terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24085: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (37): Sentimentos que a farda militar encobre


1. Em mensagem de 18 de Fevereiro de 2023, o nosso camarada José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), enviou-nos mais uma das suas Histórias e Memórias, desta vez relacionada com as trágicas e traiçoeiras minas.


MEMÓRIAS E HISTÓRIAS MINHAS

37 - Sentimentos que a farda militar encobre

Nos últimos tempos, por razões que para aqui não interessam, tenho estado afastado da escrita, mas continuo atento. O tema “minas” tem-me chamado a atenção não só pelo desaparecimento prematuro de vidas e, como não podia deixar de ser, pela destruição da qualidade de outras, que se prolongaram nos tempos.

A CCaç 3327/BII17, companhia que integrei até ser transferido para o Pel Caç Nat 56, também teve o seu malfadado encontro com aqueles engenhos na zona de Bissássema. Vou deixar que a História da Unidade fale por si na descrição dos acontecimentos e, mais importante que tudo, integrar os sentimentos que então assolaram o Fur Mil Luís José Vargem Pinto, comandante da 3.ª Seccão, do 4.° GComb, do qual eu também fiz parte. Acrescento aqui que na altura deste acontecimento eu já tinha sido transferido para o Pel Caç Nat 56.

Na História da Unidade (CCaç 3327/BII17) – CAP II, FASC XI – PAG 25 é possível ler-se uma descrição bem elucidativa do que aconteceu naquele dia 16FEV72. Os elementos feridos não faziam parte da CCaç 3327. A sua presença no local deveu-se à proteção que fizeram ao comandante do Batalhão de Tite que entendeu deslocar-se ao local do rebentamento e, segundo testemunhos de militares da 3327, por pouco não pisou uma das minas.

Este foi o estado em que ficou o pontão destruído pelo PAIGC. Sem dúvida que foi uma grande carga explosiva. Foi à volta destes escombros que foram implantadas as minas que o Furriel Pinto levantou.

Em 2011, aquando do convívio da CCaç 3327, realizado no BII17, na ilha Terceira, o Fur Mil Pinto presenteou-me com uma pequena descrição daquilo que tinha sido a sua acção no levantamento das minas e os sentimentos que então o assolaram para tomar tal decisão. Importa realçar que toda a sua acção envolve à volta dos mais altos princípios humanos e desprezo total por aquilo que lhe pudesse acontecer.

Pela pena do FurrielMil Pinto:
“...Quando levantei as minas não foi pensando no dinheiro, nem sequer sabia que pagavam 1000 escudos cada mina levantada. Em primeiro lugar pensei que não podia deixá-las no terreno, porque alguma noite podia ser necessário passar por lá e pisar alguma, aí, adeus ó perna.
Em segundo lugar pensei na população, se ficassem no trilho quando alguém por lá passasse iam acioná-las e aí seria o rebentamento com perdas irreparáveis.
Rebentá-las no sítio não era possível, o inimigo sabia à distância a nossa posição.
Portanto decidi levantá-las e levá-las para o quartel.
Quero agradecer ao nosso comandante a confiança que depositou em mim como graduado e aos homens por mim comandados para uma missão tão difícil.”

Convívio no BII17, Angra do Heroísmo, Terceira, Açores, ano de 2011. Eu (à esquerda) com o Fur Mil Pinto.

Um abraço transatlântico
José Câmara

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22056: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (36): Um levantamento de rancho servido com uma bofetada

Guiné 61/74 - P24084: (De) Caras (196): Cândido Manuel Patuleia, ex-fur mil, CCAÇ 2600 / BCAÇ 2887 (Angola, 1969/71), vítima de cegueira total, provocada por explosão de uma granada ofensiva: a sua história é aqui lembrada pela seu antigo cmdt de pelotão, Eduardo José dos Reis Lopes

Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de Maio de 2007 > 13º Convívio do pessoal de Bambadinca 1968/71 > A organização coube ao Fernando Calado, coadjuvado pelo Ismael Augusto, ambos da CCS/BCAÇ 2852 (1968/71). 

Aqui na foto, o António Fernando Marques (ex-fur mil, CCAÇ 12, Guiné, 1969/71) e o Cândido Patuleia (ex-fur mil, CCAÇ 2600, Angola, 1969/71) estiveram presentes: ficaram amigos para sempre, no Hospital Militar Principal, em 1971. Ambos estão reformados: o Marques, da sua actividade empresarial; o Patuleia, da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos (ainda o conheci, na Repartição de Finanças da Reboleira, a 3ª da Amadora)...  (Já os tenho visto noutros encontros do antigo pessoal de Bambadinca, 1968/71.)

Ambos f0ram vítimas de engenhos explosivos:  uma mina anticarro, no caso do Marques, que o pôs em estado de coma durante 16 dias (se não erro) e lhe levou 2 anos de tratamento e recuperação;  o Patuleia, por seu turno, foi vítima da explosão de uma granada ofensiva quando estava a montar uma armadilha com outro camarada (que teve morte instantânea): cegueira total, rosto desfigurado e um calvário de multiplas operações em Portugal e no estrangeiro. 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].




1.  Nunca é demais recordar os deficientes da guerra do ultramar / guerra colonial (que serão 14324, segundo os números da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas) (*).  A guerra teve / tem nomes e rostos (e alguns ficaram marcados para sempre). E histórias, com h pequeno, que nunca serão contadas na História com H grande.

No total,  os "cegos e amblíopes" foram 70 (dos quais quase um terço na Guiné). Mas o número de vítimas de cegueira parcial e outras deficiências visuais é 12,3 vezes superior: 863 (das quais 27% na Guimé) (Vd. quadro acima).

Já evocámos vários nomes de camaradas nossos que ficaram totalmente cegos, nossos conhecidos ou figuras mais o menos públicas: 

(i) o José Eduardo Gaspar Arruda (1949-2019), o líder histórico da ADFA (sofreu cegueira total e amputação do membro superior esquerdo), em  acidente com mina em Moçambique; era furriel); 

(ii) o Cândido Manuel Patuleia Mendes (natural do Bombarral, meu vizinho, com amigos na Lourinhã, ferido em Angola; era furriel); 

(iii) o Manuel Lopes Dias (hoje cor ref DFA) (não sei onde foí ferido, mas possivelmente em Angola; era alferes), 

sendo estes dois útimos membros da atual direção da ADFA, eleitos para o triénio de 2022/24, o primeiro como tesoureiro e o segundo como secretário: mas já foram ambos presidentes da direção.

Mais recentemente, entrou para a nossa Tabanca Grande o 1º cabo Manuel Seleiro, que pertenceu ao Pel Caç Nat 60 (São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70): ficou totalmente cego e sem as duas mãos, ao levantar uma mina A/P, na picada de São Domingos para o Senegal, em 1970 (**).

Lembrámos também aqui o nome do camarada (e membro da nossa Tabanca Grande), Hugo Guerra (hoje cor inf ref, DFA, e sofrendo de doença de Parkinson) que foi vítima da mesma mina que o Manuel Seleiro estava a levantar: ficou cego de uma vista (***).

