Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor, com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belmiro Tavares".]I. Aqui vai, em republicação (*), c0m adaptações, uma das muitas (e boas) histórias, daquelas que nos tocam fundo, contadas pelo Belmiro Tavares , ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66.
O Belmiro Tavares foi Prémio Governador da Guiné (1966), é membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009; é empresário hoteleiro em Lisboa: é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014.
É também autor (em parceria com o nosso saudoso JERO, acrónimo de José Eduardo Reis de Oliveira, 1940-20221) do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675" ( edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp.) (cuja capa se reproduz acima).
Este poste é uma tripla homenagem ao Belmiro Tavares, que hoje faz anos; ao JERO, que nos deixou há um ano atrás, vítima de Covid-19 (em 27 de janeiro de 2021, iria fazer 82 anos se fosse vivo, em 4 do corrente); e ao nosso blogue, que fez 18 anos em 23 do corrente, o blogue que nos tem permitido, aos amigos e camaradas da Guiné, partilhar memórias e afectos.(**)
Honremos também a memória do infortunado fur mil Álvaro Manuel Vilhena Mesquita, natural de Vila Nova de Famalicão, morto por uma mina A/C em 28 de dezembro de 1964, no subsetor de Binta.
Vila Nova de Famalicao > Cemitério local > 8 de julho de 2010 > O Belmiro Tavares e o JERO junto campa do Álvaro Manuel Vilhena Mesquita.
Cortesia do blogue JERO > 12 de julho de 2010 > M 276 - SENTIMENTOS / PARTE UM
(...) O Álvaro morreu na Guerra do Ultramar. Morto em combate em 28 de Dezembro de 1964 na “quadrícula” da sua Companhia na região de Caurbá, a poucos Kms. do aquartelamento de Binta, Norte da Guiné. Nessa altura eu estava por perto pois pertencíamos à mesma “família”. A Companhia de Caçadores 675, então no mato desde Julho de 1964. Ele regressou à sua terra natal para ser sepultado nos primeiros dias de Dezembro de 1965.
Passaram desde essa data fatídica cerca de quarentas e cinco anos. Na minha memória , e ao longo de toda uma vida , o Álvaro continuou – continua – a ser o meu “irmão” dilecto dos tempos da guerra.
O seu irmão Francisco, que conheci fugazmente muitos anos depois da morte do Álvaro, num encontro casual no Hotel D. Carlos, em Lisboa, faleceu agora, com 69 anos, em 1 de Julho corrente no Hospital de Cochin, em París.
Estive presente no seu funeral , na terra da sua naturalidade, em 8 de Julho de 2010. Estive no seu funeral por diversas ordens de razões. Em preito à sua memória, em homenagem à família Vilhena Mesquita e em nome da minha CCaç. 675, onde militou o seu e meu “irmão” Álvaro (...)
"O senhor vai responder-me com toda a verdade:
era o meu filho que vinha naquela urna de chumbo?"
por Belmiro Tavares
1. Como alferes miliciano estive dois anos na Guiné, algures a norte do Cacheu, mais precisamente em Binta, integrado na CCaç 675 uma companhia extraordinária (foi lá e, mais de 40 anos depois, continua a sê-lo cá) que deu “água pela barba a muita gente”.
O nosso comandante era o Capitão Tomé Pinto, hoje Tenente General, um militar fora de série, autenticamente um homem doutra galáxia. Podemos descrevê-lo parafraseando o poeta: “Homem dum só parecer, dum só rosto e duma só fé... d’antes quebrar que torcer”...! É o Homem que sabe ser militar (de que maneira o sabe!) e o Militar que não deixa de ser Homem, qualidades que juntas se acham raramente.
Entre os graduados da companhia havia um furriel miliciano, natural de V. N. Famalicão, de seu nome Álvaro Manuel Vilhena Mesquita o qual é o epicentro dos factos que aqui vão ser contados.
Em fins de Dezembro de 1964 o Mesquita estava de “baixa”; aguardava transporte para o HMP 241 em Bissau.
No dia 28 desse mês, dois grupos de combate (pelotão com morteiro, Breda e LGF – lança granadas foguete, vulgo bazuca) iam fazer uma patrulha para além do limite oeste da nossa zona na margem direita do rio de Buborim, um afluente do Cacheu. O Mesquita pertencia ao 1.º Gr Comb mas estava inoperacional.
