1. Em mensagem de 22 de Junho de 2021, o nosso camarada Mário Santos (ex-1.º Cabo Especialista MMA da BA 12, Bissalanca, 1967/69) fala-nos das suas memórias na BA 12 de Bissalanca
MEMÓRIAS DE LUGARES DA GUERRA...
A BASE AÉREA 12 - BISSALANCA
Embora tenha noção de que tudo isto é parte de um passado longínquo, ele será sempre parte intrínseca de todos nós e da nossa história, que perdurará não só enquanto vivermos, mas também para além da vida, consubstanciado nos nossos contos e narrativas. Esse passado sofrido e glorioso, que são pedaços das nossas vidas....
Foi assim, historiando um pouco... que decidi narrar-vos o início atribulado da minha viagem para a Guiné; recordo-me que na escala pela Ilha do Sal, o C-54 H - Skymaster parecia uma lata velha, com o pessoal assustado com a turbulência, a pista transformada em lago e depois o dilúvio, numa terra onde há muitos meses não chovia uma gota.
Ainda recordo o banho de chuveiro no "Hotel abarracado" ... de água salgada... e depois, o arrastar de camas a tentar fugir das goteiras que caíam dos tectos esburacados. Acabei na rua em cuecas a tirar do corpo a água salgada com água da chuva... e a fugir dos percevejos que se passeavam pelos lençóis... e que tinha visto pela primeira vez na vida.
Depois, já no dia seguinte na BA12, quando abriram a porta do avião, aquela sensação de ar rarefeito, desagradávell quente e húmido, bafiento, pegajoso... e o pensamento de que tínhamos chegado a um local amaldiçoado... e tudo isto, aos 18 anos, ainda com a personalidade e experiências de vida apenas na fase de formação.
Alguns dias depois, já na linha da frente da Esquadra de Fiat G-91 onde fui colocado, a famosa 121... tive o bizarro conhecimento de que vários camaradas de outras Esquadras que tinham sido companheiros de Liceu, Escolas Comerciais e Industriais, alguns até colegas de turma nos mesmos estabelecimentos de ensino, eram, pasme-se: Furriéis, Sargentos e Alferes Milicianos.
Alguns de nós com habilitações académicas para Sargentos ou Oficiais, éramos simples 1.°s Cabos... Especialistas...
O clima, quente e húmido, a má qualidade da água, comida e sofriveis instalações, completaram o quadro de tudo com que não sonhávamos ou desejávamos...
As grandes amizades, companheirismo, convivência, solidariedade, cumplicidade, começaram a tomar conta de todos nós... Começámos a perceber que nos 2 anos seguintes, estes eram os valores a que nos teríamos de agarrar para conseguirmos passar pela missão o melhor possível...
A responsabilidade e o espírito de missão foi-se enraizando e pouco tempo passado, já faziam parte do grupo. Aos poucos, fomo-nos familiarizando também com os nossos chefes, que nos introduziram nos procedimentos técnicos de manutenção e apoio de voo. Inspecções, segurança, procedimentos pré e pós voo...
A vida na Guiné não era para ninguém uma pera-doce... contudo a nossa irreverência era uma arma poderosa.
As linhas da frente da BA12, em placa de cimento, chegavam fácilmente por volta do meio-dia, bem acima dos 40° graus centígrados... Não havia sombras, água... e o protector solar ainda não era uma opção.
Eu, e os meus camaradas da Linha dos G-91, tínhamos todos terminado o Liceu ou Escola Técnica e este era o nossa primeira actividade... como especialistas FAP. Todos entre os 18 e 20 anos de idade, com excepção do Chefe de Linha, o 1.° Cabo Especialista R/D Fernando Vilela, que tinha sido nomeado a partir da Linha da Frente dos T-33 na BA2, e era o único já com alguma experiência na manutenção e apoio de voo. Todos os Sargentos, tal como outros 1.°s Cabos mais antigos, permaneciam no "conforto" do hangar onde se efectuavam as inspecções programadas, ou se resolviam reparações mais complexas.