A história de vida destes homens e militares portugueses merece ser melhor conhecida dos portugueses. Hoje vamos reproduzir, parcialmente, um texto publicado no portal Ultramar TerraWeb - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar, com a devida vénia ao autor e aos editores:


Eduardo José dos Reis Lopes, ex-alf mil op esp,'ranger', Cruz de Guerra de 4.ª classe, CCAÇ 2600 / BCAÇ 2887 (Angola, 1969 / 1971)


(..) De entre outras missões que, no decurso do nosso estacionamento em Balacende (Nov69-Mai71), nos foram atribuídas, destacam-se escoltas e protecção aos trabalhos que uma equipa da JAEA 
[Junta Autónoma das Estradas de Angola].  desenvolvia no itinerário principal Caxito-Nambuangongo, designadamente o levantamento topográfico destinado à construção de uma estrada asfaltada.

Os pontos mais determinantes daquele trabalho eram assinalados com telas (de 5mts de comprido por 1 de largo), dispostas em cruz e posteriormente sobrevoadas. Tendo a frente daqueles trabalhos alcançado as nossas "portas da guerra", tal como do antecedente e sempre que os trabalhos eram diariamente interrompidos, as telas foram rotineiramente colocadas; mas por sucessivas noites, as telas começaram naquela área a ser roubadas por bandos armados da FNLA.

Perante esta situação, sugeri ao comandante da companhia que montássemos emboscadas; ou, em alternativa, que nos seus limites as telas fossem armadilhadas.

Enquanto isso, ao nosso batalhão em Quicabo tinha chegado como guia para as NT, um negro foragido da base IN "Checoslováquia", tida como "sede inexpugnável da Zona B da 1ª RPM-MPLA" (pretensa "Região Político-Militar" do MPLA no Quijoão), cujo comandante era Nito Alves e a citada zona B comandada por Jacob João Caetano. O guia Eduardo, que em tempo se havia entregue às NT no sector do Caxito, posteriormente permanecera no posto local da DGS para "reeducação e reabilitação", após o que ficaram reunidas as condições para o planeamento de uma operação, a nível de batalhão, tendo como principais propósitos: capturar o comandante Jacob Caetano, vivo ou morto; e destruir aquela base IN. 

As forças executantes escolhidas para o golpe-de-mão, foram o meu 3º Pelotão da CCaç 2600 e o Pel Rec/CCS,  comandado pelo Alf Mil Martins, consideradas pelo comando do batalhão como as mais aguerridas e experientes: íamos defrontar o IN, fortemente armado e no seu próprio "santuário" considerado "inexpugnável", não havendo lugar a quaisquer tácticas defensivas ou hesitações. E a saída de Balacende, estava prevista para as 12:00 de 23Mai70.

Aproximando-se aquele momento, o Capitão Hermínio Batista, comandante da CCaç 2600 , decidiu-se pela alternativa de armadilhar as citadas telas da JAEA, tendo para tal missão encarregue o Furriel Mil  'ranger' Cláudio Manuel Libânio Duarte: acompanhado por uma secção do meu pelotão, comandada pelo Furriel Patuleia que para tal efeito se voluntariou; contudo, em se tratando de uma secção do meu 3º pelotão a fazer a segurança, também por solidariedade com o Patuleia, igualmente me voluntariei.

Estando previsto que a equipa da JAEA saísse para a frente de trabalhos pelas 06:00, cerca de meia-hora antes o Fur Patuleia acordou-me e eu – ainda ensonado e porque às 12:00 iríamos largar para a "Operação Checoslováquia" –, acabei por lhe dizer que não ia ao armadilhamento das telas; e aconselhei-o a que também não fosse, mas aquele Furriel não seguiu o meu conselho.

Por volta das 09:00 de 23Mai70, ouviu-se em Balacende uma enorme explosão: na frente de trabalhos da JAEA, encontrando-se os militares ao lado uns dos outros, o Furriel 'ranger' Duarte, enquanto procedia ao planeado armadilhamento das telas, descavilhou uma granada ofensiva e, inopinadamente, afrouxou a alavanca: o Fur Patuleia ainda lhe gritou que arremessasse a granada mas o Fur Duarte instintivamente tentou apertar a alavanca e, encostando as mãos ao peito, ali encontrou a morte imediata; quanto ao Fur Patuleia, ficou com a cara e o corpo cheios de estilhaços da granada, tal como o soldado Arlindo.

Quando os quatro feridos – dois deles de forma menos grave –, transportados nos Land-Rover da JAEA, começaram a chegar ao nosso aquartelamento, foi um pandemónio.

Fiquei na enfermaria por alguns momentos junto do Fur Patuleia, mas não suportei mais ouvi-lo pedir ao Furriel Enf  Fernandes que o matasse. Dali fui para a messe, onde continuei a ouvir os seus gritos de dor, até que por volta do meio-dia chegou um AL-III, tendo sido heli-evacuados para o hospital militar de Luanda o Soldado Arlindo e o Furriel Patuleia.

Quando vim de férias à Metrópole, visitei no HMP-Estrela o Fur Patuleia: estava cego; e tinha (como ainda hoje), a cara cravejada de estilhaços. Após dezenas de operações – algumas realizadas em Barcelona –, recuperou parcialmente alguma visão mas apenas por breves períodos; e da última vez que o vi, estava de novo e totalmente cego.

Uma das minhas recorrentes memórias sobre a guerra no Ultramar, está relacionada com o sucedido ao Furriel Mil Patuleia. (...) 
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(¹) Cândido Manuel Patuleia Mendes: nascido em 1947 no Bombarral; veio a ser no ano 2000, presidente da direcção nacional da ADFA.
 
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 (***) Último poste da série > 17 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24074: (De) Caras (195): Em 1975, cinco anos depois, saí do Hospital Militar Principal com as marcas da mina A/P, armadilhada, que me mudou completamente a vida: estava destroçado, cego, sem a mão direita e com dois dedos na mão esquerda (Manuel Seleiro, 1º cabo, Pel Caç Nat 60, DFA, São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24083: Notas de leitura (1557): "Reportagem, uma antologia", por Jorge Araújo; Assírio & Alvim, 2001 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
O sucesso obtido em sucessivas edições do "Comandante Hussi" que começou por ser uma reportagem do conhecido jornalista cabo-verdiano Jorge Araújo acerca de uma criança que foi envolvida no conflito político-militar de 1998-1999, um estafeta-mascote que recusou abandonar o campo de batalha para ficar ao lado do pai, antigo combatente que aderiu à causa de Ansumane Mané. António Hussi vai viver em cheio a guerra desde junho de 1998 a maio de 1999, e enquanto em Bissau e um pouco por todo o país se sente o vento libertador do fim de uma tirania, Hussi veio a correr a casa à procura do seu tesouro, uma bicicleta desconjuntada, comoveu-se ao ver que o seu tesouro mais valioso estava são e salvo. "Pintado de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcer-se de dor. A sua bicicleta estava suja e abandonada. Mas era a sua bicicleta". Metáfora de uma criança contente com a simplicidade do seu tesouro, e temos aqui algumas das páginas esmaltadas da literatura da lusofonia.