A companhia à qual aquela zona pertencia e tinha a incumbência de a patrulhar, estava sediada em Bigene; para ali chegar, teria de passar pela tristemente célebre base de Sambuiá (um mito de inexpugnabilidade que a CCaç 675 se encarregou de fazer desaparecer) que era a base inimiga mais forte do norte da Guiné.
O nosso Capitão decidiu estabelecer no “terreno do vizinho” aquilo a que se chama “uma zona tampão”. Pretendia-se ter o inimigo não só fora da nossa zona mas também bem afastado. Aliás a CCaç 675, dentro da mesma estratégia foi a única companhia que, entre Junho de 1964 e Abril de 1966, “bateu” a Península de Sambuiá como se de “passeio” se tratasse... ou quase.
Nota: aconselhamos a leitura do Cap 26 do livro Golpes de Mão’s, de José Eduardo Reia Oliveira, Fur Mil Enf da CCaç 675. [Foto ca capa, à esquerda]
Voltemos aos carris! Os dois Gr Comb seguiram de viatura durante cerca de 12 km. Quanto se apearam e partiram para o cumprimento da missão, a segurança das viaturas passou a ser feita por alguns (poucos) soldados europeus, alguns soldados africanos e uns tantos milícias.
Entre os militares europeus havia doentes e feridos ligeiros que não necessitavam de cama para se restabelecer. Entre os doentes “leves” estava o fur Vilhena Mesquita, pois a sua doença – não sei qual - não o impedia de andar de camuflado e armado em cima duma viatura. Ele próprio se apresentou voluntariamente para tomar parte na segurança das viaturas. Um alferes comandava esta escolta muito heterogénea, como se depreende.
Quando os dois Gr Comb regressaram às viaturas, iniciou-se a viagem de volta em direcção a Binta. Alguns quilómetros à frente ouviu-se um rebentamento enorme: uma mina anti-carro explodiu estrondosamente debaixo da roda direita traseira, duma das viaturas. Por cima dessa roda seguia o malogrado Mesquita que naquele momento abandonou o mundo dos vivos.
Nota: ver página 181 e seguintes do livro atrás citado.
A primeira viatura era uma GMC e a mina rebentou na roda de trás da 2.ª viatura, um Unimog, o que nos levou a crer que se trataria duma mina telecomandada, o que seria numa novidade na actuação do inimigo.
Era o nosso segundo morto e pela 2.ª vez custeámos a urna própria (de chumbo) para que a família do nosso companheiro pudesse fazer-lhe um funeral condigno e “com o corpo presente”. Fizemos o mesmo também ao nosso 3.º morto, o malogrado soldado Nascimento.
Mais uma vez nestas situações a CCaç 675 foi ímpar; talvez tenham sido poucas as unidades - ou talvez nenhuma – a proceder deste modo... à maneira da CCaç 675.
Neste caso não temos certamente um ”suicida altruísta” mas na verdade o Mesquita – que a terra lhe seja leve – partiu voluntariamente para um “encontro marcado com a morte”.
2. O nosso capitão informou dolorosa e comovidamente os pais do Mesquita sobre o trágico acontecimento.
Eles também receberam, à posteriori, o tal “telegrama seco, brutal, frio, impessoal” a informar que a urna com os restos mortais de seu filho se encontrava no D.G.A. (Depósito Geral de Adidos) na Calçada da Ajuda, [em Lisboa].
[Na foto, à esquerda, o Mesquita, de camuflado, na Guiné, Binta, 1964].
Os familiares enlutados deslocam-se a Lisboa com a Agência Funerária; entram na Unidade Militar, o pai contacta o graduado de serviço, um ordenança é mandado indicar-lhe o local onde se encontra a urna. Havia várias; O soldado procura pelo nome e informa com toda clareza, sem pestanejar:
- É esta! Pode levar!
Mais “seco, brutal, frio, impessoal” nem o telegrama. Só faltou mandar embrulhar!
Devemos, apesar de tudo, ter em conta que se tratava dum soldado talvez pouco letrado, talvez mesmo analfabeto, sem formação nem preparação para tal e que não tinha vivido os horrores da guerra. Não terá sido ele de certeza o único culpado nem até talvez o maior culpado.
