[o nosso "Bilocas" de Bambadinca, grande amigo dos velhinhos da CCAÇ 12, eu, o Tony Levezinho, o Humberto Reis, o Gabriel Gonçalves, entre outros; ex-alf mil, contabilidade e administração, CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/72; e também um dos fundadores do grupo musical Toque de Caixa; vive na Maia; publicou recentemente o Diário dos Caminhos de Santiago, Porto, 2013]
Caro Luis :
Em anexo, segue o texto digital da expedição à Guiné (e não só).
Datando o evento : 26 de Dezembro 2013 a 9 de Janeiro 2014, passando por Portugal, Espanha, Marrocos, Sahara Ocidental, Mauritânia, Guiné-Bissau, Gâmbia e Senegal.
Enviarei depois algumas fotos que possam "engalanar" o texto.
Grande abraço
Bilocas
PS - A passagem pela Guiné foi - não o escondo - um dos motivos maiores que me trouxeram a esta expedição [, do Dakar Desert Challenge]. E a aventura, que sempre me estimula. A oportunidade de rever amigos e voltar a um território onde, por força da guerra, gastei dois anos da minha juventude, tornavam esta jornada mais que aliciante.
Abílio Machado, foto atual |
por Abílio Machado
[, integrado na 2ª edição do Dakar Desert Challenge: Coruche, Marrakech, Bissau, Dakar: 26 de dezembro de 2013- 9 de janeiro de 2014 ] (*)
Fotos (e legendas): © Hugo Costa (2006). Todos os direitos reservados. Como o Abílio Machado não nos mandou as fotos a tempo, usamos as da Expedição Porto-Bissau, realizada em abril de 2006, por Xico Allen e A. Marques Lopes. [Edição e legendagem complementar: L.G.].
A expectativa era alta, largos os horizontes, imensa a vontade de partir e rasgar o desconhecido… O jeep, um Land-Rover robusto e fogoso, artilhado e armado para todos os Bojadores, quase intimidava o neófito que mal adivinhava as aventuras que o esperavam. Não fora a carga humanitária que o trotamontes carregava - o que lhe dava um ar quase humano - e o secreto desejo de retornar a um país onde gastara dois dos seus jovens anos, o pobre estreante destas descobertas teria arrepiado caminho na sua decisão.
Partimos … a chuva molhava uma noite, escura como breu, que exigia ao condutor do Land todos os sentidos alerta. Assim melhor sentíamos as ânsias e o temor dos velhos marinheiros de antanho que nos revelaram o mundo.
Revigorados por três horas de sono em Coruche (*) - era o prenúncio das vigílias que nos esperavam - rumamos a Tarifa, porta aberta para Tânger e o exótico de Marrocos.
Nada nos tolhia o entusiasmo, mesmo os dois furos com que o primeiro dia nos recebeu. Se mal despertos íamos, foi-se-nos o sono : nunca pensei que fossem tão pesados os pneus de um jeep. Esgotamos na primeira etapa a nossa dotação de furos: nem os mais pedregosos tracks do deserto fizeram a mais pequena mossa aos neumáticos do "cavalinho". ("Cavalinho" era o nome com que eu afagava o Land nos apertos das areias ou dos trilhos mais rugosos).
Ainda tonto das novidades, de tudo querer ver e saber, de tudo apreender (o que é um “erg”, oued é djelabha, xocram…), vês-te no turbilhão da Praça Jemaa el Fna, mendigos, serpentes, Marraquexe recebe-te com um chá de menta que te aquieta a alma. A alma perde-se-te nos labirintos da medina, entre tapetes, especiarias, babuchas, fezs, ferragens e frutos secos.
um rio?,
Agadir é já ali, ali é já o dia seguinte, o ”cavalinho” afeito às distâncias nem arfava, arfávamos nós de fome. Num descampado à face da estrada entrava pela janela um aroma conhecido : peixe grelhado. Mesmo a calhar.
