1. Em mensagem do dia 20 de Setembro de 2011, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta boa memória da sua guerra.
Memórias boas da minha guerra - 23
Raul Pires - O Mergulhador do Funchal
O Raul chegou a Catió no dia 27 de Agosto. Vinha em rendição individual, para colmatar a falta do Francisco Maria Pereira Adão, conhecido por Chico do Palácio, que havia falecido no dia 01 de Agosto de 1967, durante a Op Sónia.
Logo no primeiro dia, apesar do seu aspecto humilde e de comportamento meio bajulador, ficou famoso. Como é sabido, não há tropa sem jogatina. E, pela noite dentro, há sempre um pequeno grupo mais viciado que, normalmente, se esconde a… fazer companhia ao padeiro. Pois o Funchalense de gema, conseguiu meter-se no grupo, para desgraça de todos os jogadores.
A meio da manhã seguinte, lá vinha o Raul com um rádio de pilhas novo, ao ombro, com os decibéis a meio tom, enquanto alegremente assobiava a acompanhar o ritmo da canção de sucesso:
-
Mulhé grande in´cá tem cabaço, olé lé lá! Bajuda na tem dimais!
Na parada, era evidente o ambiente de crava, entre os fumadores. E o Matosinhos não se conformava:
- “Puta que pariu”, como é que o gajo nos limpou a todos?
- Que nos fodeu, fodeu bem, porque nem demos por ela. - dizia o Monteiro de Paredes.
- Foi limpinho! E agora, que vamos fazer? - perguntava o Mafamude.
- Estamos tesos, não temos tabaco e ainda faltam uns dias para o pré.
E concluiu:
- Acabámos por ter muita sorte porque se mais tivéssemos mais dinheiro perdíamos.
Vista parcial da marginal do Funchal
Foto de Carlos Vinhal
Íamos fazer um pequeno patrulhamento, a nível de Pelotão. Formados na parada, verificámos que o Raul não estava. Foram procurá-lo e deram com ele na cama. Saímos na direcção de Príame e esperámos fora do Quartel, para que o Capitão não descobrisse que ainda estávamos ali. Passados uns bons minutos, surge o madeirense, preparado para fazer o seu primeiro serviço na guerra. De lenço colorido (lembrança de uma das dançarinas do Rancho Folclórico da Camacha) amarrado na cabeça, tipo pirata das Caraíbas, arma G3 atravessada na nuca para apoio dos braços e com sapatilhas de ginástica. Vinha calmamente e a assobiar.
Inicialmente, foi gargalhada geral. Porém, logo de seguida, os outros encarregaram-se de o alertar para vários perigos.
E eu, que vou fazer a este gajo? - Pensei.
Como era a primeira vez, deixei-o ir de sapatilhas, para que sentisse as consequências. Lembro-me de o ver descalço e a coxear, quando regressávamos.
Além de ter sido expulso por indesejado no grupo da jogatina (sem outra justificação que não a de limpar tudo), o Raul era acusado de aproveitar-se dos mais distraídos para lhes desviar alguns haveres.
É que ele até as botas deixava enterradas na bolanha e, consequentemente, tinha que repor… o stock. Também não se acanhava nada em deixar cair ao rio, as granadas de morteiro 60 ou de bazuca, que gostava de exibir à saída do quartel.
Era, realmente, um indivíduo fora do habitual e, aparentemente, de pouca confiança. A malta não lhe ligava muito e, até, se afastava dele.
Obrigava-nos a muita atenção, embora o seu relacionamento fosse bastante divertido.
Eu, gostava de o ouvir mas não podia dar-lhe “corda” porque ele ultrapassava as conveniências. Todavia, atendia-o com toda a atenção e, devido a isso, dizia gostar de mim. Fiquei a saber que ele era praticamente analfabeto, mas sabia falar algum inglês, francês e alemão. Não tinha profissão. Vivia do jogo e dos mergulhos no cais do Funchal a apanhar moedas lançadas pelos turistas. Eu não acreditava mas tive a oportunidade de verificar a sua destreza e não só nesse aspecto.