Um abraço do
Mário



Comandante Hussi: uma reportagem que deu brado, inesquecível

Mário Beja Santos

Comandante Hussi[*], uma das obras mais dramáticas e ternas do que se pode designar por literatura de guerra, antes de aparecer sob a forma de livro foi editado como reportagem num jornal, e por tal razão, atendendo à altíssima qualidade do texto, José Vegar [foto à direita], selecionador, prefaciador e anotador do livro "Reportagem", uma antologia, Assírio & Alvim, 2001, deu primazia ao trabalho de Jorge Araújo, experiente em cenários de guerra. Como Vegar escreve: 

“No caso do conflito na Guiné-Bissau, Jorge Araújo – profissional desde 1986, na Televisão de Cabo Verde, BBC, Já e O Independente – foi particularmente feliz. Quis o acaso que nas ruas de Bissau alguém lhe indicasse o miúdo António Hussi, o mais jovem guerrilheiro de Ansumane Mané. O repórter deixou-se ficar junto dele, ouviu-lhe confidências e narrações dos episódios da guerra. Através dele, contou a Batalha de Bissau e revelou ao leitor o desejo de um miúdo recuperar a sua bicicleta”

Mas antes de se falar das aventuras de António Hussi, retorne-se ao prefácio de Vegar:

“Das vinte reportagens reunidas nesta antologia, seis são sobre a guerra, uma, a de Timor, sobre uma operação militar contra um povo indefeso, oito sobre problemas ou acontecimentos sociais importantes, duas sobre personagens ou factos na nossa História contemporânea, uma sobre um tycoon dos media, outra é puro jornalismo de viagem e uma última sobre política”

Elogia o papel que a reportagem tem no jornalismo, deplora cada vez menos espaço que a reportagem tem na substância dos jornais, mas também recrimina o jornalista, assim: 

“A restante parte da culpa pertence aos próprios jornalistas portugueses, à sua cultura profissional. Por não considerarem o jornalismo como uma Arte, que tem história, estilos, períodos, ruturas e mestres, que importa conhecer. Por ignorarem que nenhuma história se faz sem alma, essa entidade imaterial que gera curiosidade, paciência e o supremo gozo de encontrar os factos e as pessoas a escrever sobre eles”.

Jorge Araújo [foto à esquerda] publicou "Comandante Hussi" no jornal “O Independente”, em fevereiro de 1999, e arranca com um parágrafo que captura imediatamente o leitor:

“Era uma vez um menino. Pobre mas feliz. Feliz porque tinha um tesouro. Não era um vistoso boneco do Rambo – daqueles que se transformam em carro de combate e em avião supersónico –, nem mesmo uma sofisticada metralhadora de brincadeira, que acende uma luzinha irritante e faz mais barulho do que qualquer arma de verdade. Muito menos um computador capaz de navegar pela Internet e com jogos que desafiam até as madrugadas mais longas. Era um tesouro que só uma criança pobre pode ter”.

E descreve esse tesouro, uma bicicleta reduzida a um escombro, pintada de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcer-se de dor. Mas um tesouro, era o único presente que o pai algum dia pôde oferecer-lhe. “Porque era tudo o que dinheiro de pobre pode comprar”.

Segue-se o contexto familiar e um acontecimento inopinado, o princípio da guerra, as famílias em fuga, naquele dia 7 de junho rapidamente a população de Bissau se apercebeu que o inferno lhes batera à porta. Acompanhou a família, choroso por deixar a sua bicicleta, mas chegado a Nhacra, justificando saudades do pai, Ablei Sissé, um dos muitos antigos combatentes da liberdade da Pátria que se juntaram ao brigadeiro Ansumane Mané, deu meia volta, fugiu, fintou bombas e tiros e chegado a Bissau perguntou pelo pai, deu-se o reencontro, o pai furioso, sovou-o, aquilo não era lugar para uma criança, mas António Hussi insistiu em ficar, o pai cedeu. 

“Transportou armas e munições para a linha da frente, fez de pombo-correio, foi ajudante de cozinheiro. Aprendeu a cozinhar arroz de todas as maneiras e feitios, mas durante quase 11 meses o principal prato do dia era uma mão-cheia de nada. Não matou mas viu morrer. E conviveu com o cheiro nauseabundo dos cadáveres em decomposição”.

Assistiu à humilhação dos milhares de soldados do Senegal e da Guiné Conacri que morreram ou fugiram sem honra nem glória. Tentou-se a paz. Até que no dia 6 de maio de 1999, a Junta Militar lançou-se no ataque final, as tropas de Ansumane Mané puseram todos os apoiantes de Nino Vieira em debandada. Nino, considerado o maior herói da luta de libertação vivo, vencido, humilhado, procurou refúgio na Embaixada de Portugal.

O estado de Bissau era calamitoso, o Hotel Hotti e o Mercado de Bandim num perfeito abandono. Hussi estava exultante. 

“Durante toda a noite, deliciou-se com o fogo de artifício da artilharia. Quando a madrugada acordou, o menino-soldado pedalou com as suas sandálias de plástico até à Praça Che Guevara. Assistiu à confusão em frente ao Centro Cultural Francês, com a população a gritar por vingança e a querer reduzir o edifício a cinzas. Viu os civis franceses a abandonarem o local amedrontados e as tropas especiais de Paris encurraladas na sua arrogância a sair com o rabinho entre as pernas. Uns e outros refugiaram-se na Embaixada de Portugal. Viu também os livros, que nunca teve, serem consumidos pelas chamas assassinas. E a pilhagem que se seguiu. E apanhou uma fitinha tricolor, que agora coloca à volta da testa. É o seu único troféu de guerra”.

E depois do triunfo veio a redenção ou melhor o reencontro com a bicicleta, o seu tesouro, e se até agora acompanhámos as ditas e as desditas de uma criança que prestou serviço na guerra, uma mascote dos vitoriosos, tudo culmina quando António Hussi saiu daquela guerra e partiu para a guerra da sua vida:

“Uma das primeiras coisas que Hussi fez mal a guerra terminou foi dar um salto até à sua casa ali para os lados do Bairro de Santa Luzia. Foi uma viagem-relâmpago, que nem deu para abraçar os amigos ou participar num animado jogo de futebol. Como no início dos confrontos, todos os seus pensamentos continuavam amarrados a uma única coisa. Hussi quase chorou de alegria quando se apercebeu que o seu tesouro mais valioso estava são e salvo. Pintado de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcerem-se de dor. A sua bicicleta estava suja e abandonada. Mas era a sua bicicleta”

Texto prodigioso que veio a dar edições ilustradas, e não menos comoventes. Aquela guerra de 1998-1999 deu azo a diferentes textos e relatos, mas nenhum deles possui a luminosidade e o prodígio de encantar como Comandante Hussi, estão ali, com marca-de-água, algumas das mais belas páginas da literatura lusófona, convém acarinhá-las e dá-las a saber às mais novas gerações para que não esqueçam o que a guerra custa e como uma criança, naqueles lugares de caos, de desespero, guarda como maior triunfo o escombro de uma bicicleta. Que texto maravilhoso, oxalá que circule na memória das novas gerações guineenses.
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Notas do editor:

[*] - Vd. poste de 6 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23236: Notas de leitura (1443): Comandante Hussi, por Jorge Araújo e ilustrações de Pedro Sousa Pereira, a história do menino-soldado que não perdeu a capacidade de sonhar, é edição do Clube do Autor, 2011 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 17 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24075: Notas de leitura (1556): O Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau: Imagens Para Uma História (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24082: Tabanca Grande (544): Mário Arada Pinheiro, cor inf ref, que, além de 2º cmdt do BCAÇ 2930 (Catió, 1971/73), esteve na 2ª Rep, no QG/CCFAG, e foi comandante-geral de milícias, substituindo o major Carlos Fabião... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 871.