Sondamos o peixe e o menu : sardinhas assadas sobre pão marroquino e cebola crua. Tudo sobre um rectângulo de papel, pratos não havia, talheres também não, nem intérprete. O preço apelativo : 5 sardinhas, 1 euro. Será que entendi bem? Não será ao invés, 1 sardinha cinco euros?
Abancamos. Gordas, grávidas, pediam-nos que as comêssemos. Comemos. O ar de satisfação que os marroquinos exibiam estendeu-se à mesa dos portugueses. As sardinhas estavam - se o usasse - de se tirar o chapéu, um regalo! Arrematamos com um queijo de Serpa e bolos artesanais. E tangerinas de Marraquexe. Um manjar de Califa.
Não houve refeição que melhor nos soubesse : quase grávidos, sonolentos fomo-nos aos jeeps.
O vale-oásis, mais te fascina que surpreende, sabes que o deserto tem seus segredos, mal esperas e um oásis abre-se para ti ao virar da duna, não há coisa que mais deleite tuaregs e camelos.
Este foi lugar aprazível - fácil é imaginá-lo - para os ocupantes de Fort Bou Jerif que lhe fica sobranceiro, os soldados da Legião Estrangeira [Francesa] que o ocuparam durante anos, não nós que nele pernoitamos uma noite, uma noite limpa, estrelada e de estrelas tão brilhantes que as julgávamos ao alcance da mão.
O deleite dos olhos trouxe-nos o sacrifício do corpo : o briefing do dia sinalizava a passagem na Praia Branca e advertia para a hora da praia-mar, de olhar o oásis, esquecemos o detalhe, enchia a maré quando desembocamos na praia, paisagem de sonho, areia branca mas perigosa, como certas mulheres, fofas mas movediças, ao fim da praia contamos cinco horas para fazer 87 kms, coisa - amigos - ao alcance de um bom maratonista, digo-vos eu.
Atascamos, desatascamos, ajudamos, partilhamos, suamos, cervejamos, mais fácil é escrevê-lo que sofrê-lo.
A praia termina na foz do Oued Aoerora, subimo-lo e como nós, deslumbrados pela beleza, cáfilas de camelos que, na pouca água do rio, matavam sedes de semanas.
Fotos com os pastores, até que alguém grita, ala que se faz tarde!, chegaremos a Smara de noite. Arrancamos, pressurosos… Sustém a marcha, "cavalinho", a noite vem, eu sei, mas deixa que uma outra vez deleite os olhos ao pôr do sol. Há muitos, sabemos, e de vários cambiantes, mas morrer sem um pôr de sol no deserto é morrer cego, cego não morrerei, eu vi o sol pondo-se sobre o deserto de Smara.
Smara é já no Sahara Ocidental, cidade rodeada de quartéis, tantos são que se julga a cidade ela mesma aquartelada, militares nas ruas, desarmados mas visíveis, como visíveis são algumas mudanças : não nas mulheres, que trajam o tradicional, mas nos homens, como se nos dissessem, sou do Sahara Ocidental, como ocidental visto.
Muda o deserto também, uns taludes de terra acompanham os trilhos que fazemos, muros contra a Frente Polisário, dizem-nos, lemos que este é território em disputa, o povo sarauhi reclama autonomia.
Autónomo, não, não falo do Alberto João!, autónomo foi o nosso jantar. Porquê? - dirão. Vejamos : num lado se compra a carne, noutro se cozinha. Assim mesmo : vai-se ao talho e compra-se 1 kg de bifes e costeletas; vai-se ao restaurante a grelhar e comer. Duas operações, autónomas como as nossas autonomias, mas baratas : 1 kg de carne, 10 euros.
Revigorados por três horas de sono em Coruche (*) - era o prenúncio das vigílias que nos esperavam - rumamos a Tarifa, porta aberta para Tânger e o exótico de Marrocos.
