Caros super amigos Luís e Vinhal:
Aqui vai mais uma folha arrancada das minhas memórias.
Recebam um grande abraço extensivo ao meu querido amigo Magalhães Ribeiro.
Passem bem, mesmo muito bem.
Rui Silva
Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.
Das minhas memórias: “PÁGINAS NEGRAS COM SALPICOS COR-DE-ROSA”
O REGRESSO (muita sorte!)
Quando, e precisamente aos 5 de Janeiro de 1967, logo de manhã cedo, sinto, sob os meus pés, as rodas do trem de aterragem de um DC6, agora na frota militar, a deslizarem na pista do aeroporto de Bissalanca deixando a Guiné, disse para comigo: “Estou safo!!”
Registei esse momento. Ele dizia muito. Rara sensação.
Deixei a Guiné mais cedo um mês do que a minha Companhia. Vim evacuado para ser operado no Hospital da Estrela, a um joelho. Acidente no aquartelamento do Olossato a… jogar futebol.
A minha Companhia esteve sempre em campanha, sempre no mato, durante 21 meses, e eu, portanto, 20.
Viemos para Mansoa para descontrair um pouco. Era normal e acontecia, se não com todas, com a maioria das Companhias que tivessem estado em zonas de intervenção complicada e difícil. Os últimos 4-5 meses eram passados em zonas mais soft. Assim era para acontecer; só que, a guerra estala aí também. Começam as emboscadas na estrada Mansoa-Bissau (cheguei a fazer esse trajecto num Volkswagen (vulgo carocha) alugado em Bissau, com mais dois Furrieis da 816), e a guerrilha assenta arraiais em Jugudul, Quibir, Date, Bindoro e até Porto Gole.
A guerra na altura chegava às portas de Bissau.
DC 6 estacionado em Bissalanca
Foto retirada, com a devida vénia, do Site Especialistas da BA12Os DC 6 vinham para a frota militar depois da TAP os considerar obsoletos ou desactualizados, dizia-se.
Era um avião, agora militar, destinado a carga. Não sei se na TAP era esse o serviço ou se foi adaptado.
O espaço interior (excepto, claro, o cockpit) era todo aberto com dois rudimentares bancos corridos e com assento de lona, quase em todo o comprimento e um de cada lado encostados à fuselagem, o que permitia-nos viajar sentados virados uns para os outros. Vínhamos poucos no entanto.
Antes de subir reparei no avião e fiquei com a impressão de um avião já velho com a tinta comida ali e acolá e algumas amassadelas. Mas as hélices rodavam.
Mais impressionado fiquei quando entrei e vi o estado da aeronave. Mais arrepiado fiquei quando a larga porta que servia, decerto, à passagem de grandes volumes, foi finalmente fechada… à marreta. E eu que fiquei mesmo à beira dela. Grande frincha na porta. Será que…
Um arrepio e logo um pensamento: Queres ver que me safei do mato e vou cair nesta geringonça.
Já estava a ver nos jornais a história do desastre.
Fizemos escala em Las Palmas. Estivemos ali cerca de 45 minutos num café-cantina também de militares, provavelmente de tropa espanhola. Fez-me raiva ver aquela malta fora de qualquer guerra, ali descontraída e alegre a beber o seu copo.
Quando pousei um pé, julgo que em Figo Maduro e depois de cerca de 16 horas de voo num avião pouco menos que assucatado, já alta madrugada, suspirei de alívio.
Agora sim, já não morro mais!
Depois de uma breve passagem pelo Hospital da Estrela - entrega, suponho, de papelada - fui de imediato para o “Texas” (Anexo do Hospital Militar da Estrela que ficava ali perto do Hotel Ritz, e na rua Artilharia 1). A noite já ia bem avançada e fui instalado numa camarata. Mas, que bom, estava safo e até parecia mentira.
