1. Antóno Vaz, valoroso capitão de Bissorã e do Xime, comandante da CART 1746... Hoje fazes anos, de acordo com o nosso poste da série "Parabéns a você"... Mas eu tenho estranhado o teu silêncio... Os médicos dizem que o silêncio dos órgãos é sinal de saúde... Na realidade, é mau sinal quando eles começam a "falar"... Mas eu refiro-me ao silêncio... das nossas comunicações bloguísticas, . Há mais de um ano que não mandas um ALFBRAVO à gente...
Pergunto; o que é que se passa contigo, comandante ? A última vez que te vi, na Praça do Comércio, tinhas ido à faca...Mas senti-te em boa forma!
Hoje é dia de festa, de aniversário... Eu e o resto da malta estamos contigo para te cantar os "parabéns a você" debaixo do poilão da Tabanca Grande!... Lembras.te dos poilões do Xime, a última tabanca de que foste o "régulo!" ? Levaram morteirada e canhoada em cima, mas ainda lá estão, dizem... Pois é isso que a gente te deseja: aguenta, capitão, força, António!
[foto à esquerda, cap art mil António Vaz, CART 1746, Xime, c. 1969]
Pergunto; o que é que se passa contigo, comandante ? A última vez que te vi, na Praça do Comércio, tinhas ido à faca...Mas senti-te em boa forma!
Hoje é dia de festa, de aniversário... Eu e o resto da malta estamos contigo para te cantar os "parabéns a você" debaixo do poilão da Tabanca Grande!... Lembras.te dos poilões do Xime, a última tabanca de que foste o "régulo!" ? Levaram morteirada e canhoada em cima, mas ainda lá estão, dizem... Pois é isso que a gente te deseja: aguenta, capitão, força, António!
[foto à esquerda, cap art mil António Vaz, CART 1746, Xime, c. 1969]
2. Nunca esquecerei a minha chegada ao Xime, vindo de LDG pelo Geba acima... Foi na manhã de 2 de junho de 1969, 2ª feira... Estávamos no início do tempo das chuvas, a pior época para um pobre tuga acabado de chegar do primaveril Portugal continental ...E logo ali soubemos que a sede do batalhão, Bambadinca, tinha sido atacada em força, na 4ª feira, dia 28 de maio... Soubemos pela boca dos "velhinhos" da tua CART 1746... Queríam-nos claramente acagaçar...
Tenho um longo poema ("Por esse Geba acima"), de que vou reproduzir um excerto, em tua honra e dos teus bravos da CART 1746 que nos abriram alas, quando a gente desembarcou o leste, a malta da CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12), a caminho de Contuboel... LG
Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > c. 1969/70 > Vista aérea (parcial) da tabanca do Xime, onde estava sediada uma unidade de quadrícula... No dia 2 de junho de 1969, era a CART 1746, comandada pelo cap art mil António Vaz.
Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: L.G.]
Por esse rio Geba acima...
(...) E aqui estás, neste caixote flutuante,
sem colete nem salvação,
sem bode expiatório, nem álibi,
sem uma simples palavra de explicação,
sem razão para matar ou morrer,
de morte matada,
de G3 na mão,
porquê eu, porquê tu, meu irmão,
mas com cinco litros de sangue no corpo,
a derramar pela Pátria, se for preciso,
em rega gota a gota,
ou até em bica aberta,
que a Pátria não se discute,
a Pátria, a Fátria ou a Mátria
que te pariu,
meu safado,
meu javardo,
a caminho da guerra,
que não sabes nem onde começa nem onde acaba.
E sobretudo quando acaba…
Recapitulas:
–Tite, Porto Gole, Ponta Varela…
E registas no teu caderninho
os primeiros termos da gíria de caserna:
embrulhanço, turras, gosse-gosse, djubi
mancarra, bunda, macaréu,
bolanha, irã, jagudi…
E eis que chegas agora,
ao primeiro porto, seguro,
um porto fluvial,
num sítio chamado Xime,
sem qualquer tabuleta que o identifique,
um pontão acostável,
meia dúzia de estacas no lodo,
caranguejos de um só pata
devorando a íris dos pobres dos mortos
arrastados pela fúria do macaréu,
uma guarnição militar a nível de companhia
com um destacamento no Enxalé,
do outro lado do rio e da bolanha.