Porto-Bissau... 6 de Abril de 2016...Dia 2, Marrocos, Marraquexe: gare ferroviária.Foto: © Hugo Costa (2006)legenda |
Ainda tonto das novidades, de tudo querer ver e saber, de tudo apreender (o que é um “erg”, oued é djelabha, xocram…), vês-te no turbilhão da Praça Jemaa el Fna, mendigos, serpentes, Marraquexe recebe-te com um chá de menta que te aquieta a alma. A alma perde-se-te nos labirintos da medina, entre tapetes, especiarias, babuchas, fezs, ferragens e frutos secos.
um rio?,
Agadir é já ali, ali é já o dia seguinte, o ”cavalinho” afeito às distâncias nem arfava, arfávamos nós de fome. Num descampado à face da estrada entrava pela janela um aroma conhecido : peixe grelhado. Mesmo a calhar.
Sondamos o peixe e o menu : sardinhas assadas sobre pão marroquino e cebola crua. Tudo sobre um rectângulo de papel, pratos não havia, talheres também não, nem intérprete. O preço apelativo : 5 sardinhas, 1 euro. Será que entendi bem? Não será ao invés, 1 sardinha cinco euros?
Porto-Bissau... 7 de Abril de 2016...Dia 3, Marrocos: a caminho de Tânger...o Atlas ao fundo Foto: © Hugo Costa (2006). |
Não houve refeição que melhor nos soubesse : quase grávidos, sonolentos fomo-nos aos jeeps.
O vale-oásis, mais te fascina que surpreende, sabes que o deserto tem seus segredos, mal esperas e um oásis abre-se para ti ao virar da duna, não há coisa que mais deleite tuaregs e camelos.
Adicionar Porto-Bissau... 8 de Abril de 2016...Dia 4, Sara Ocidental: a caminho de Tantan - Roc Chico, a 73 km de Tarfaya Foto: © Hugo Costa (2006).legenda |
O deleite dos olhos trouxe-nos o sacrifício do corpo : o briefing do dia sinalizava a passagem na Praia Branca e advertia para a hora da praia-mar, de olhar o oásis, esquecemos o detalhe, enchia a maré quando desembocamos na praia, paisagem de sonho, areia branca mas perigosa, como certas mulheres, fofas mas movediças, ao fim da praia contamos cinco horas para fazer 87 kms, coisa - amigos - ao alcance de um bom maratonista, digo-vos eu.
Atascamos, desatascamos, ajudamos, partilhamos, suamos, cervejamos, mais fácil é escrevê-lo que sofrê-lo.
A praia termina na foz do Oued Aoerora, subimo-lo e como nós, deslumbrados pela beleza, cáfilas de camelos que, na pouca água do rio, matavam sedes de semanas.
Porto-Bissau... 9 de abril de 2016...Dia 5, Roc Chico a Nouakchott, capital da Mauritânia... Um dos maiores comboios do mundo Foto: © Hugo Costa (2006) |
Smara é já no Sahara Ocidental, cidade rodeada de quartéis, tantos são que se julga a cidade ela mesma aquartelada, militares nas ruas, desarmados mas visíveis, como visíveis são algumas mudanças : não nas mulheres, que trajam o tradicional, mas nos homens, como se nos dissessem, sou do Sahara Ocidental, como ocidental visto.
AdicionarPorto-Bissau... 9 de abril de 2016...Dia 5, Roc Chico a Nouakchott, capital da Mauritânia... O comboio... Foto: © Hugo Costa (2006) legenda |
Muda o deserto também, uns taludes de terra acompanham os trilhos que fazemos, muros contra a Frente Polisário, dizem-nos, lemos que este é território em disputa, o povo sarauhi reclama autonomia.
Autónomo, não, não falo do Alberto João!, autónomo foi o nosso jantar. Porquê? - dirão. Vejamos : num lado se compra a carne, noutro se cozinha. Assim mesmo : vai-se ao talho e compra-se 1 kg de bifes e costeletas; vai-se ao restaurante a grelhar e comer. Duas operações, autónomas como as nossas autonomias, mas baratas : 1 kg de carne, 10 euros.
