonso, muito calmo, tinha ali o livro de registos e foi dizendo que, se ele queria ir morrer a Missirá, que fosse. E, quanto ao casamento, abrira uma folha nova nos assentos, bastava arrancá-la… o nosso “Tigre” deu um salto, eu temi pelo Padre, mas tudo se acalmou. “Vão lá almoçar”, disse. Porém, discretamente, fez-me um gesto e percebi que ia telefonar. 

No dia seguinte, e de acordo com o que fora anteriormente combinado, o meu marido vadio ingressaria na ala de Neuropsiquiatria do Hospital Militar. Durante dois dias, eu não poderia vê-lo, já que o David Payne iria tentar pô-lo a dormir. Discretamente, o David passou-me para as mãos um frasco hospitalar de “Vesparax” (quem não dormia era eu…). 

Dançando o tango com o Caco Baldé 

 Começaram as tardes das visitas. Havia um autocarro, sempre cheio de pessoas, cabritos e cobiçadas galinhas. Acabei por arranjar um táxi, cujo motorista, João Carlos, me levava e, pontualmente, me aguardava para o regresso. Tínhamos feito um trato – em Bissau quase tudo se negociava. Apressava-me, na saída, não fosse encontrar Spínola, que, diariamente, visitava os seus doentes. Atrasei-me três vezes e três vezes me aconteceu encontrá-lo à porta de armas (chamava-se assim?) do hospital. Andávamos, ao que parecia, cronometrados… 

 Havia um toque (A recolher? Por causa dele? Nunca perguntei). Mas via aquele homem passar para a mão esquerda o pingalim, encostá-lo firmemente à perna, pôr-se em sentido, crescer, enchendo o peito de ar, o ventre liso, o braço direito, o cotovelo, a mão, na mais perfeita continência que jamais vi. Ficava desmesuradamente imenso, desmesuradamente rígido, só o monóculo coruscava. 

 Estarrecida, não sabia que fazer dos pés, das mãos, da mala, da mini-saia, parava, cruzava as mãos, endireitava-me (postura por postura, não baixaria a cabeça, olhava-o nos olhos, ou, melhor dizendo, no olho e no monóculo). Acudiam-me ideias bizarras – que o meu avô materno fora lanceiro e, certamente, teria sabido fazer aquilo mesmo; que ele, Spínola, escorregara em Missirá, numas cascas de batata e fora ao chão, pose, pingalim, monóculo e tudo, soltando palavrões… que aquele homem era o… “Caco Baldé”! Apertava os lábios para não me rir: este é o Caco, Caco Baldé… 

 Mas este era apenas o primeiro acto desta farsa. O segundo, começava com a questão “Passas tu ou passo eu?”. No terceiro, resolvia eu recuar, só então ele passava e, perfeito cavalheiro, punha-se de lado e cumprimentava: “Muito boas tardes, minha senhora”. E eu respondia-lhe: “Muito boas tardes, Senhor Governador”. Afinal de contas, era fácil dançar o tango com Spínola. Dobrado contra singelo, diria que, em seus tempos, o teria dançado na perfeição, sem pisar os pés do par… 

Deixemos, por ora, o Mário na sua cama, entre dois outros perturbados, que, continuamente, discutiam… Quando, escassos anos volvidos, leria atentamente Portugal e o Futuro, fecharia o livro, e, olhos cerrados, para mim mesma o interpelava: “Então, meu Caco, só agora?!” Para todas as coisas há o seu tempo. Nos anos de brasa que decorreriam, e, mais ainda, nos outros que vieram, ele seria, talvez, uma das mais contraditórias e inquietantes personagens. Recordo, hoje, os quatro majores que, num gravíssimo erro de cálculo – ou num quase infantil erro de cálculo – ele enviou para o martírio e penso em tantos jovens anónimos que perderam suas desgraçadas vidas. Nos estropiados, nos cegos, nos perturbados, nas nossas lágrimas. E, todavia, ele, feito Marechal António de Spínola, será sempre, para mim, a mais trágica figura do braseiro que outros atearam, sem ele, com ele, ou em seu nome. Que Deus e a História sejam clementes para com este homem. 

Em paz, na nossa 'Tabanca Grande'...Inch’ Allah!, amigos. 

 E agora nós, Luís Graça e Camaradas da Guiné, se a nossa geração viu tantas coisas, certamente teremos mais para ver. Estamos prontos? Vejamos, então. Todos nós temos televisão e esse meio, quer queiramos, quer não, de todos nós faz cidadãos do mundo. 

