
Queridos amigos,
Sem nenhum desprimor para tudo quanto nos conta sobre Bedanda e Aldeia Formosa, é na sua tormentosa estadia em Guidage que João Trindade redige uma das mais pungentes peças literárias de toda a guerra, doravante deve ser lido e cotejado com a Crónica dos Dias de Guidage, o pungente relato de Salgueiro Maia, que por ali cirandou naquele cenário dantesco.
João Trindade não tinha mãos a medir, foram largas dezenas de flagelações, inúmeros feridos, mortos para os quais foi imperativo fazer um cemitério de ocasião, tal era a ameaça da cólera. Como numa oratória, a sua voz, as suas confissões íntimas pairam sobre aquela atmosfera que ele partilha, onde ganha a possível distância e depois volta ao seu mister, salvar vidas, como aquela desgraçada mulher que perdeu as pernas e que ele veio reencontrar em Bissau, hossanas a quem sobreviveu àquele teatro de horrores.
E estamos a seu lado quando as lágrimas lhe saltam perante aqueles jovens mortos, aquelas lágrimas eram a mais afetuosa das condecorações por quem dá a vida e dela é ceifado, sabe Deus porquê.
Um abraço do
Mário
O médico que presenciou os dias infernais de Guidage (2)
Beja Santos
As páginas capitais desta literatura memorial de João Trindade prendem-se com a sua presença em Guidage, em maio de 1973. Ele já nos contou a sua ida a Mafra, a sua preparação descolorida em Lisboa, estava no Hospital Militar quando recebeu guia de marcha para a Guiné, desembarca e vai para Bedanda, presta serviço também no Quebo e quando é transferido para Bissau lembra as suas consultas em Bubaque e no Hospital Civil de Bissau. É neste entrementes que o seu livro “Dias Sem Nome, Histórias soltas de um médico na guerra da Guiné”, por João Trindade, By the Book, 2019, caminha para uma atmosfera apocalítica, Guidage. Viaja até Binta, segue-se uma coluna, havia que passar a bolanha de Cufeu para chegar à povoação sitiada. Estão a caminho, ouvem-se os bombardeamentos.
“O cenário passava em câmara lenta com partitura sonora monótona e por vezes assustadora. O sol já nos acompanhava havia longas horas, a crescer, a subir, a tornar insuportável a roupa colada ao corpo.
Começámos, entretanto, a notar um cheiro esquisito, depois fétido, logo a seguir nauseabundo. O lenço para nos proteger a boca do pó serviu também para nos aliviar, um pouco, do mau cheiro. Estávamos perto da bolanha onde duas ou três colunas tinham sido atacadas, tiveram de regressar e deixaram alguns mortos. Esses mesmos que agora víamos numa clareira da mata, disformes, cobertos de insetos, inchados, irreconhecíveis e fonte do terrível odor da morte que os ceifara havia dias”.
Os sapadores não têm mãos a medir, progride-se sobre uma terrível tensão até que se dá o encontro com os fuzileiros. São recebidos em Guidage com a fuzilaria do PAIGC. O médico surpreende-se com o agitado comandante da companhia sediada em Guidage, completamente desnorteado, precisou de ser acalmado.
“Pensei em tanta coisa antes de adormecer! Pensei que o 13 de maio de 1973 poderia vir a ser o dia de uma fé renascida, pensei nas duas filhas que queria ver crescer, na minha ação e postura como médico, de auxílio, abnegação, entrega, sem desfalecimento, de apoio na desventura dos menos afortunados. Acordado, enfrentei o inevitável; o dia seguinte. Nasceu então um novo dia e com ele o início de uma outra aventura longa e difícil de mais dezassete dias”.
O que João Trindade nos transmite são os sobressaltos de viver numa atmosfera de cerco, rodeado de gente exausta, feridos de todas as qualidades e mortos que aguardam urnas. Fala dos morteiros, do silêncio ofegante, do pânico instalado dentro daquele arame farpado.