Para os ecónomos, aí vai : 5 sardinhas 1 €, 1 kg de carne 10 €, tagine de borrego 5 €, 1 kg de tangerinas 40 cents, 1 djelabha 15 €, 3 gorros 60 cents, carpete de lã 60 €, a mesma de seda 125 €, 2 punhais 7 €, a dormida foi em quarto duplo Hotel Amine, Smara, com banho privativo e cilindro prestes a rebentar 25 €, para compra e venda de acções direi que 10 dirhans 1 €, 350 oughias cotam-se a 1 €, o franco cfa está cotado a 0,650 do €, cotação de Wall Street acabadinha de abrir, 14 h na Euronext.
Montamos a tenda. Era dia de acampamento, era noite, o dia já se fora e com ele as primeiras miragens : são como as bruxas : no me creo en brujas, mas que las hay, las hay, direi em português : sei que não existem, mas que as vi, vi.
Lagos, largos de água, ao longe, que o deserto, uns metros à frente, esconde.
O deserto dá, o deserto o tira, o deserto é todo ele uma miragem, vasta, bela, um horizonte infindo de fantasia e ilusões.
No brinde da meia-noite desejámo-nos fantasia e sonhos, também saúde e acções, das boas …Hoje é a passagem de ano : 2014 entra pé ante pé, surpreende-nos no deserto, belo mas inóspito e frio, um cozido de bacalhau com grão e batatas aquece-nos o corpo, à alma aquece-a um bagaço odoroso, perfumo o café, repito, nem assim a noite será mais quente, pior será a manhã, negativos os graus, no lavar da loiça caem-nos os dedos, de tão frias logo cairão as mãos. Retorno à infância, não retenho da minha vida momentos de tanto frio, o velho professor esperava que as mãos nos aquecessem para iniciar os trabalhos.
Passamos o trópico de Câncer, um tronco de madeira, artisticamente esculpido, assinala o ponto. Um dia passarei, sou Capricórnio - passaremos - o outro, não nos negue a vida vontade para tal feito. Alguém faz anos na caravana.
Porto-Bissau... 9 de abril de 2016...Dia 5, Roc Chico a Nouakchott, capital da Mauritânia... Sarauís... Foto: © Hugo Costa (2006)r legenda |
Um almoço no deserto. Lembro o filme de Bertolucci, “Um chã no deserto”. Se de italianos falamos, em italiano comemos : spaghetti alla bolognese.
Resgatamos do Land mesas e cadeiras, fogão e panela, talheres e guardanapos, o deserto não nos verá comer à mão, isto não são sardinhas marroquinas.
Abeiramo-nos de uma acácia-abrigo, alguém, os animais comendo ou os homens rasgando, abriu uma entrada para o interior da acácia, junto dela é visível a estada de animais e humanos, um bebedouro perto indica-a como poiso de descanso e alimento. Comemos, bem. Fruimos, melhor. Não reservará a vida muitos momentos iguais, gozemo-los. Gozamos.
Em Dakhla [, Villa Cisneros, no período colonail espanhol,] estás em casa, tens o mar e o vento, o surf, o wind, o kite, a cidade recebe-te na ponta de uma península estreita que, afoita, rasga as entranhas do mar adentro, 40 kms de terra que a noite te esconde, adivinhas o mar de um e outro lado, em Dakhla, capital do Sahara Ocidental, podes ser dakhliano, no ocidente estás. Tanto mar, peixe tem, vamos ao peixe, que a fome aperta.