Voltando ao princípio e à viagem propriamente dita do regresso:
Inserido num grupo de meia dúzia de evacuados, parto para Lisboa deixando a Guiné e os meus grandes amigos da 816. Ainda me recordo que fiz questão de gravar na minha mente a imagem que me era dado ver através de uma pequena janela do avião, pois seria essa a última visão da Guiné. Sem pestanejar, olhava para aquela terra a que eu jamais provavelmente voltaria. Olhava um ponto indefinido lá longe na mata e meditava, meditava… que sentido fazia a vida ali a ser vivida desta maneira? Perguntava-me a mim próprio.
Sim, tinha sido ali que eu tinha vivido quiçá o episódio mais cruciante e mais temeroso da minha vida, pelo menos até então. Foi ali que integrado na Companhia de Caçadores n.º 816, defendi, embora modestamente, a minha pátria. O avião começou então a ganhar velocidade e então via que me afastava daquela pequena parcela de território português, palco de uma guerra terrível, uma guerra de nervos - o inimigo está em todo lado, já ali do outro lado do arame farpado, e acoitado na mata -, de acção constante, (ali a guerra tem 24 horas por dia), uma guerra fria e traiçoeira – as minas, os fornilhos, as emboscadas aparecem onde menos se espera. Uma guerra em que os valorosos soldados portugueses eram a força, a coragem e a determinação personificadas. Valente o soldado português, pensei para cá comigo. Senti então o meu coração bater forte e instintivamente desejei, mentalmente, a maior sorte aos meus amigos que ali ficavam e ali continuariam a lutar e a sofrer, embora que, no caso dos da 816, só por algumas semanas mais.
O avião deixou então de pisar a pista e voou até se perder na penumbra da atmosfera. O meu olhar não despegou daquela mancha esverdeada raiada de traços de água um pouco por todo o lado, mancha que era a densa, diversa e sinuosa vegetação que caracterizava aquela terra e os traços largos de água que a inundam vastamente formando autênticos pântanos nas suas margens aquando das marés baixas (os tarrafos).
Deu para ver a silhueta da Guiné na sua parte ocidental. A imagem real que eu só conhecia no mapa e há pouco tempo, pois nos bancos da escola falava-se mais da Índia, de Angola, de Moçambique. Eu a ver do alto aquele palco. Um palco de horrores. O rio Mansoa, mais adiante o Cacheu, A verde vegetação que em tantos pontos nos obrigava a gatinhar ou andar deitados para a podermos contornar para progredir e pântanos que tantas vezes quase nos cobria de água e lodo ao os atravessarmos, sempre no encalço do inimigo. A lama dos pântanos e a água das bolanhas que nos encharcava o corpo de alto abaixo, a água que logo secava quando dela saíamos, a água que volta a envolver-nos e a encharcarmo-nos logo mais adiante. O camuflado de tanto molhar, secar e molhar ficava como um grosso papelão com uma capa de lama ressequida - quantos quilos de lama seca se transportava no corpo?!
O barulho de um crocodilo (segundo um nativo) algures quando metidos em água. E outras coisas…outras coisas. Tal como quando cheguei no Niassa, embora neste caso ao nível terrestre praticamente, viam-se ali e acolá colunas de fumo.
Agora estava certo que reportavam a acções de guerra e, aquela hora, princípio da manhã, eu agora sabia-o que os refúgios inimigos eram incendiados após o ataque.
Imaginei os meus camaradas naquela emaranhada floresta aos tiros, o frenesim dos radiotelegrafistas, os gritos dos comandantes, os feridos, os Alouettes (no meu tempo estes eram do modelo que transportava os feridos em macas no exterior, uma de cada lado do aparelho) ao encontro daqueles, e os T6 e já também os Fiat naquela altura, a descolarem para entrarem em acção e apoiarem a tropa em luta no terreno.
E eu já ali bem encima a deixar o Inferno e a afastar-me deste em boa velocidade.
Afinal estive ali perto de 2 anos. Despertei então daquele estado de absorção que me fazia alhear completamente da vida naquela altura, e recompus-me no assento do avião e, pronto, pensei, tinha acabado ali aquilo que mais parecia um sonho. Sim tudo pareceu um longo sonho,… ou pesadelo?