O nosso novo grã-tabanqueiro, nº 871, cor inf ref Mário Arada Pinheiro (de momento não temos nenhuma foto dele),  foi substituir  o major inf Carlos Fabião  como comandante do Comando Geral de Milícias, aqui na foto,  de autor desconhecido, reproduzida com a devida vénia. In: Afonso, A., e Matos Gomes, C. - Guerra colonial: Angola, Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d., pp. 332 e 335.  


1. Mensagem do cor inf ref Mário Arada Pinheiro:


Data - 14/02/2023, 11:43
Assunto - Comissão na Guiné


Vamos lá a ver se chega ao seu destino...

Mário Arada de Almeida Pinheiro, breve cv militar:

(i) nascido em 12/12/1932;

(ii) 1ª, 2ª e 3ª classes feitas na Lourinhã. 4ª em Samora Correia, Benavente;

(iii) exame de admissão ao liceu - Santarém;

(iv) entrei para o Colégio Militar em 1943 onde fiz o curso liceal (nº 164/1943, segundo a
 Revista ZacatraZ nº 196, março de, 2017)

(v) entrei na Academia Militar em 1951, acabando em 1954;

(vi) tirei o tirocínio em Mafra em 1954/55;

(vii) alferes em 3/11/1955, tenente em 1/12/1957, capitão em 1/12/1960 (Mafra, EPI), tenente-coronel 7/9/1976 no Colégio Militar, coronel em 2/11/1980:

(viii) entretanto estive colocado no RI 5 (Caldas da Rainha), tendo passado 6 meses na Escola Prática de Engenharia em Tancos a tirar o curso de Sapadores.

(ix) depois, 4 anos em Leiria (SHAPE, RI 7);

(x) Depois, Colégio Militar, como responsável pela Instrução Militar;

(xi) 1ª comissão no ultramar,  em Moçambique, de 1961/63, tendo sido evacuado por tuberculose pulmonar. 4 meses internado no Hospital Militar de Belém, após o que fiz 3 anos de serviços moderados no Colégio Militar;

(xii) em 1968 embarquei para 2ª comissão , e 2 anos, em Moçambique;

(xiii) regressei em 1970 e estive no Estado Maior General das Forças Armadas;

(xiv) depois, Batalhão de Chaves, após o que fui convidado para Lamego como director das operações especiais, após o que dirigi um curso de formação de sargentos.

(xv) 3ª comissão, na Guiné, de 16/9/71 a 21/9/73, no comando do BCÇ 2930 (Catió, 1971/73),

Inicialmente, estive em Catió, cerca de 1 ano, onde substituí o 2º comandante que tinha sido evacuado com um cancro.

Tínhamos 2 companhias, sendo uma de milícias guineenses, 1 pelotão de artilharia de 10,5 cm, 1 pelotão de canhões sem recuo de 5,7 cm, 1 pelotão de morteiros de 81 mm. Outras Companhias do Batalhão: Cufar, Bedanda, 2 grupos de combate em Cabedu, Cacine, Gadamael e Guileje.

Como era 2º comandante, acumulava com chefe das informações e mensalmente deslocava-me a fazer a inspecção administrativa de todas as companhias do batalhão.

O Comandante de Bedanda, da CCÇ 6,  na altura era o capitão de cavalaria Ayala Botto.

Quando o BCAÇ 2930 regressou a Lisboa, eu só tinha um ano de Guiné pelo que fui transferido para Bissau,  sendo colocado na Repartição de Operações,  do Comando Chefe, na Amura,  cujo chefe era o tenente coronel Firmino Miguel.

Passados cerca de 3 meses, fui convidado e nomeado comandante geral das milícias para substituir o major Carlos Fabião que regressara a Lisboa após 8 anos de Guiné.

Além das milícias, tinha também sob o meu comando as companhias africanas tal como os pelotões de caçadores nativos num total de cerca de 13000 militares.

Ainda estava eu em Catió quando o PAIGC estreou os mísseis antiaéreos Strela (russos), abatendo no corredor de Guilege um Fiat cujo piloto era o tenente Pessoa, que conseguiu ejetar-se, tendo caído em cima de umas árvores no corredor de Guilege. Foi salvo na manhã seguinte por uma equipa, transportada de helicóptero, e protegida por um heli-canhão. O comandante de força era o comando guinéu Marcelino da Mata.

Se me quiserem pôr qualquer questão, apesar da minha cabeça com 90 anos, e desde que me recorde, sempre à vossa disposição.

Um grande abraço do,

Arada Pinheiro

2. Comentário do editor LG:

Mário, magnífico, eureca!... Já cá chegou, depois de algumas tentativas falhadas, por erro no meu endereço.

Vivam esses 90 anos, feitos já no passado dia 12 de dezembro, e essa cabecinha!... Vou apresentá-lo à Tabanca Grande, mesmo não tendo ainda as duas fotos da praxe.. Peça à sua neta para digitalizar uma ou duas fotos do seu álbum, e mandar-mas depois por email: (i) uma mais ou menos atual; (ii) outra do tempo da Guiné ou da até da Escola do Exército / Academia Militar...

Descobri, que no Colégio Militar o meu amigo era o nº 164/1943, segundo a Revista ZacatraZ nº 196, março de, 2017. Mas não há muito mais informação a seu respeito, já que não faz uso das redes sociais,

De qualquer modo, deixe-me dizer aos restantes "amigos e camaradas da Guiné" que se reunem aqui, sob o o poilão da Tabanca Grande, que o Mário é meu conterrâneo, eu pelo menos considero-o como tal: casado com uma senhora lourinhanense, cujo pai ainda conheci, tem casa de verão na Praia da Areia Branca e somos sócios do GAPAB - Grupo dos Amigos da Praia da Areia Branca...(Eu muito mais recentemente, sou "periquitio" em relação ao Mário que é um histórico.)

No verão passado, apresentámo-nos um ao outro e foi então que soube que o Mário tinha  feito uma comissão na Guiné, em 1971/73, como major.  Fiquei encantado com a sua afabilidade, memória, sentido de humor e amor por aquela terra e aquela gente. Confidenciou-me algumas histórias saborosas, do tempo que ainda privou com o seu / nosso (eu sou de 1969/71) comandante-chefe, o gen Spínola. 

Foi na sequência de uma das nossas primeiras conversas, no VIGIA (sede da GABAP),  que o meu amigo  me facultou, a título de empréstimo, um exemplar autografado do livro de memórias do ten gen Aurélio Manuel Trindade, "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", escrito sob o pseudónimo Manuel Andrezo. O teor da dedicatória é o seguinte: "Ao meu amigo Pinheiro com muito respeito e consideração para que se lembre sempre da Guiné, terra que ambos admiramos. 13/12/2020. Aurélio Trindade." 

Recorde-se que foi a partir daqui que tomei a liberdade de fazer e publicar várias "notas de leitura" do livro em questão. E fomos falando, ora no VIGIA ora ao telemíovel. Depois de lido, devolvi-o, naturamente, e disse ao Mário que teria muito gosto em vê-los sentados à sombra do nosso poilão, a si e ao seu amigo Aurélio Trindade.