“Guidage, só no período em que lá estive, foi flagelada quarenta e duas vezes. Tornou-se um verdadeiro campo de desesperos e de terrores. Lembro episódios dispersos, indefinidos, desarrumados. Um dos quais que ainda perdura é o daquela mulher que me trouxeram da tabanca sem as duas pernas. Foi ao mato, inadvertidamente, contrariando ordens e conselhos, a buscar alimentos da horta para o seu homem e seus filhos. Pisou uma mina. Não morreu. Embrulhada em panos coloridos de estampas e sangue, ao colo do marido, com cara de ódio, gemia em sons contínuos e lancinantes. Não gritava, gemia apenas. E os seus gemidos faziam as nossas almas gemerem também. No rudimentar posto médico sedei-a com o que tinha na farmácia, pusemos um soro glicosado a correr rápido e limpámos, demoradamente, os coutos cheios de terra, pequenas esquírolas ósseas e folhas de arbustos que serviram do primeiro penso que quem a socorreu decidiu utilizar (…) Vim a encontrá-la mais tarde no Hospital Civil, operada a preceito, numa cama de enfermaria, tendo na face um sorriso a meia haste. Como se pode esquecer isto?”.
É um médico que não tem mãos a medir, os feridos e mortos não paravam de aumentar, as dificuldades do socorro médico eram enormes e indescritíveis. “Não havia antibióticos nem analgésicos, esgotaram-se em poucos dias, não havia material esterilizado nem processo de o esterilizar. Não havia caixões, não havia madeira nem solda para os fazer e fechar, pelo que se criou um necrotério num pequeno armazém existente junto ao arame farpado. Tratámos cada cadáver com o que foi possível para minorar os cheiros da degradação. Mais não podíamos oferecer àqueles bravos rapazes na flor da vida. As nossas lágrimas foram as suas primeiras condecorações”.
É neste contexto que surge a notícia da operação “Ametista Real”.
Que lhe ficou vincada na memória:
“Recordo, com uma imagem bem nítida, a entrada pela porta de armas do quartel de Guidage, dos militares regressando da operação. Arrastando pernas e arma, cabeça caída, olhos no chão, passo lento de exaustão. A cada um, o seu comandante dizia palavras de orgulho e de estímulo. Fui chamado para junto das forças de comando para assistir à entrada dos soldados. Mas um deles vinha de cabeça bem erguida, orgulho estampado na cara, passo de militar convicto. E o seu comandante, chamando-o.
- Foste um herói Mamadu Baldé e, com a concordância e autorização do nosso Comandante, promovo-te, neste momento, pela tua ação corajosa e decisiva em combate, a Alferes do Exército Português.
E, pedindo-me licença, retirou-me os meus galões e colocou-os nos ombros do seu guerreiro”.
João Trindade não esquece o apoio dado pela Companhia de Comandos 121:
“Tiveram baixas, não muitas, mas que demonstraram as duras ações em que estiveram a combater. Recolhi os seus mortos e juntei-os a todos os outros. Um deles, porque entrou com vida no quartel, morreu-me nos braços. Um cheiro fétido exala por toda a Guidage, os riscos à saúde pública são mais do que óbvios, está-se na eminência de uma epidemia de cólera. Construiu-se um cemitério provisório, os paraquedistas deram muita resistência, não queriam deixar os seus camaradas ali enterrados. Desenhámos e localizámos, com azimutes rigorosos, os locais onde cada cadáver foi enterrado com a respetiva identificação.
Embrulhámos cada corpo em mantas de oleado de tendas, sepultámo-los e a cada campa coube uma tosca cruz de madeira. As honras militares, os soldados, respeitosa e comovidamente perfilados e as salvas de tiro da praxe ainda hoje me arrepiam a pele e enchem os olhos de lágrimas”.
Os ataques a Guidage terminaram no fim do mês de maio, João Trindade regressa sobre a proteção dos fuzileiros e paraquedistas, vêm os feridos e os mortos mais recentes. Em Binta embarcam em helicópteros. João Trindade entra esgotado no Hospital Militar 241.
“Fiquei internado dois dias. Chorei lágrimas retidas de sustos e medos interiorizados. Respirei alívios. E rezei. Agora, sim. Lembro-me bem. Rezei e agradeci tudo.
Fiquei a saber, nesta sofrida experiência da minha vida militar, que um homem, cada um de nós, supera tudo e agarra-se à vida quando não pode decidir nem fazer mais nada”.
E regressou à vida hospitalar, recauchutou-se, volta a descrever episódios e peripécias sobre os doentes que lhe chegam em condições deploráveis. E um dia regressa a Lisboa. As suas memórias também passam pelas peripécias no transporte aéreo, pelas amizades feitas.
Obra profusamente ilustrada, a ver se o autor tem a generosidade de nos facultar algumas delas.
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Notas do editor
Poste anterior de 23 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20490: Notas de leitura (1249): “Dias Sem Nome, Histórias soltas de um médico na guerra da Guiné”, por João Trindade; By the Book, edições especiais, 2019 (1) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 27 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20504: Notas de leitura (1250): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (38) (Mário Beja Santos)