Na tropa, naquela época, todos tínhamos de ser “pau para toda a colher” – frequentemente seríamos pau tosco,... demasiado tosco até... Naquela época, na tropa de cá, quantos soldados haveria preparados para informar cabalmente e com humanidade os familiares dos nossos mortos em combate?!
Por cá, naquela época, quem se apercebia e sentia por dentro os pesadelos da guerra? – Os pais, os irmãos, os amigos íntimos dos combatentes e poucos mais! A guerra travava-se muito longe... lá noutro continente.
3. Os pais do Mesquita terão sofrido – sofreram mesmo – a bom sofrer aquela morte absurda (como absurdas são todas as mortes da guerra) e antecipada de seu filho. Eles não eram diferentes dos outros pais! Também eles eram de carne e osso e tinham dentro do peito um coração que sangrou... sangrou muito! Disso temos a certeza!
Naquela altura chegou a Famalicão um combatente vindo da Guiné (creio que seria um cabo) que tinha acabado a comissão. Como muitos combatentes, especialmente os da “guerra de Bissau” ou do “ar condicionado” sabiam tudo à cerca de tudo sem saberem nada de nada e para se impor aos concidadãos inventavam estórias por vezes sem sentido e sem ponta de verdade.
O Pai do Mesquita, profundamente fragilizado pela dor que o atormentava, teve o azar de encontrar (não sabemos como nem por quê) um autêntico charlatão que lhe fez uma narração rocambolesca, malévola e mentirosa dos factos. Inventou e deturpou! Chamando o boi pelo nome: “mentiroso sem escrúpulos”.
[Na foto, à esquerda, o Fur Mil Mesquita, ao lado do Cap Tomé Pinto].
Aproveitou a depressão emocional daquele Pai com o coração desfeito para dar asas à sua imaginação. O cabo em questão terá eventualmente contactado com o Mesquita em Maio ou Junho de 1964 em Bissau.
Este hipotético encontro – se realmente aconteceu – ocorreu antes de irmos para o mato, ou seja seis meses antes da fatíidica morte do Mesquita. Assim sendo o tal cabo não podia saber o quer que fosse à cerca do que, em 28 de Dezembro de 1964, aconteceu nos arredores de Binta.
Este pobre pai acabrunhado e desesperado pela morte dum filho querido, de “mal com a vida” até pela maneira como foi tratado no DGA e por outros motivos que nos ultrapassam... Por tudo isto e talvez muito mais, o Pai do Mesquita, apesar de homem de letras, tornou-se terreno fértil para acreditar na mentira e tê-la-á publicado no Jornal de Famalicão de que era Director e creio que proprietário.
Até onde um coração desesperado, esfrangalhado nos pode conduzir!...
A verdade nua e crua dos factos terá no entanto ficado por contar aos amigos do nosso companheiro Mesquita.
Mais uma vez... que a terra lhe seja leve.
4. Em 1967, creio que em Abril, o companheiro e camarada JERO e o autor destas linhas deslocámo-nos a Valença para assistir ao casamento dum dos seus furrieis.
Por mero acaso (ou propositadamente?) pernoitámos em Famalicão. De manhã pedimos a um taxista que nos conduzisse ao cemitério. Não encontrámos a sepultura do Mesquita.
[Foto à esquerda, o nome do Mesquita, inscrito no mural dos mortos do Ultramar, Forte do Bom Sucesso, Belém , Lisboa].
Pedimos apoio ao taxista que logo nos informou que o Mesquita estava sepultado no cemitério novo e para lá nos levou. Lá estava o sepulcro do Mesquita, bem diferente – para melhor, muito melhor – das demais sepulturas. Lá encontrámos, cravada no mármore a lápide de bronze que os seus companheiros da CCaç 675 lá fizeram chegar, perpetuando a camaradagem e aquela amizade pura, simples, desinteressada que sempre nos uniu e, incorruptível, continua a enlaçar-nos.
Por motivos que não são aqui chamados, tínhamos dúvidas se íamos ou não visitar os pais do Mesquita. Por um lado entendíamos que devíamos visitá-los; por outro sentíamos que não tínhamos o direito de reabrir ou mesmo avivar aquela ferida no peito e na alma daqueles pais que sentiram o filho partir tão novo, tão na flor da idade.
Não estamos (raramente estamos) preparados psicologicamente para ver os nossos pais partir (e isso é o normal); mas um filho partir antes dos pais é a inversão total das leis da vida! Daí a dor ser mais intensa, mais marcante, mais profunda, mais feroz!