O Mário aceitou, logo de bm grado, o convite para se juntar à nossa tertúlia, sabendo que ela não tem qualquer agenda política, servindo apenas para os antigos combatentes da Guiné partilharem memórias (e afetos). Temos várias tabancas onde n0s reunimos periodicamente, de norte a sul do país E a mais próxima de si (que vive em Paço de Arcos ) é a Tabanca da Linha, em Algés. Espero quer um dia destes possamos lá aparecer juntos, mau grado as nossas mazelas. Para já, seja bem vindo à Tabanca Grande, a mãe de todas as tabancas. O seu lugar (por ordem cronológica de entrada) é o nº 871,


 3. Ficha de unidade > Batalhão de Caçadores nº 2930
  
Identificação: BCaç 2930
Unidade Mob: BC 10 - Chaves
Cmdt: TCor Inf Castro Ambrósio | TCor Inf Carlos Frederico Lopes da Rocha Peixoto | TCor Inf Ernesto Orlando Vieira Correia 
2º Cmdt: Maj Inf Ernesto Orlando Vieira Correia | Maj Inf Mário Arada de Almeida Pinheiro
OInfOp/ Adj: Maj Inf Duarte Leite Pereira | Maj Inf Mário Arado de Almeida Pinheiro
Cmdt CCS: Cap SGE Manuel Pereira de Carvalho
Divisa: "Sempre Excelentes e Valorosos"
Partida: Embarque em 25Nov70; desembarque em 04Dez70 | Regresso: Embarque em 130ut72

Síntese da Actividade Operacional

Era apenas composto por Comando e CCS, não dispondo de subunidades operacionais orgânicos.

Em 16Dez70, após sobreposição com o BArt 2865, desde 07Dez70, assumiu a responsabilidade do Sector S3, com sede em Catió e abrangendo os subsectores de Bedanda, Catió, Cufar, Guileje, Gadamael e Cacine.

Com as subunidades que lhe foram atribuídas, desenvolveu intensa actividade operacional de patrulhamento, reconhecimentos e de vigilância da fronteira, especialmente na zona do corredor do Guileje, tendo ainda os seus aquartelamentos e aldeamentos sido alvo de frequentes e fortes flagelações,
especialmente quando situados junto da fronteira. 

Além disso, coordenou e impulsionou a execução dos trabalhos de construção dos reordenamentos de
Catió, Cacine e Gadamael, entre outros e os trabalhos da estrada Catió-Cufar.

Dentre o material capturado mais significativo, salienta-se: 4 pistolas-metralhadoras, 4 espingardas, 2 lança-granadas foguete, 87 granadas de espingarda e 68 minas.

Em 21ago72, foi rendido no sector pelo BCaç 4510/72 e recolheu a Bissau, onde se manteve aguardando embarque.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa nº 92 - 2º Div/4º Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 150

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P24081: In Memoriam (470): António Torres e Arquimínio Silva, recentemente falecidos: pertenciam à CCAÇ 3398 / BCAÇ 3852 (Buba, 1971/73) (Joaquim Pinto Carvalho)



1. Homenagem poética do Joaquim Pinto Carvalho a dois camaradas seus, recentemente falecidos, pertencentes à CCAÇ 3398 / BCAÇ 3852 (Buba, agosto de 1971 / agosto de 1973):  o António Torres (1949-2023) e o Arquimínio Silva (1949-2023). Nenhum deles é membro, registado, da Tabanca Grande; ambos costumavam participar nos convívios da sua companhia.

O Pinto de Carvalho, que tem 60 referências no nosso blogue, e é membro nº 633 da Tabanca Grande, foi alf mil da CCAÇ 3398 (Buba) e CCAÇ 6 (Bedanda) (1971/73).  Natural do Cadaval, é advogado, poeta e régulo da Tabanca do Atira-te ao Mar, Porto das Barcas, Atalaia, Lourinhã. É autor de uma brochura com a história da unidade, a CCAÇ 3398,  distribuída no respetivo XXV Convívio, realizado no Cadaval, em 18/9/2021.

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24076: In Memoriam (469): Manuela Gonçalves (Nela) (Castelo Branco, 1946 - Caldas da Rainha, 2019), professora aposentada, cooperante, esposa do ex-alf mil, Nelson Gonçalves, cmdt Pel Caç Nat 60, 1969/70, vítima de mina A/C , em 13/11/1969, na estrada São Domingos-Susana

Guiné 61/74 - P24080: A nossa guerra em números (23): Relatório da 2ª Repartição/CCFAG, relativo ao período de 1jan73 a 15out74: "maior agressividade e potencial revelado pelo IN, e menor capacidade ofensiva das NT"








Fonte: Relatório da 2ª Repartição/CCFAG relativo ao período de 1jan73 a 15out74, citado por CECA  - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, 2015), pp. 493-499.


1. Com esta série "A nossa guerra em números" (*), não temos nenhuma pretensão, explícita ou implícita, de defender esta ou aquela tese sobre a guerra colonial / guerra do ultramar, em particular no TO da Guiné... O nosso propósito é meramente informativo e didático: cada um dos nossos leitores fará a sua leitura dos números apresentados, a crítica das suas fontes, as eventuais conclusões a tirar, etc...

A análise dos números e a sua interpretação devem ser feitas com cautelas e até reservas. É preciso  ter sempre em conta variáveis como o contexto (por exemplo, político-militar), a qualidade dos dados, a sua fonte, a idoneidade das fontes, quem os recolhe e trata, o fim a que se destinam, etc. Todos nós podemos mentir com números na mão: políticos, economistas, jornalistas, gente da publicidade e do marketing, etc., "usam e abusam" dos números... Para vender produtos e ideias, por exemplo. E depois é ter preciso fazer a distinção entre dados, informação e conhecimento. 

Os dados que temos hoje para apresentar são de fonte portuguesa, oficiosa, a antiga 2ª Rep do QG/CCFAG (Quartel General / Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné). E reportam-se à situação político-militar do ano de 1973 e dos primeiros quatro meses de 1974. Trata-se de uma síntese da atividade do PAIGC neste período final da guerra:

(i) ações de iniciativa do IN;
(ii) ações de reação do IN às NT;
(iii) minas e outros engenhos explosivos implantados pelo IN e neutralizados pelas NT;
(iv) baixas causadas pelo PAIGC às NT e à população (mortos, feridos, capturados, retidos);
(v) baixas sofridas pelo PAIGC (mortos, feridos, capturados, apresentados).

Os comentários dos nossos nossos leitores serão bem vindos.


CECA (2015) - Anexo n° 4 _ Relatório da 2ª Repartição/CCFAG 

relativo ao período de 1jan73 a 150ut74 [Excertos, 1]


O ano de 1973, juntamente com os primeiros meses de 1974 até ao 25 de Abril, constituem um período de nítido agravamento da situação militar, económica e político-subversiva no território da Guiné

Este estado de coisas reflectia a agudização do problema colonial português,  especialmente no plano internacional. Os movimentos emancipalistas, em particular o PAIGC, recebiam apoios ou ajudas de toda a ordem, cada vez mais generalizados, com destaque para os que eram canalizados através da ONU e OUA. [2]

Deste modo tomava-se muito real o isolamento do Governo português, cuja política de intransigência prosseguida apontava para um previsível esgotamento dos recursos do país a mais ou menos curto prazo.

[...] No seguimento da decisão tomada na 20ª Sessão do Conselho de Ministros da OUA, para que fosse empreendido, durante o ano de 1973, um golpe político-militar decisivo, sobre a Guiné, operou-se durante o mês de Maio um muito significativo agravamento da situaç,ão no TO. 

Assim, e em ordem à sua redução, o lN desencadeou poderosas e prolongadas acções de fogo sobre as guarnições fronteiriças de Guidaje, Guileje e Gadamael Porto, as quais conjugou com acções de isolamento terrestre e aéreo (início de emprego de mísseis "SA-7", que limitaram o emprego da Força Aérea), que efectivamente conseguiu, durante alguns dias em Guidaje. 