O Inferno anda à solta em Gaza, em Jerusalém, nos túneis que se abrem no Egipto e, ao que consta, no Irão. O epicentro deste horror situa-se numa terra que foi berço dos três mais velhos credos monoteístas deste mundo, raízes das nossas crenças, nossas lendas, nossos hábitos, superstições, pequenos gestos. No nosso sangue correm, misturados, laivos do sangue dessa gente que se bate. Quem são, de que lado se batem esses “turras”? Os nossos “irmãozinhos”, diriam os muçulmanos, os nossos “irmãos”, dizem judeus e cristãos. 

Algures na Alemanha, o mais jovem dos meus primos (33 anos!), piloto da Nato, já fez Kosovo, Afeganistão, Iraque e está em “estado de prontidão”. Idade suficiente para ser um filho nosso. Lembrai-vos desse menino alentejano, que, aos comandos, vai ir para qualquer sítio, atravessando os ares carregados. Estamos em paz na nossa “Tabanca Grande”. E, acima de nós, escreveu Kant, “o céu estrelado (…)”. “Inch’ Allah!”, não só “talvez”; literalmente é “Queira Deus!” “Inch’ Allah!”, amigos. Cristina Allen 

 _____ 

Nota: esqueci-me de que deixei o meu ex-marido em “banho de maria” no hospital. Há mais, ainda mais para vos contar. Lisboa ainda está longe de Bissalanca. Nem vi, sequer, do alto, a quase poética brancura de Dakar.

____________ 

 Notas de L.G.: 



quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3712: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (9): Para breve a 2ª edição do livro (Luís Graça)

