quarta-feira, 19 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24234: Armamento do PAIGC (3): peça de artilharia 130 mm M-46, cedida pelo Sekou Turé para os ataques, a partir do território da Guiné-Conacri, contra Guileje e Gadamael, em maio/junho de 1973


Peça de artilharia 130 mm M-46, de fabrico soviético (ano de introdução: 1954). Este tipo de armamento foi usado pelo PAIGC contra Guileje em maio de 1973, a partir do território da Guiné-Conacri. O seu alcance (máximo) é de 22,5 km.

Fonte: Wikipedia (em finlandês) (2007) (com a devida vénia...)



 Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional > A peça do lado direito não pode ser  o famigerado "canhão de 130 mm", de origem russa, fornecido pela Guiné-Conacri ao PAIGC nos ataques a Guileje e a Gadamael, em maio e junho de 1973... A peça de artilharia 130 mm, M-46, tinha/ tem  um cano ou tubo de mais de 7 metros de comprimento...  O da foto é muito mais curto... 

Não era armamento do PAIGC,  deve ter sido cedida pelo Sekou Touré, exigia uma equipagem de 8 elementos, além de viatura para a rebocar,   e disparava do outro lado da fronteira... Pesava 7,7 toneladas,,,  Nunca deve ter entrado sequer em território da antiga Guiné portuguesa (*).... 

Por outro lado, também deveria ser difícil distinguir, no final da guerra,  depois da morte de Amílcar Cabral,  e com o crescente ascendente de Sékou Touré (e dos soviéticos) sobre o aparelho político-militar do PAIGC, o que era do PAIGG e o que era dos seus anfitriões ou "patrões"...

Angola foi um dos países lusófonos que dispunha desta temível arma, durante a chamada guerra da segunda independência.

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2023). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Nuno Rubim, coronel de artilharia na reforma, e especialista de renome. nacional e internacional, em história da artilharia, que colavora  com a ONG AD-Acção para o Desenvolvimento no Projecto Guiledje, no tempo do nosso saudoso Pepito (Bissau, 1949-Lisboa, 2014), confirmou-nos o emprego desta arma em 1973:

 

Excerto de mensagem do Nuno Rubim, membro da nossa Tabanca Grande, poste P1434 (*):

 (...) O Pepito foi a Cabo Verde e falou com os Cmdts Julinho de Carvalho e Osvaldo Lopes da Silva, os responsáveis operacionais no ataque a Guildeje, em Maio 1973. Colocou-lhes várias perguntas que eu sugeri, além daquelas que ele entendeu por bem e as respostas são muito satisfatórias, pese embora o tempo decorrido.

Agora vou estudar em detalhe essas informações e o ciclo continuará ...

Realmente a peça utilizada pelo PAIGC era o 130 mm M-46. O reconhecimento dos objectivos foi executado visualmente! (...)

2. Recorde-se o que já aqui escrevemos sobre o assunto (**):

(...) A artilharia 130 mm foi usada pela primeira vez contra Guileje em maio de 1973. E com crescente precisão. De origem soviética, com quase todo o armamento do PAIGC, operava a partir do território da Guiné-Conacri e tinha sido cedida pelo regime de Sékou Touré.

Entre 18 e 21 de maio de 1973 por exemplo, foram lançadas sobre Guileje cerca de sete centenas de granadas, de vários tipos (incluindo RPG 7). Média diária (4 dias): 171,25 granadas.
Entre 31 de maio e 11 de junho, Gadamael Porto foi flagelada com 1468 granadas: média diária (em 12 dias), 122,3 granadas; máximo 620 granadas (em 1 de junho), mínimo 4 granadas (em 10 de junho) (...)

3. Informação recolhida na Web > abcdef.wiki

Canhão de campo rebocado de 130 mm M1954 (M-46) - 130 mm towed field gun M1954 (M-46) - abcdef.wiki

(...) O canhão de campanha  rebocado ("towed field gun", em inglês),   de 130 mm M-46 (russo : 130-мм пушка M-46 ) é uma peça de artilharia rebocada de 130 mm, de carga manual , fabricada na União Soviética na década de 1950. 