Quanto a Guileje obrigou as NT ao seu abandono. Na primeira metade de junho, manteve-se o agravamento verificado durante o mês anterior notando-se na última quinzena tendência para o desanuviamento da situação em Guidaje e Gadamael Porto, situação que tudo indicava ser temporária e somente resultante da época das chuvas em curso. 

A partir de fins de ag073 começou a ser referenciada uma concentração anormal de meios na faixa além-fronteira do saliente N/NE do território, a qual, no final do ano, evidenciando as intenções do lN, passou a constituir uma real ameaça sobre as guarnições de Buruntuma, Canquelifá e Copá, em especial esta última, de menor efectivo (2 Gr Comb), isolada e excêntrica.

Neste contexto, as forças do PAIGC não só revelaram uma notável capacidade de manobra e confirmaram o extraordinário potencial de combate que lhes era atribuído, como alteraram profundamente o seu conceito de manobra no TO, passando da actuação dispersa em superficie para a concentração maciça de meios sobre objectivos definidos, normalmente distantes uns dos outros, com o propósito de hipotecar as reservas das NT no local oposto onde pretendia exercer o esforço.

Destas realidades, logo no início de 1974 com o avanço da nova época das chuvas, resultou novo agravamento da situação criada com o empolamento da guerrilha desde abril do ano anterior.

Assim, a partir de jan74, o PAIGC passava verdadeiramente à ofensiva, a qual se caracterizou pela definição de duas áreas de incidência de esforço, diametralmente opostas, uma no extremo NE do TO onde desenvolvia a Op "Abel Djasse" e a outra a Sul, no Cubucaré, para o que inclusivamente tinha constituído um novo órgão coordenador das operações de guerrilha nesta zona: o Comando Sul. 

As acções foram desencadeadas, numa e noutra das áreas referidas, com base em novas unidades das FARP, e com largo emprego de artilharia e armas pesadas, nomeadamente mort 120 mm e fog 122 mm.

Além destes meios os mísseis SA-7 "Strela" eram frequentemente utilizados, o que limitava grandemente o apoio da Força Aérea às guarnições terrestres e, a 31mar74, apareciam as primeiras viaturas blindadas em Bedanda (Cubucaré) o que confirmava o grande aumento de potencial, assim como a crescente capacidade táctica e, sobretudo, logística do PAIGC. 

Nas restantes áreas do TO aumentava igualmente de modo significativo a actividade de guerrilha dispersa em superfície, com relevo para o emprego de engenhos explosivos e acções de terrorismo urbano que alastravam até à própria capital - Bissau.

Como mero exemplo citam-se as 17 flagelações com armas pesadas a outros tantos aquartelamemtos ou  povoações, num único dia (20lan74 - Data da morte de A. Cabral), o rebentamento de engenhos explosivos num café de Bissau (26fev) que provocou 1 morto e a sabotagem no próprio QG/CTIG (22fev) onde parte do edifício principal foi destruída.

No Sul a ofensiva aí realizada permitia ao PAIGC o controlo efectivo de uma área de razoável superfície em que inseria o "corredor" de Guilejepercorrido frequentemente por viaturas das FARP, e que confinava com outra vasta área abandonada pelas NT desde 1969 - o Boé.

Em abr74, dado o esgotamento das reservas do Cmd-Chefe, previa-se que o relançamento da ofensiva no saliente NE, orientada para Sul, tomaria iminente o abandono de Canquelifá e o consequente isolamento de Buruntuma.

Admitia-se ser intenção do PAIGC unir a bolsa assim conquistada com a Região do Boé, por sua vez ligada à zona onde se localizava o "corredor" de Guileje, mais a Sul, concretizando deste modo uma ocupação territorial efectiva que carecia para reforçar a imagem do Estado da Guiné-Bissau parcialmente ocupado pelas Forças Armadas Portuguesas.

Nas áreas de incidência de esforço referido a situação era de tal modo grave para a maioria das guarnições das NT, cujos sistemas de defesa não dispunham de obras de fortificação que pudessem resistir com eficácia às novas armas pesadas do PAIGC, que o Cmd-Chefe alertara do facto o EMGFA, a 20abr74, por uma nota que concluía nos seguintes termos:

"O facto de ter sido confirmada parte das notícias atrás mencionadas pela utilização de viaturas blindadas no ataque a Bedanda, confere certa verosimilhança às restantes notícias que referem a existência de novas armas antiaéreas ou outras, pelo que aquela utilização e o conjunto das circunstâncias descritas na presente nota, nomeadamente a análise das fotografias juntas, são motivo de grande preocupação para este Cmd-Chefe, cumprindo-lhe assinalar as consequências que podem resultar da possível evolução do potencial de combate do PAIGC ou do seu eventual reforço com novos meios das FA da Guiné, quer quanto à capacidade de resistência das guarnições militares que porventura sejam atacadas, quer quanto às limitações de intervenção com meios à disposição do Comandante-Chefe, em especial meios aéreos".

Análise da actividade de guerrilha

A partir de 1964, após a criação das FARP, a curva da variação anual de actividade de guerrilha apresentava, todos os anos certa semelhança: crescia durante toda a época seca, apresentando um ponto alto em jan/fev, após o que decrescia para, em abr/mai, subir de novo até ao começo das chuvas, altura em que alcançava o máximo anual; a partir do começo das chuvas a actividade da guerrilha começava a decrescer regularmente, atingindo no final das chuvaso seu mínimo anual.

A actividade de guerrilha do PAIGC, em 1973, processou-se de acordo com os padrões normais dos anos anteriores, tendo apresentado no entanto a seguinte particularidade: o ponto alto verificado no final da época seca (em mai73) correspondeu a cerca do dobro das acções registadas em 1972, na mesma altura, e o decréscimo observado durante a época das chuvas foi mais acentuado e prolongou-se para além da época seca, até nov73.

No entanto a partir do final de dez73, a actividade de guerrilha aumentou muito acentuadamente, tendo sido em todos os meses do primeiro trimestre de 1974 mais elevada que nos meses homólogos do ano anterior.

Deste modo ao empolamento da actividade de guerrilha em 1973, sucedia outro tanto em 1974. O habitual ponto alto que se previa para abr/mai74, e tudo fazia admitir mais violento que o de 73, só foi sustido pela ocorrência do Movimento de 25Abr.

Pelos quadros anteriores   [vd. acima ] verificava-se que,  quantitativamente, no ano de 1973, se registou um total de 1.514 acções de guerrilha, correspondente a um aumento de cerca de 11% em relação às 1.359 acções verificadas no ano anterior. 

Daquele total, 1.033 acções foram de iniciativa do PAIGC (760 em 1972) e 481 acções de reacção (599 em 1972). Assim, o ano de 1973 foi caracterizado não só por um aumento global de acções, mas especialmente por uma subida pronunciada do número de acções de iniciativa do PAIGC (mais 35%), a par de um decréscimo da actividade de reacção.

Esta tendência - aumento da actividade de iniciativa - acentuou-se mais nos primeiros 4 meses de 1974 (+ 50%), período em que se registaram 415 acções de iniciativa, total significativamente superior às 276 acções realizadas pelo PAIGC em igual período de 1973.