O Samarcanda - nome mítico para outros povos - desdobra-nos um menu variado, não lhe damos atenção, sabemos ao que vamos : um misto de peixes vários, sobre o qual repousam duas pequenas lagostas dissecadas. Como tuaregs esfomeados, lançamo-nos aos bichos, trucidamo-los, na travessa restam umas tristes folhas de alface, um pitéu para as ovelhas, o que a uns abunda a outros falta, é assim o mundo, mas bem não está…
Aos curiosos ou especuladores : 4 refeições 170 dirhans. Abençoamos o Samarcanda e prometemos retornar. Cumprido foi.
Como as miragens, afirmo sem receio de contradita que as terras de ninguém existem, e, sendo embora de ninguém, é certo que lá vive gente, vive e prospera.
Venham comigo. Mas sem pressas. Vamos passar uma fronteira e as fronteiras fizeram-se para que o people espere, canse, desista e não passe além…
Ou caia de sono, morra de fome ou de tédio… Para isso os estados têm um tirano a seu mando : a burocracia. Despótica, autoritária, inexorável, definitiva… Irónico, o bicho homem : quanto mais pobre é, mais predador se torna.
É assim nas fronteiras de África. E nas fronteiras de todos os países onde à pobreza juntas o atraso, o subdesenvolvimento, o analfabetismo…
Se a isto acrescentares uma pitada de religião, tens o panorama que as notícias diariamente te dão do mundo : radicalismos políticos, fanatismos religiosos…
- Maintenant, on va prier!
Eram duas da tarde. Os funcionários da alfândega, na fronteira da Mauritânia, não intervalam para comer mas para rezar, e entre abluções - passam água pelas mãos, pela cara, pelas orelhas, pelos braços, pelos pés, entre os dedos dos pés, também no mindinho - e orações, passou meia hora, a fila engrossou e estendeu-se, o ajudante prepara aos senhores da douane um chá de menta no fim da reza. Sem pressas.
Porto-Bissau... 9 de abril de 2016...Dia 5, Roc Chico a Nouakchott, capital da Mauritânia... Foto: © Hugo Costa (2006) |
Vamos, é a nossa vez.
Passamos a fronteira. O que temos à frente é um terreno escalavrado, pedras salientes, agressivas, até o mais corpulento jeep tem de pisar com cuidado não vá criar calos nos pneus : é a terra de ninguém, zona-tampão, espaço com 4 kms de largura imposto pela ONU, para que os vizinhos desavindos, Marrocos e Mauritânia, só se vejam ao longe, assim as mulheres de um e outro lado não se puxam os cabelos nem os homens as armas. O Land pisa lento, cauteloso, olha pensativo as carcaças ferrugentas, carros esventrados, pneus velhos, capots abertos, enfim, corpos mortos a cada lado do estradão, o nome é um favor meu!
Mas há vida aqui : junto à parte marroquina, carros novos, usados, marcas francesas a maior parte, não sei, não quero saber, recuso-me a saber o que fazem os seus donos, sentados, alheados, esperando o quê em terra de ninguém…
Vendem, compram, cambiam, traficam - diz-me o jeep, vai por mim que já sou velho nestas andanças, aqui é a 2ª vez que passo.
Ao Land não o contrario, é ele que nos leva, se lhe dá uma birra ainda nos deixa em terra, mas não é birrento o cavalinho, um trabalhar suave que deixaria dormir não fosse o acidentado dos tracks, a suspensão poupa-nos o rabo a cada solavanco…
Passamos a via férrea - aqui prestamos a nossa homenagem - do comboio mais longo e mais lento do mundo : carruagens que podem estender-se por 3 kms, 45 minutos de lentidão a passa…a…a…ar. Num mundo cada vez mais apressado, o comboio da Mauritânia - transporta minério do interior para o porto de Nouadhibou - ensina-nos a virtude da espera e obriga-nos à reflexão do que persegue o homem com tal sofreguidão…
Pelo deserto da Mauritânia, uma voz, como surgida do mais fundo da terra, embalava os ares, um
chamado de acasalamento, camelos e ovelhas levantavam os narizes, não era ainda o tempo de procriar :
Vem viver a vida, amor
Que o tempo que passou
Não volta, não.