Foi observado pela primeira vez pelo Oeste em 1954. Por muitos anos, o M-46 foi um dos sistemas de artilharia de maior alcance ao redor, com um alcance de mais de 27 km (...)


Especificações técnicas::

Massa:  7,7 t 
Comprimento; 11,73 m
Comprimento do cano: Furo: 7,15 m

Para saber mais: Canhão de campo rebocado de 130 mm M1954 (M-46)


(***) Último poste da série > 13 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24220: Armamento do PAIGC (2): Ainda as viaturas blindadas BRDM-2: em finais de 1973/princípios de 1974, o PAIGC teria apenas 2 viaturas blindadas...

Guiné 61/74 - P24233: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (35): O novo porto de pesca do Alto Bandim: abundância de peixe mas mais caro (4,5 € / 3 mil CFA o kg)... metade segue para Dacar e a Europa


Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Bissau > O novo porto de pesca do Alto Bandim  > Vista geral das instalações portuárias. Vê-se ao fundo a mãe de água do Alto Crim, que já vem do tempo da Bissau colonial (, tendo sido contruída em 1947)... 


Foto nº 1A > Guiné-Bissau > Bissau > O novo porto de pesca do Alto Bandim: as canoas nhomincas, em primeiro plano


Foto nº 2A >  Guiné-Bissau > Bissau > O novo porto de pesca do Alto Bandim: a venda do peixe na lota (cujo novo edifício ainda não funciona)


Foto nº 2 Guiné-Bissau > Bissau > O novo porto de pesca do Alto Bandim: as "videiras" ou peixeiras, em segundo plano

Guiné-Bissau > Bissau > Porto de pesca do Alto Bandim > 15 de abril de 2023 > 08:31 (Foto nº 1)  e 08:44 (Foto nº 2)

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2023). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné





1. Mensagem do Patrício Ribeiro (nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau, onde vive desde 1984, e onde é empresário, fundador e diretor técnico da Impar Lda; tem mais de 130 referências no blogue: autor da série, entre outras, "Bom dia desde Bssau" (*):

Data - 17/04/2023, 12:12 
Assunto- Bom dia desde Bissau

Luís,

Envio umas fotos do novo porto de pesca, do Alto Bandim,  em Bissau, tiradas às 8.30h do dia 15 do corrente.

As obras do porto quase estão terminadas, a nova lota ainda não funciona, o prédio da fiscalização marítima também está pronto, mas não está a funcionar.

Neste local fui comprar peixe que estava a sair das canoas, onde centenas de pessoas estavam a fazer o mesmo.

Havia dezenas de canoas Nhomincas com pescadores a descarregar peixe, terão sido algumas toneladas pescadas nos últimos 3 dias. O gelo em escama para conservar o peixe não dura mais tempo.

Todos os dias chegam canoas a Bissau para descarregar o pescado e levar gelo e gasolina para uma nova pescaria.

Mesmo com esta abundância de peixe de todos os tipos, o preço do mesmo está mais caro.

Dentro do porto estão uma dezena de camiões frigoríficos à espera, que depois de carregados com peixe seguem para o Senegal para abastecer Dacar, muito será exportado para a Europa como se fosse pescado no Senegal.

As águas do Senegal já há muitos anos que não têm peixe. (Falo da minha experiência por lá andar a fazer caça submarina.)

A Guiné-Bissau ainda não consegue exportar o peixe fresco por não ter a certificação, o novo laboratório ainda não o consegue fazer.

Mas existe outro problema que é o transporte, os dez aviões semanais de Bissau/Lisboa, em que quatro são diretos, também não tem espaço para o transportar porque vão cheios de passageiros com as suas bagagens. (Ao fim 10 dias o pescado ainda é vendido na Europa como fresco.)

Resumindo: o peixe que é base da alimentação do povo guineense, está mais caro (4,5 euros /Kg,  de 1ª qualidade) (#) porque mais de metade do que é pescado entre as ilhas dos Bijagós vai para Dacar.

Nota final; por este motivo é que os que peixes que apanhava na praia de Varela,  já não os encontros, a minha comida agora é bagre ou latas de atum.