Um sonho que afinal até teve episódios agradáveis. A nossa juventude rebelde e irreverente procurava sempre criar momentos agradáveis nem que com isso custasse a este e aquele servirem de chacota ou de bode expiatório. Hoje uns, amanhã outros. Alguns murros por o meio também. Um sonho singular, e por isso mais aliciante? Contudo um “sonho” de grande importância na minha vida de homem na circunstância um cidadão português na condição de militar combatente. Sei lá o que dizer ou o que pensar? Talvez um pouco de tudo! A vida ali tocava as pontas.
Formatura em Brá aquando da despedida da Guiné. Destaco o nosso Primeiro Rodrigues, já falecido, segurando com firmeza o nosso Guião. Paz à sua alma. Em primeiro plano o nosso jovem nativo fardado à maneira, que veio com a 816 para a metrópole, quando tinha 8 anos. O nome de Mamadú ou Morés, este de alcunha, deu lugar a Jorge, hoje senhor Jorge e com 53 anos a viver em Riomeão
No mês seguinte, Fevereiro de 1967, foi com a maior alegria e com uma persistente lágrima no olho a querer deslizar, que abracei os meus colegas no cais da Rocha do Conde de Óbidos em Lisboa mal atracou o “Uíge”. O barco que os trouxe da Guiné.
O navio Uíge trouxe a Companhia 816 de volta à Metrópole em Fevereiro de 1967
No Uíge, à mesa, na Sala de Jantar dos Oficiais. Do lado esquerdo, o segundo contando de cá para lá e olhando para a câmara, é o Capitão (Grande Capitão como ainda hoje lhe chamamos) Luís Riquito que comandou a CCaç 816.
Ainda no Uíge, uma mesa dos Furriéis da 816
Depois ao desfilarem e eu cá de cima do terraço do edifício do cais, senti um calafrio percorrer-me o corpo todo, imbuído numa rara emoção. Disse instintivamente: ”Ali vai um grande grupo de militares”. Para toda esta gente (referia-me aquela grande multidão que invadia o terraço e zonas limítrofes) não passa de um grupo anónimo de militares qualquer, mas tinha sido efectivamente um grupo de homens que, chamado a intervir, fê-lo desde a primeira hora sem nunca virar a cara à luta ou a recear qualquer que fosse a missão ou o objectivo. Nunca em caso algum temeram o inimigo em qualquer que fosse a circunstância e nunca também regatearam qualquer esforço ou trabalho por muito árduo ou temeroso que ele fosse.
A emoção daquela gente que também chorava como à partida, mas agora com contornos diametralmente diferentes.
Aqueles homens podiam orgulhar-se de grandes cometimentos, mas eu sabia bem que aqueles soldados eram demasiado simples e humildes para deixarem-se mover por veleidades, quer de vaidades, quer de preconceitos.
Várias Companhias desfilavam na altura e entre elas a minha 816 e o meu olhar era um olhar de admiração e consideração. Porque a Companhia de Caçadores n.º 816 tinha feito um grande trabalho, de grande qualidade e importância na defesa do território português a que se dava o nome de Guiné.
O desfile acabou e o pessoal começou a acomodar-se nas viaturas.
Despedi-me dos soldados, dos meus colegas Furriéis e dos Oficiais.
Uma enorme sensação, um grande estado emocional tinha então se apoderado de mim, pois para além do mais, eu sabia que, concerteza, jamais voltaria a ver muitos daqueles camaradas, com quem compartilhei o bom e o mau, os momentos felizes e menos felizes, as lágrimas pela morte dos nossos camaradas mortos em combate, e os feridos, sim e os feridos, alguns mesmo muito, naquela odisseia que se prolongou por perto de 2 longos e inolvidáveis anos da minha vida e que me fizeram registar com muito empenho, entusiasmo e realismo em Páginas negras com salpicos cor-de-rosa.
Texto e fotos
Rui Silva
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 13 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 – P9192: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (16): Partida e viagem para a Guiné