Academia Militar > Aquartelamento da Amadora > Auditório > 13 de Dezembro de 2008 > Sessão de apresentação do livro do Cor Art Ref, Coutinho e Lima, A Retirada de Guileje: A Verdade dos Factos (Linda-A-Velha: DG Editora, 2008, 469 pp, € 20)(*) Excerto da apresentação do livro pelo autor, que refere as diligências feitas por si o período entre 15 e 21 de Maio de 1973, na qualidade de comandante do COP5. O cerco a Guileje por parte das forças do PAIGC (Op Amílcar Cabral) começou a 18 e prolongou-se até 25 de Maio de 1973 (entrada no quartel abandonado). A 22, foi tomada a decisão de retirar para Gadamael (**). Vídeo: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.Vídeo (6' 13'') alojado em: You Tube >Nhabijoes. [Clicar em assistir em alta qualidade, no caso de dificuldades em ver ou ouvir o vídeo] 1. Mensagem do nosso camarada Coutinho e Lima: Caro Luís: Regressado de umas merecidas férias e espero que com as tuas "baterias carregadas", para mais um ano de árduo trabalho, aqui estou eu a dar notícias. Tenho recebido muitos Votos de BOAS FESTAS e BOM ANO de 2009, de muitos tertulianos, bem como considerações positivas de alguns que já tiveram a oportunidade de ler o livro; por manifesta falta de tempo, pois tenho dado prioridade aos pedidos de envio do livro, bem como outras diligências, solicito mais uma atenção, a acrescentar às muitas já recebidas, no sentido de, através do blogue, agradecer em meu nome as variadas formas de solidariedade e simpatia que tenho vindo a receber. A aceitação do livro tem sido excepcional e para a próxima semana vou providenciar para ser executada uma 2ª. Edição, porque a 1ª. está praticamente esgotada (***). Junto envio a MENSAGEM dos HOMENS GRANDES de GUILEDGE por ocasião do lançamento do livro Retirada de Guileje. Se não o conseguires ler (o que já aconteceu com o meu filho), agradecia que me informasses, para que no fim de semana nos encontremos, para resolver este assunto, pois que na próxima 3ª feira vou para o Norte, donde só volto na 1ª semana de Fevereiro. Obrigado por tudo. Um grande abraço Coutinho e Lima PS - Definitivamente a mensagem não segue, por esta via, talvez por ser grande. Como é que nos encontraremos no fim de semana ? 2. Comentário de L.G.: Parabéns, Alexandre. A 2ª edição é uma justa recompensa por todos estes meses de trabalho árduo (não falando já dos longos anos em que estiveste votado ao esquecimento e ao silêncio...). Passo aí por casa, no fim de semana, para ir buscar o ficheiro com as mensagens dos homens grandes de Guileje/Mejo, que o Prof Eduardo Costa Dias, do ISCTE, trouxe da Guiné-Bissau. _________ Notas de L.G. (*) Como adqurir o livro do nosso camarada Coutinho e Lima ? Escrever ou telefonar para o autor: Rua TOMÁS FIGUEIREDO, nº. 2 - 2º. Esq 1500 – 599 LISBOA Telefone: 217608243 Telemóvel: 917931226 Email: icoutinholima@gmail.com (**) Vd. portal Guerra Colonial, da A25A > Guiné, Maio e 1973, o Inferno > Guileje - a outra ponta da tenaz. (Excerto) [Com a devida vénia e o nosso apreço; negritos do editor do blogue] (...) O ataque a Guileje, no Sul da Guiné, de que iria resultar a retirada das forças portuguesas, iniciou-se em 18 de Maio de 1973, coordenado com o de Guidaje. Comandado pelo próprio Nino Vieira, comandante militar do sul, foi-lhe dado o nome de código de Operação Amílcar Cabral e executada com intenção de o PAIGC apresentar os seus resultados à OUA, cujo 10.º aniversário se comemorava em 25 de Maio. Para o início da operação, o PAIGC concentrou em redor de Guileje, a bateria de artilharia de Kandiafara, com morteiros de 82 e 120 mm, canhões sem recuo, canhões de 85 mm e de 130 mm, um grupo de reconhecimento e observação e cinco bigrupos de infantaria do sector de fronteira. Deslocou ainda o 3.º Corpo de Exército do Unal para a mata do Mejo e transferiu três bigrupos da região do Boé e dois bigrupos do 2.º Corpo de Exército, no Tombali, para reforço do sector de fronteira. No total, o PAIGC concentrou na zona de Guileje, um corpo de exército (3.º CE), no Mejo, dez bigrupos em reforço ao sector de fronteira e uma bateria de artilharia, com um grupo de reconhecimento. Ao todo, considerando a base numérica de cada unidade do PAIGC utilizada pelos serviços militares portugueses, seriam cerca de 650 homens, efectivo idêntico ao que foi concentrado em Cumbamori para o ataque a Guidaje. As forças portuguesas da guarnição de Guileje (COP 5), comandadas pelo major Coutinho de Lima, eram constituídas por: Companhia de Cavalaria 8350 Pelotão de Artilharia Secção de auto-metralhadoras Fox Pelotão de milícias. Em 18 de Maio de 1973, o PAIGC realizou uma emboscada, às sete da manhã, a cerca de dois quilómetros de Guileje, às forças que iam abastecer-se de água ao poço situado no exterior, da qual resultaram um morto e sete feridos do pelotão de milícias e ainda o ferimento grave de um soldado metropolitano, que veio a morrer quatro horas depois, por falta de evacuação aérea, facto que afectou o moral das tropas e contribuiu para o agravamento da situação no interior de Guileje. Nessa noite, de 18 para 19, o quartel foi atacado e o comandante do COP5 pediu para se deslocar a Bissau, a fim de expor a situação, o que não lhe foi autorizado. Em 20, a partir de Cacine, o mesmo oficial pediu de novo autorização para ir a Bissau, onde se deslocou e expôs a situação ao comandante-chefe, regressando a Cacine. Em 21, o PAIGC realizou outra emboscada, com utilização de RPG-7 junto à bolanha onde militares recolhiam água. Ainda neste dia, Guileje sofreu três flagelações com um total de 45 granadas, uma às sete, outra às nove e outra às 13 horas. Às 14 e 15h, o posto de rádio emitiu a sua última mensagem: «Estamos cercados... », que foi captada em Gadamael. O comandante do COP5 regressou a Guileje ao fim da tarde, vindo a pé de Gadamel com dois grupos de combate, um da CCaç 4743, da guarnição de Gadamael, e outro da CCaç 3520, da guarnição de Cacine. Às 18 e 30h, o comandante do COP5 decidiu evacuar as tropas e os civis de Guileje. Em 22, pelas 5 e 30h da manhã, iniciou-se a saída do quartel, com a destruição do material abandonado. Por falta de comunicações, esta acção apenas foi conhecida quando a coluna chegou a Gadamael, pelas 10 e 30h do mesmo dia. Entre 18 e 22 de Maio, Guileje sofreu 36 flagelações, que causaram grandes danos, embora não tenham provocado baixas, dado o sistema de abrigos que ao longo dos anos ali havia sido construído. (...) [Observação do editor, L.G.: Atenção, houve um morto, um Fur Mil da CCaç 4743, de um grupo de combate da subunidade de Gadamael, destacado em Guileje]. ____________ Notas de L.G.: (*) Vd. postes anteriores desta série: 6 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3704: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (8): Notas e correcções de Abreu dos Santos, comentários meus (V. Briote) 2 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3689: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (7): Antecedentes relacionados e breve comentário (V. Briote) 31 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3686: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (6): Comentário do Ten Cor José Francisco Robalo Borrego 15 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3628: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (5): O sentido de uma sondagem (Joaquim Mexia Alves / Luís Graça) 15 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3627: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (4): Apresentação do livro, 5ª F, 18, na Casa da Guiné-Bissau em Coimbra 15 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3626: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (3): Tardia a nossa percepção do nosso próprio Vietname (Eduardo Dâmaso) 14 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3618: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (2): A festa ... e a solidão de há 35 anos (Luís Graça) 27 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3527: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (1): Lançamento do livro, 13/12/08, 17h, na Academia Militar, Amadora