Aqui começa o Geba Estreito, o Xaianga,
avisam-te,
e mais à frente é o Mato Cão,
que irás conhecer como a palma da tua mão,
um leito de rio incerto, sinuoso, viscoso,
como o corpo de uma serpente,
em que ficas ao alcance de uma granada de mão,
nas curvas da morte…
– Xime, meu amor! –
nunca o dirás
em nenhum aerograma,
porquê eu, porquê tu, meu irmão,
mas com cinco litros de sangue no corpo,
a derramar pela Pátria, se for preciso,
em rega gota a gota,
ou até em bica aberta,
que a Pátria não se discute,
a Pátria, a Fátria ou a Mátria
que te pariu,
meu safado,
meu javardo,
a caminho da guerra,
que não sabes nem onde começa nem onde acaba.
E sobretudo quando acaba…
Recapitulas:
–Tite, Porto Gole, Ponta Varela…
E registas no teu caderninho
os primeiros termos da gíria de caserna:
embrulhanço, turras, gosse-gosse, djubi
mancarra, bunda, macaréu,
bolanha, irã, jagudi…
E eis que chegas agora,
ao primeiro porto, seguro,
um porto fluvial,
num sítio chamado Xime,
sem qualquer tabuleta que o identifique,
um pontão acostável,
meia dúzia de estacas no lodo,
caranguejos de um só pata
devorando a íris dos pobres dos mortos
arrastados pela fúria do macaréu,
uma guarnição militar a nível de companhia
com um destacamento no Enxalé,
do outro lado do rio e da bolanha.
Aqui começa o Geba Estreito, o Xaianga,
avisam-te,
e mais à frente é o Mato Cão,
que irás conhecer como a palma da tua mão,
um leito de rio incerto, sinuoso, viscoso,
como o corpo de uma serpente,
em que ficas ao alcance de uma granada de mão,
nas curvas da morte…
– Xime, meu amor! –
nunca o dirás
em nenhum aerograma,
pela simples razão
de que nunca escreverás
nenhum aerograma a ninguém,
o Xime é uma bandeira das cinco quinas ao vento,
descolorida,
esfarrapada,
gente brava, lusitana,
três obuses Krupp, alemães,
de 10 ponto 5,
do tempo da II Guerra Mundial,
silenciosos mas ameaçadores,
meia dúzia de casas de estilo colonial,
de adobe e chapa de zinco,
e mais umas escassas dezenas de cubatas de colmo,
por entre poilões e mangueiros,
ruínas dum antigo posto administrativo,
restos de uma comunidade mandinga,
gente que não é de inteira confiança,
dir-te-ão mais tarde os teus soldados fulas,
vestígios de um decadente entreposto comercial,
cercados de holofotes,
arame farpado,
espaldões,
valas,
abrigos,
a estrada cortando ao meio a tabanca e o aquartelamento,
dois irmãos siameses condenados a viver e a morrer juntos…
– Bem vindos, piras,
camaradas,
amigos,
ao primeiro dia do inferno
que vai ser o resto das vossas vidas! –
Alguém, um velhinho, cacimbado,
da CART 1746,
apanhado do clima,
desgraçado,
que ouves com temor e reverência,
escreveu numa daquelas paredes de adobe,
desboroadas,
de cores desbotadas…
– Ah! Como tudo isto é tão triste, meu Deus!–
Duvido que tenhas dito Meu Deus!,
como não dirias turras,
que aos vinte e dois anos,
não evocavas o nome de Deus em vão,
e sentias-te órfão,
sem pai nem mãe no mundo,
nem tinhas carta de condução,
nem bússola,
nem nenhuma ideia definitiva sobre o sentido da vida
mas achavas ainda romântica a ideia
daquela maldita guerrilha…
E ali vais tu,
meio acagaçado, meio curioso,
disposto a salvar o coiro, o corpo,
mesmo perdendo a alma,
alinhado ma non troppo,
desformatado,
violentado na tua consciência,
o quico bem enterrado até às orelhas,
entre filas de velhinhos, brancos e pretos,
de lenços garridos ao pescoço,
com ar de fadistas,
a palhinha de capim ao canto da boca,
como o estereótipo do chulo do Bairro Alto,
fingindo fazer um cordão de segurança no mato,
até à famigerada bolanha de Madina Colhido,
a caminho de Bambadinca,
a próxima paragem (...)