Tais números eram o resultado da cada vez maior agressividade e potencial revelado pelas FARP, assim como a diminuição da actividade de reacção era sintoma claro de uma menor capacidade ofensiva das NT.

Acresce que a actividade de iniciativa do PAIGC, no conjunto do TO, tendo aumentado cerca de 35% em relação a 1972, provocava às NF mais do dobro dos mortos (185/84) registados naquele ano. 

Neste particular o agravamento de 50% verificado nos primeiros meses de 1974, originava um total de mortos sofridos pelas NF até ao final de abr74 (81 M) quase idêntico ao nº registado durante todo o ano de 1973 (84 M). 

Este facto tomava evidente que as acções de guerrilha, além de mais numerosas, tinham uma característica, que os números não podiam traduzir com fidelidade a qual era a cada vez maior violência das mesmas, sendo certo que os valores estatísticos dos quadros apresentados não faziam distinção entre pequenas e grandes acções ou operações de guerrilha.

Em resumo, pode concluir-se o seguinte:

  • Avaliada pelo quantitativo de acções,  a actividade de guerrilha da iniciativa do PAIGC em 1973, aumentou cerca de 35% em relação ao ano anterior. Por sua vez em 1974, no final de Abril, aquele quantitativo era 50% superior ao total registado nos primeiros 4 meses de 1973.
  • A acção do PAIGC vinha sendo caracterizada por um aumento significativo das acções de fogo, em detrimento das acções de terrorismo (raptos e roubos), orientando-se este, cada vez mais, para acções de terrorismo selectivo e sabotagens. Era notória a evolução no sentido do abandono progressivo da actividade de guerrilha dispersa em superfície, em proveito das acções maciças contra objectivos definidos, obrigando a grandes balanceamentos demeios, por vezes, envolvendo elementos de todo o TO.
  • Estas características eram indicadores seguros do aumento de agressividade das FARP e da sua maior capacidade ofensiva, potencial e eficiência.
  • Em reforço da conclusão precedente menciona-se o aparecimento de novas armas durante o período considerado (míssil "Strela" e viaturas blindadas) e um maior emprego de outras (mort 120 mm, fog 122 mm, canh 85 mm, canh 130 mm e minas especiais).
  • Finalmente, a situação militar revelou nítido agravamento a partir de dez73, em especial nas Zonas Sul e Leste.

Dispositivo geral do PAIGC e objectivos

Ao longo de toda a fronteira e nos países limítrofes, o PAIGC dispunha de Bases com estruturas e Comandos próprios, perfeitamente integrados na sua organização militar e que, em conjunto com os "corredores" de infiltração e áreas fulcrais no interior do TO, constituíam a malha do seu dispositivo.

Algumas das Bases ao longo da fronteira tinham simultaneamente carácter operacional e logístico, constituindo pontos de apoio à entrada de grupos armados e de colunas de reabastecimento. Assim:

  • Na Zona Oeste, dispunha fundamentalmente das Bases de M'Pack, Campada, Sikoum, Cumbamory e Hermacono, sedeadas na faixa fronteiriça da Rep Senegal, a partir das quais actuava contra as guarnições de S.Domingos, Ingoré, Guidaje, Farim e Cuntima e infiltrando-se pelos "corredores" da Sambuiá e Lamel irradiava para o interior do TO, respectivamente em direcção às áreas fulcrais de:

- Tiligi, Naga-Biambe e Caboiana-Churo, donde ameaçava directamente o "Chão" Manjaco e as povoações  e Aquartelamentos  ao longo do eixo Có - Bula - Binar - Biambe - Bissorã;

- Bricama, Morés e Sara, donde ameaçava as povoações e aquartelamentso ao longo do eixo Mansoa - Mansabá - Farim, a península de Nhacra e, indirectamente a ilha de Bissau;

  • Na Zona Leste, para pressionamento do "Chão" Fula, dispunha:

- Na Rep Senegal, das Bases de Fakina, Sambolecunda, Sare Lali, Suco/Payongon e Lenguel/Serenafe, ameaçando os regulados da fronteira N, em direcção a Bafatá/Nova Lamego. [... ]

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Notas da CECA (2015):

[1] Extractos  do relatório, pp I, 11 a 18.

[2] A Guiné-Bissau tinha sido admitida como membro daquela Organização, após a proclamação unilateral da independência.

[Revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste: LG ]

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 14 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24065: A nossa guerra em números (22): De um total de 1570 minas e outros engenhos explosivos implantados pelo PAIGC (de 1972 a 20 de abril de 1974), mais de três quartos foram neutralizadas pelas NT, com destaque para as minas A/P

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24079: Agenda cultural (830): Convite do Grupo "Asas de Poesia" para a sessão de poesia e música a levar a efeito no dia 25 de Fevereiro de 2023, pelas 16h00, na Biblioteca Municipal Dr. José Vieira de Carvalho - Maia. A 1.ª Parte será preenchida com o Poeta José Teixeira. Haverá ainda a participação especial do Duo de Música de Coimbra, composto por Roberto Assis e Álvaro Basto

C O N V I T E

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24058: Agenda cultural (829): Convite para a apresentação do livro "Volfrâmio: Suor o deu, miséria o levou - Cambra na diáspora", por Alberto Bastos, dia 13 de Fevereiro (segunda-feira), pelas 18,30 horas, sede da Universidade Popular do Porto, Rua da Bovista, 736

Guiné 61/74 - P24078: O que é feito de ti, camarada ? (17): Hugo Guerra, ex-alf mil, Pel Caç Nat 55 e 60 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70), hoje cor inf ref, DFA

VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > Monte Real > Palace Hotel > 21 de Abril de 2012> Lendo (e comentando para mim, LG) o livro do Idálio Reis.. O Hugo Guerra é  um dos bravos de Gandambel / Ponte Balana (esteve lá de agosto de 1968 até ao fim, janeiro de 1969)... Veio acompanhado da sua esposa, Ema Guerra, que tinha acabado de  concluir,  com sucesso, a sua licenciatura em serviço social. É uma mulher de armas!... Do Porto...

VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > Monte Real > Palace Hotel > 21 de Abril de 2012> Sessão de lançamento do livro do Idálio Reis,  "A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné - Gandembel / Ponte Balana" > Duas  ex-enfermeiras parquedistas Natércia Neves (à direita) e Giselda Pessoa (à esquerda), ambas do mesmo curso. Nenhuma delas conheceu a Gandembel/Ponte Balana do tempo da CCAÇ 2317... (Em São Domingos, o Hugo Guerra e o Manuel Seleiro foram assistidos pela Ivone Reis, 1929-2022.)

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2012)  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

Guiné > Região de Tombali > Ponte Balana > Dezembro de 1968 > Da esquerda para a direita, os alf mil Hugo Guerra e João Barge (1945-2010), com os respetivos "lavadeiros (graduados em alferes)"...

Foto e legenda): © Hugo Guerra (2007).  Todos os direitos reservados.
 [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Há muito, desde 2013, que não temos notícias (*) do Hugo Guerra, que comandou o Pel Caç Nat 55 (Gandembel e Balana) e depois o Pel Caç Nat 60 (São Domingos), entre 1968 e 1970. Temos-lhe dado os parabéns pelo seu aniversário a 27 de abril (nasceu em 1945) e pouco mais.