Abraço, Patricio Ribeiro

impar_bissau@hotmail.com

(#) igual a 3020,13 CFA (LG)





Planta da cidade de Bissau já no pós-independência (c. 1975/76). Localização dos bairros populares Bandim, Alto Crim e Pilão. Cortesia de A. Marques Lopes (2005).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)
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terça-feira, 18 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24232: Frase do dia (7): "Amílcar Cabral tinha tanto de génio como de ingénuo", diz uma das personagens do conto "A doença do Alemão", de Luís Graça


Amílcar Cabral (1924-1973) > c. 1970 > 
Foto  do líder histórico do PAIGC,
incluída em 
O Nosso Livro de Leitura da 2ª Classe,
editado pelos Serviços de Instrução do PAIGC
(1970)


1. Excerto do conto "A doença do Alemão", de Luís Graça (*):

(...) Sei que fez a tropa (e a guerra) na Guiné. Não posso dar muitos pormenores, porque sou um zero à esquerda nessas matérias. Julgo que pertencia à engenharia militar. Tanto quanto me lembro das nossas conversas, ele não deixava de simpatizar com o Amílcar Cabral, filho de pai cabo-verdiano. Mas achava um disparate a ideia de união ou unidade entre a Guiné-Bissau e Cabo-Verde.

− O Amílcar Cabral tinha tanto de génio como de ingénuo − recordo-me de ele me ter dito uma vez.

− Ingénuo ?... − indaguei eu.

− E viu-se: deixou-se matar por um dos seus. Em vez de mandar limpar o sebo a esse tal Inocêncio Cani, não, deu-lhe uma segunda oportunidade para ele se regenerar...

O Arsénio tinha uma costela cabo-verdiana, pelo lado da mãe que, garantia ele, era bisneta de escravos...

− E eu trisneto, com muita muita honra, sem qualquer complexo... Tive pena que Cabo Verde tivesse entrado, em 1975, na  paranoia da dipanda, a reboque do PAIGC. Arrepiaram caminho, anos mais tarde, que a euforia revolucionária  não enche barriga...

− Dipanda ?!...

− Ah!, desculpa, é angolês, uma corruptela de independência...

Eu aqui não quis comentar, nem nunca disse que tinha tido amigos cabo-verdianos que apoiavam o PAIGC no Luxemburgo... Depois meteram a viola no saco, quando se deu o golpe de Estado do 'Nino' Vieira, em 1989, se bem recordo... Foi o fim de muitas ilusões... "A segunda morte do pai das nossas nacionalidades", chorava um dos meus amigos que era cantor, com discos publicados  na Holanda... E, para mim, também, embora eu nunca tivesse conhecido a realidade da Guiné-Bissau nem de Cabo-Verde, antes e depois da "luta de libertação", como eles gostavam de dizer... Mas o direito à independência, tanto da Guiné-Bissau, como de Cabo Verde, esse, sempre o reconheci. Como lá se chegou, num caso e no outro, isso eu já não discutia, era assunto para os guineenses, os cabo-verdianos, os portugueses  e os historiadores... E eu, afinal, era cidadão luxemburguês...(embora mantivesse a cidadania portuguesa). (...)


2. Comentário de António Graça de Abreu:

Que grande história! Mas uma frase lapidar, exemplar pelo rigor: "O Amílcar Cabral tinha tanto de génio como de ingénuo." (**)

Abraço,

António Graça de Abreu | 18 de abril de 2023 às 18:01 

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(**) Último poste da série > 31 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23477: Frase do dia (6): Abençoadas Guiné e China que me deram este gosto pela poesia (António Graça de Abreu)

Guiné 61/74 - P24231: (In)citações (238): Da contestação da Guerra, à mobilização e regresso da Guiné, o operário de Sines e a evolução das costelas (Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 25 de Março de 2023:

Amigos e camaradas da Guiné

Cruzei-me várias vezes com Jaime Gama no CICA 2, mas apenas falei com ele 4 vezes durante um serviço comum, ele no papel de Oficial de Dia e eu no papel de Sargento de Dia. Foi o único contacto directo que tive e por isso não dá para falar do ex-Presidente da Assembleia da República, enquanto pessoa ou militar. Desse dia recordo a imagem dum individuo pouco falador, não dava nas vistas, não era vaidoso, não era militarista mas cumpria as regras. Depois da minha mobilização foi um exemplo a seguir para evitar problemas na tropa.