A atitude do taxista foi decisiva e nós fomos visitar os pais do nosso companheiro. A mãe apareceu logo. Toda de preto vestida, rosto carregado de pesar, olhos plenos de tristeza, baços, penetrantes. Já tinham decorrido mais de dois anos sobre a morte do filho!...
Conversámos durante breves instantes. A senhora aproximou-se de mim, olhou-me bem por dentro, poisou nos meus ombros as suas mãos brancas de cera, pesadas como chumbo e disparou:
- O senhor vai responder-me com toda a verdade sobre o que vou perguntar-lhe?
Respondi afirmativamente e ela perguntou de chofre, ansiando pela resposta:
- Era o meu filho que vinha naquela urna?
Olhos nos olhos respondi sem vacilar (por quê vacilar se ia transmitir a mais pura das verdades?!) tentando levar um pouco de paz e tranquilidade àquela mãe desesperada, destroçada pela morte do seu filho e a dúvida que lhe mordia na alma.
- Pode ter a certeza absoluta que era o corpo do seu filho que vinha naquela urna; não podia haver troca!
- Mas morreram muitos juntamente com o meu filho! (versão do tal informador).
- Mesmo que assim fosse não podia haver troca; mas felizmente e infelizmente só morreu o seu filho; foi o nosso segundo morto naquele ano; houve também três feridos graves, é certo, e alguns feridos ligeiros mas só um morto.
- Fico-lhe eternamente grata porque me tirou um tremendo peso de cima! Todos os dias tenho ido rezar junto daquela sepultura mas essa dúvida terrível atordoava-me, dilacerava-me a alma; agora sei que vou rezar junto do meu filho pois fiquei com a certeza que ele está ali.
Houve mais umas palavras de circunstância e... apareceu o pai do Mesquita com ar de pessoa mais velha, acabrunhado, triste, cheio de dor de alma, parecia ter ouvido a nossa conversa. A dor pela morte do filho e a doença não perdoavam; cremos que sofria da doença de Parkinson, em estado bastante adiantado. Pouco falou ou nada para além dos cumprimentos. Pelo menos nada recordo... já lá vão 42 anos!
A nossa missão estava cumprida e o nosso dever também. Despedimo-nos e retomámos a viagem para Valença onde chegámos a meio do almoço mas satisfeitos connosco.
5. Desde Abril de 1974 trabalho no Hotel Dom Carlos Park em Lisboa – passe a publicidade. Um dia, em meados da década de 80, ouvi um recepcionista dizer que ia chegar ao hotel o Eng. Vilhena Mesquita. O nome era muito familiar; era impossível não ser parente próximo do nosso Mesquita.
Perguntei pela sua naturalidade mas só sabiam que era do Norte e tinha escritório em Paris. Pedi que me avisassem, logo que chegasse.
Quando o vi, tremi, fiquei atónito, estupefacto... parecia que estava ali à minha frente o Álvaro Mesquita; era apenas um irmão mais novo mas muito, muito parecido.
Apresentei-me, perguntei pelos pais - um deles, creio que a mãe, ainda era vivo – sabia que os tínhamos visitado. Os pais iam frequentemente visitá-lo em Espanha (Galiza) onde ele se deslocava vindo de Paris.
Depois duma longa conversa sobre a CCaç 675 (como não podia deixar de ser) contou-me as peripécias da sua curta passagem pela tropa.
A meio da recruta fez um requerimento a pedir para não ser mobilizado porque o seu irmão falecera na Guiné! Requerimento indeferido! O Mesquita deu o “salto”; “aterrou” em Paris; ali fundou uma empresa de construção civil, já de boa dimensão àquela data.
Após a revolução dita dos cravos vinha a Portugal com certa assiduidade. Casou com uma sobrinha do ex-ministro Bettencourt Rodrigues, o tal que indeferiu o requerimento.
A vida dá cada volta!...
Lisboa, terça feira, 24 de novembro de 2009
Belmiro Tavares
[Fixação / revisão de texto / negritos e itálicos / título: L.G.]
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 25 de novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5336: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (1): Quatro Histórias com Mural ao Fundo
(**) ÚLtimo poste da série > 26 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23201: 18º aniversário do nosso blogue (6): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - Parte II: 29 de agosto de 1972: no mato com Spínola, "a simpatia como arma de guerra"