Sonhos que o tempo apagou
Mas para nós ficou
Esta canção.
O condutor do Land espantava o sono e, romântico mas não trôpego, lembrava os primeiros amores. Fugiam camelos e pastores, as ovelhas protegiam as crias…
O Land, solidário, parou…
- Algum problema?
- No. Han visto uns amigos atras, un Toyota parado…
- No, nada - disse o cavalinho.
O Land não quer saber de Toyotas, e se os vê, com risco nosso, ignora-os.
Tem sido assim desde o início, a cada passo rosna, é um deles que nos passa, ri-se-lhe o motor quando os deixa para trás.
- Podemos seguir con vosotros…
- Claro, vamonos… diz o condutor do Land, mirando a espanhola.
Eram catalães, um catalão e uma catalã.
O dia bafeja-nos com um trilho ameno e uma passagem pela praia.
Ao longe, aldeias de pescadores e, poisados no mar, cansados da faina, os mesmos barcos que cruzavam o mar da Póvoa e a minha infância : a vela latina enfunava ao vento. E pelicanos, cansados também.
O mar convidava a um banho azul, tão azul era a água.
Mapa dp Parque Nacionao do Banco de Arguim (**)... Imagem do domínio público.
Fonte: Cortesia de Wikimedia Commons
Mas algo nos intimidava : a Maité - o marido, Tomás - não era Eva, nem nós Adão, o decoro exigia calções que nenhum de nós tinha. Caberia ao Tomás a decisão.
- En calzoncillos, amigos…
- Em cuecas, pois seja…
Todos trazíamos cuecas, felizmente. A Maité acompanhou-nos no gesto, os homens tiraram as calças, pois ela tiraria a camisa…
convidativa, cálida… Como lembrar que estamos em Janeiro? Demos umas braçadas a espantar a preguiça.
Alá, lá onde mora, olhando a praia, três machos em cuecas, uma mulher em soutien :
- Então, não querem lá ver… Estes pensam estar no paraíso terreal…
E era, amigos, palavra de Alá! era o paraíso terreal, estivemos no Éden naquela tarde… A praia - 50 kms - integrava um parque natural, o Banc d’Arguin, e foram garças, pelicanos, gaivotas, barcos, pescadores, até uma praga de gafanhotos, esvoaçavam à nossa frente, faziam negaças, brincavam com o cavalinho.
Era noite, à chegada a Nouakchott, a capital mauritana.
(Continua)
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Notas do editor:
(*) 28 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12214: Ser solidário (153): Expedição solidária Dakar Desert Challenge arranca de Coruche, em 26/12/2013, e apoia a AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau. Inscrições até 31 do corrente.
(**) "Arguim é uma ilha na Baía de Arguim, Mauritânia, costa ocidental de África. Com apenas 12 km² de área, a ilha é alongada, medindo cerca de 6 km de comprido por 2 km de largura média. Está situada a 12 km da costa, dela separada por canais arenosos repletos de recifes e de bancos de areia que se movem com as correntes.
"A ilha faz parte do Arquipélago do Golfo de Arguim e está incluída no Parque Nacional do Banco de Arguim, uma vasta zona dedicada à protecção da natureza, classificada pela UNESCO como património mundial graças à sua importância como local de invernada de aves aquáticas.
"Nela localizou-se a primeira feitoria portuguesa na costa ocidental africana, a partir do qual os portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, porgoma-arábica, ouro e escravos, que traziam para a Europa.
"A ilha foi sucessivamente ocupada por portugueses [de 1445 a 1633], holandeses, ingleses, prussianos e franceses, até ser abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso a navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e extensos recifes que a rodeiam. Na actualidade a ilha encontra-se quase deserta, com excepção da pequena povoação de Agadir, na sua costa oriental, habitada por cerca de uma centena de pescadores-recolectores da etnia Imraguen." (Fonte: Wikipedia)