A expectativa dos primeiros voos era enorme, tal como a curiosidade em conhecermos os nossos Aviadores a quem nos dois anos seguintes iríamos dar a nossa imprescindível colaboração...
Não houve qualquer apresentação formal, chegavam de Jeep, vindos das Esquadras, cumprimentavam, fazíamos a inspecção prévia juntos, retirando as cavilhas de segurança do Trem de aterragem, subíamos a escada, eram amarrados à Martin Baker e depois de retiradas as seguranças, estavam prontos para partir...
Foi assim que as minhas rotinas diárias, no G-91, com o Ten Cor Costa Gomes, Capitão Vasquez, Capitão Costa Pereira, Tenentes Vasconcelos, Nico, Balacó e Neves se iniciaram no último trimestre de 1967. Mais tarde, com o decorrer da Comissão, os mais antigos, como o Capitão Costa Pereira e Tenente Vasconcelos, foram respectivamente rendidos pelo Capitão Amílcar Barbosa e Tenente Roxo da Cruz, tal como o Coronel Manuel Diogo Neto, futuro Comandante da Zona Aérea Cabo Verde/Guiné, (CZACVG).
Como tudo na vida, todos nós desenvolvemos personalidades, maneiras de ser e actuar diferentes. Foi assim também relativamente aos nossos Pilotos da Esquadra de Tigres. Havia a classe mais extrovertida e faladora, assim como os economizadoras da palavra, que só diziam o que era absolutamente indispensável...
Os G-91 eram entregues, diáriamente, ao mesmo Mecânico, até por uma questão de responsabilização... Já com os Pilotos creio ser sido diferente, uma vez que chegavam do GO (Grupo Operacional) com missões já atribuídas...
Em boa verdade, começaram a haver preferências de quem dava saída a quem... Nenhum de nós gostava de apanhar o nosso Ten Cor, era antipático, pouco comunicativo e com uma postura de quem pertencia a um outro mundo...
Depois, havia também preconceito com alguns dos Tenentes... Porque eram empertigados, oriundos da AM, um porque se dizia que era de sangue azul e nem sequer olhava a direito para nenhum de nós... outro porque tratava todos os subordinados com afastamento e até algum desprezo... Parecia terem esquecido que estávamos todos envolvidos numa guerra terrível e de que necessitávamos da solidariedade e cooperação de todos. Eram, todavia todos bons Pilotos, apesar da inexistência da experiência de combate.
Eu, cá por mim, tinha preferência por um par de jovens Tenentes, que tinham chegado à Base no mesmo dia que eu, e a quem podia pedir para fazer umas piruetas, ou uma rapada, caso ainda chegássem com algum JP4 no Fuel Collect Tank... (reserva).
No final, direi que foi com grande orgulho e espírito de missão que contribuí para que a actuação da Esquadra de Intervenção Tigres de Bissalanca tivesse sido um sucesso e tivesse contribuído para a protecção dos nossos camaradas do Exército e Marinha. No final, numa guerra assimétrica, estávamos todos dependentes uns dos outros. Quem nos dera ter o poder de fazer rewind ao relógio da vida, e voltarmos todos aos bons tempos da nossa meninice e juventude...
Um lamento sincero por todos os que não foram bafejados pela sorte, e não conseguiram regressar... ou voltaram fisicamente diminuídos.
Grande abraço
Mário Santos
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Nota do editor
Último poste da série de 18 DE MARÇO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22015: FAP (123): Em louvor do ex-fur mil pil av António Galinha Dias e da tenente enfermeira paraquedista Maria Zulmira André Pereira (1931-2010) que fizeram a evacuação Ypsilon do cap cubano Pedro Rodriguez Peralta, em 18 de novembro de 1969, na sequência da Op Jove (Jorge Narciso / Maria Arminda)