Em 21 de abril de 2012, participou no VII Encontro Nacional da Tabanca Grande em Monte Real, acompanhado da sua esposa Ema Guerra. (**)

O último poste da sua autoria, aqui publicado, remonta a 2013 (***). Entrou para a Tabanca Grande em 2008 (****). Tem cerca de 4 dezenas de referências no blogue. Tem página no Facebook mas é pouco ativo.

2. Quando se apresentou à Tabanca Grande em 2007, escreveu sobre ele o seguinte:

(...) Chamo-me Hugo Guerra, nasci em Estremoz em abril de 1945 e estudei na Escola de Regentes Agrícolas de Évora onde acabei o meu curso em 1964. 

Em agosto de 1968, sem perceber bem como (depois hei-de contar), estava no Ana Mafalda a caminho da Guiné em rendição individual e, como a sorte nunca me bafejou, quando desembarquei já tinha guia de marcha para Gandembel onde fui comandar o Pel Caç Nat 55 que estava adstrito à CCaç 2317 [Gandembel/Balana, 1968/69].

Passei por Aldeia Formosa, num heli, e aterrei, ainda em agosto, em Gandembel. Passei a maior parte do tempo em Ponte Balana e estava lá quando fechámos a porta em Janeiro de 1969 (...).

 [ Foto à esquerda, com uma granada ao cinto e toalha ao ombro e sabonete na mão, ia tomar banho num regato perto de Gandembel; e à direita, em Balana, 1968].

Nessa altura, e porque a sorte continuava alheia à  odisseia, fiquei num destacamento logo a seguir, de nome Chamarra. A CCAÇ 2317 foi para Buba e mais tarde foram acabar a sua martirizada comissão em território menos hostil.

Eu tive, mais tarde, uma passagem rápida por S. Domingos no comando do Pel Caç Nat 60 mas o suficiente para ficar ferido com o rebentamento duma mina anti-pessoal, salvo erro a 13 de março de 1970.

Sou hoje DFA e Coronel. (...)

Moro em Lisboa e o meu contacto de (...) telemóvel: 960 085 289. /...)

[ Foto à direita em São Domingos, com o 1º Cabo Manuel Seleiro, que ficou gravemente ferido no mesmo rebentamento que o Hugo Guerra, em 11 de março de 1970... O  Seleiro perdeu as duas vistas e ambas as mãos; o Guerra perdeu uma vista.].


3. No seu último poste,  P11142 (**), o Hugo Guerra falou-nos depois do rumo que a sua vida tomou, indo parar a Angola e, 
após o 25 de Abril e o regresso à metrópole, enveredar pela carreira militar:


(...) Depois de ser ferido em São Domingos em março de 1970 (*****), fiz-me à vida e fui trabalhar e viver para Angola em setembro desse mesmo ano.

Como era Regente Agrícola de formação, não tive qualquer dificuldade em arranjar bons empregos e por lá estive até agosto de 1974, quando optei por reingressar no Exército e vir prá Capital.

Corri Angola de Norte a Sul, exceptuando as Terras do Fim do Mundo, e depois da experiência traumatizante que foi Gandembel/Ponte Balana e São Domingos,  tive oportunidade de formar opinião comparativa entre as três colónias.

Também passei algum tempo em Moçambique. (...)


4. Sobre a sua "vivência" em Angola, deixou-nos aqui uma "saborosa" história que vale a pena relembrar (***):

- Como está, Senhor Capitão? E os senhores Alferes,  sentem-se bem? Está uma óptima tarde para o nosso chazinho, só tenho pena que não possamos ficar mais tempo aqui fora porque os mosquitos não nos largam... Vamos entrar.

Assim falava a Dona, mulher do Gerente da Fazenda Tabi,  a maior produtora de banana do Norte de Angola com o à-vontade do seu estatuto,  dirigindo-se depois ao subgerente e à mulher deste que também faziam parte deste ritual.

Com o grunhido de assentimento do marido, homem feito nas roças de cacau um São Tomé sempre de chibata na mão e acompanhado do seu fiel cão, entrámos.

Um dos criados, fardado de branco e com luvas da mesma cor, habituado a estas andanças, providenciou as bebidas para todos em copos de cristal e um dos Alferes dirigiu-se ao piano e dedilhou qualquer melodia, que já se sabia fazia os encantos da Dona.

A conversa naquele dia girou à volta do acidente que poucos dias antes tivera lugar, quando um Unimog carregado de militares havia sido alvo de uma emboscada no percurso para as salinas a poucos quilómetros da sede da Companhia, tendo os soldados sido apanhados à mão ( parece que levavam as armas debaixo dos bancos) e, não podendo resistir,  foram dizi
mados e a viatura queimada.

-  Uma desgraça… Um lamentável acidente…

- Um enorme desleixo - disse eu, ainda fresquinho de dois anos de porrada na Guiné.

- Mas eles não foram culpados -  logo se levantou a Dona.

Pois não, a culpa é da bandalheira a que se deixa chegar esta situação nas Fazendas onde os Senhores Oficiais são tratados a uísque, gin e tapas, onde os Furriéis têm um belo bar com piscina,  jogos de cartas ou de mesa e onde as patrulhas são efectuadas por civis armados.

O ambiente ficou de cortar à faca. Veio-me à cabeça que àquela hora, na Guiné estariam a começar os ataques aos desgraçados que iriam passa a noite em claro a levar e dar porrada e sem lhe passar pela cabeça que noutras paragens como aquela onde agora eu me encontrava, se jantava com todos os requintes, se bebiam os melhores vinhos de mesa com café, conhaque e charutos.

Se não estou pirado, esta cena passou-se em Outubro de 1970. (...)

5. Comentário do Zé Teixeira ao poste P24074 (*****):

(...) Tenho acompanhado com muita emoção todo este sangrento filme que envolveu o Manuel Saleiro e o Hugo Guerra que conheci na sua passagem por Mampatá. Aquele jovem alferes que foi enviado para Gandembel,  chegadinho da Metropole. Ali viveu momentos terríveis que punham aos saltos o nosso coraçaão, apesar de estarmos a mais de 10 Km, "passeou" por campos de minas que o guerrilheiro Braima Camará ia semeando, conforme me contou em 2008 no Simpósio Internacional de Guileje.  

Depois, quando Gandembel foi abandonado, foi para o Norte e caiu com a Manuel Saleiro.

Doi muito, ainda hoje, tomar conhecimento destas tristes realidades de uma guerra que não queríamos. Parece que estou a ver e a ouvir os lamentos do Hugo, quando em Mampatá se apercebeu do que o esperava.

Ao Manuel Saleiro um abraço sentido de admiração pela sua força anímica. Ao Hugo Guerra cujo Facebook está parado, mas creio que está vivo,  um abraço de solidariedade e amizade.

(***) Vd. poste de 21 de fevereiro de  2013> Guiné 63/74 - P11132: Vivências em tempo de guerra (Hugo Guerra)

(****) Vd. poste de 29 de novembro de  2007 > Guiné 63/74 - P2312: Tabanca Grande (43): Hugo Guerra, ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 55 e 60 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70)

(*****) Vd. poste de 17 de fevereiro de 2023 >  Guiné 61/74 - P24074: (De) Caras (195): Em 1975, cinco anos depois, saí do Hospital Militar Principal com as marcas da mina A/P, armadilhada, que me mudou completamente a vida: estava destroçado, cego, sem a mão direita e com dois dedos na mão esquerda (Manuel Seleiro, 1º cabo, Pel Caç Nat 60, DFA, São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70)