A primeira situação foi durante a montagem de segurança a uma das colunas de abastecimento a Cufar. Ao aproximar-me de um posto/abrigo verifiquei que estavam três militares (“Felgueiras”, Joaquim “Faquista” e Raul) em vez de dois, porque o madeirense se tinha deslocado para lá.
- Que é isto? Três gajos aqui? Só falta um para se poder jogar às cartas. – Chamei a atenção.
Então, o Raul levou a mão direita ao bolso de trás e, de imediato, em dois segundos, abriu o baralho, misturou as cartas e começou a distribui-las - 10 a cada um. Nunca tinha visto uma coisa assim. Dava as 10 cartas sem nos apercebermos de as ter contado. Ninguém conseguia acompanhar tal rapidez.
A outra oportunidade, verifiquei-a quando estivemos em Bolama durante uns dias, após a Op Quebra Vento para construção do novo quartel de Gubia, na península de Empada. Havia uma piscina, onde passávamos a maior parte do tempo livre. Desafiado a ir buscar moedas ao fundo, concordou plenamente. Virava-se de costas para a piscina enquanto mandávamos uma moeda para qualquer canto ou para o meio da piscina. Ele mergulhava e verificava toda a piscina até a encontrar, sem vir respirar à superfície.
Era muito gabarola. Antes das Operações até dizia que iria apanhar aos turras um Morteiro 82 mas, depois, era um problema com ele porque lhe custava aguentar disciplinadamente horas e horas, em situação de combate iminente (e sem fumar!).
Já tinha tentado enganar-nos com “indisposições” na hora de sairmos para as Operações. Como lhe correu bem da primeira vez, pensou que podia repetir a habilidade. Um dia, antes de sairmos para uma Operação perigosa, fui informado de que o Raul estava deitado no chão da parada, caído de bêbado. Não era pela falta que ele fazia, mas não podíamos tolerar esse comportamento. Pedi ao Furriel Enfermeiro “Berguinhas” para lhe aplicar a dose necessária, para o “acordar”. Após a injecção de Coramina não levou muito tempo a mexer-se e a coçar violentamente os dedos dos pés, das mãos e o nariz, enquanto gritava repetidamente:
- “Ai maezenha, maeiiizeeenha, que não aguento tanta formiguenha, tanta formiguenha”.
E, apercebendo-se de que eu estava por perto, intervalava, com:
- Chamem o
meo paezenho. Acuda-me, furriel
Seilva. Você é o
meo paezenho.
HM 241 de Bissau
Foi ferido no dia 19 de Abril de 1968, num dos 51 + 1 ataques sofridos na Op “Bola de Fogo”, em Gandembel, no Corredor do Guileje. (O último ataque que refiro não teve lugar em Gandembel, porque foi uma emboscada montada à LDG que nos transportava, de regresso a Catió). Pois o Raul, logo que se pôde mexer, foi pelos corredores do Hospital de Bissau, carregando o material do soro que tinha instalado ao pé da cama, procurar o Capitão, que tinha sido evacuado dois dias antes, também ferido em Gandembel.
-
Meo Capitãzenho, tambã me federam. Inda lá vamos voltar para resolvaer aquelo. Ningã veance a nossa Companhaea!
Surpreendido e alarmado, o Capitão, diz-lhe:
-Ó homem, você vem para aqui com essa tralha toda a segurar-lhe o tubo e a bolsa do soro? Só não trouxe a cama.
-
Tem razã meo Capitã, éo já desse ó meo dôtôr que era melhour meter o souro num garrafã , mesturado com veinho teinto.
Silva da Cart 1689
Nota: O texto acima será melhor entendido pelo leitor se for esclarecido que comandei o Pelotão durante grandes períodos de tempo, devido a ausência do alferes.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 18 de Setembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P8792: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (22): Queimados