Luís Graça - Por esse rio Geba acima [excerto],
poema inédito,
v8 23 mai 2014
_______________
Nota do editor:
Último poste da série > 27 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13199: Manuscrito(s) (Luís Graça):(29): "A boda e a baile mandado... não vás sem ser convidado"... E os bailes que organizávamos, na tabanca do Bataclã, nos intervalos da guerra ?
de que nunca escreverás
nenhum aerograma a ninguém,
o Xime é uma bandeira das cinco quinas ao vento,
descolorida,
esfarrapada,
gente brava, lusitana,
três obuses Krupp, alemães,
de 10 ponto 5,
do tempo da II Guerra Mundial,
silenciosos mas ameaçadores,
meia dúzia de casas de estilo colonial,
de adobe e chapa de zinco,
e mais umas escassas dezenas de cubatas de colmo,
por entre poilões e mangueiros,
ruínas dum antigo posto administrativo,
restos de uma comunidade mandinga,
gente que não é de inteira confiança,
dir-te-ão mais tarde os teus soldados fulas,
vestígios de um decadente entreposto comercial,
cercados de holofotes,
arame farpado,
espaldões,
valas,
abrigos,
a estrada cortando ao meio a tabanca e o aquartelamento,
dois irmãos siameses condenados a viver e a morrer juntos…
– Bem vindos, piras,
camaradas,
amigos,
ao primeiro dia do inferno
que vai ser o resto das vossas vidas! –
Alguém, um velhinho, cacimbado,
da CART 1746,
apanhado do clima,
desgraçado,
que ouves com temor e reverência,
escreveu numa daquelas paredes de adobe,
desboroadas,
de cores desbotadas…
– Ah! Como tudo isto é tão triste, meu Deus!–
Duvido que tenhas dito Meu Deus!,
como não dirias turras,
que aos vinte e dois anos,
não evocavas o nome de Deus em vão,
e sentias-te órfão,
sem pai nem mãe no mundo,
nem tinhas carta de condução,
nem bússola,
nem nenhuma ideia definitiva sobre o sentido da vida
mas achavas ainda romântica a ideia
daquela maldita guerrilha…
E ali vais tu,
meio acagaçado, meio curioso,
disposto a salvar o coiro, o corpo,
mesmo perdendo a alma,
alinhado ma non troppo,
desformatado,
violentado na tua consciência,
o quico bem enterrado até às orelhas,
entre filas de velhinhos, brancos e pretos,
de lenços garridos ao pescoço,
com ar de fadistas,
a palhinha de capim ao canto da boca,
como o estereótipo do chulo do Bairro Alto,
fingindo fazer um cordão de segurança no mato,
até à famigerada bolanha de Madina Colhido,
a caminho de Bambadinca,
a próxima paragem (...)
Luís Graça - Por esse rio Geba acima [excerto],
poema inédito,
v8 23 mai 2014
_______________
Nota do editor:
Último poste da série > 27 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13199: Manuscrito(s) (Luís Graça):(29): "A boda e a baile mandado... não vás sem ser convidado"... E os bailes que organizávamos, na tabanca do Bataclã, nos intervalos da guerra ?