No final da recruta do 1.º turno em fevereiro de 1974 no CICA 2, realizou-se a semana de campo numa mata chamada Foitos, localizada na freguesia de Louriçal, apesar de decorrer sem incidentes, ficou gravada na minha memória para sempre. No penúltimo dia da dita semana, uma 5.ª feira, houve melhoria de rancho, o Vitor Costa pouco bebia e não era todos os dias que se comiam febras na brasa (rancho melhorado) e eu aproveitei a oportunidade para regar as febras com tintol. 

Com o aproximar da noite, a bebida a subir à cabeça e eufórico, decidi fazer uma sessão de esclarecimento à tropa contra a guerra colonial, estava a dita tropa já acomodada dentro das viaturas Morris cobertas com toldo. Que seca... deviam pensar os soldados, quem pensa este gajo que é. Quando terminei a sessão lá fui para o acampamento do "IN" a que pertencia, salvo erro, com a arma e as munições simuladas.

No dia seguinte, sexta-feira, com a boca ainda seca, começaram os preparativos para a tropa regressar ao quartel e o Victor Costa ia recordando as peripécias da noite anterior e nem me queria lembrar daquilo que tinha feito. Na segunda-feira seguinte e durante a semana tudo decorreu sem incidentes e eu, já mais calmo, comecei a pensar que afinal não tinha dado nas vistas. Mas veio a outra segunda-feira e, às nove horas da manhã, chamaram-me pelo altifalante do quartel, ao gabinete do 2.º Comandante, o Major Pires. Ao chegar à porta faço anunciar-me, faço a continência e, "V.ª Ex.ª meu Major dá-me licença", segue-se um momento de silêncio e lá veio a resposta:

- Entre nosso cabo miliciano, esteja à vontade. Seguiu-se um período de silêncio.
- Então a semana de campo correu bem - pergunta-me de chofre.

 Seguiu-se um período de silêncio e lá veio a resposta.
- Sim meu major correu bem...
- Hum - ouvi eu...
- Mas, ouvi dizer que houve política que não estava no programa da semana de campo... - 

Silêncio.

Seguiu-se uma lição de meia hora sobre dever, disciplina, exemplo a dar à tropa, a política não era para ali chamada etc. E a terminar:

- Olhe, quero dizer-lhe que foi mobilizado para a província portuguesa da Guiné para render um camarada seu. É tudo, pode sair.

Faço a continência, despeço-me, dou meia volta aos tacões e lá segui para casa, com a convicção que tinha mijado fora do penico e falado de mais. Daquela reunião com o 2.º Comandante, fiquei também a saber com quantos paus se faz uma canoa, ou seja, havia um pau que tinha uma ponta no bico e tinha havido uma mão que tinha aproveitado o pau para escrever.

Aqui começou o início de uma nova vida, seguiram-se 10 dias de licença para tratar da farda e da papelada, no Depósito Geral de Adidos de Lisboa, e apanhar um Boeing 727 da FAP em Lisboa e daí para Bissalanca. Até nisso eu tive sorte, porque foi a primeira vez que andei de avião. Ao chegar a Bissalanca já tinha uma carrinha Mercedes do Exército para me levar para os quartos do QG em Bissau junto ao bar de Sargentos.

No outro dia depois de arrumar a mala com o fardamento e outros pertences, dirijo-me para o dito bar e, ao passar pelas mesas na esplanada, começo a ouvir umas bocas que me eram dirigidas, não liguei e dirigi-me para o balcão.

As bocas, "piu... piu... piu"..., eram de gozo, divertidas, nunca as tinha ouvido e com tendência para aumentar. Que sorte, eu a pensar que ia ver gente triste e carrancuda e sai-me esta cena, a seguir de uma das mesas começa um coro, que só lhe faltava a música. Hoje já não existem praxes pelo menos daquele tipo, para mim que sempre gostei de praxes, esta foi do melhor, ser praxado permite conhecer novas pessoas e uma boa integração melhora o nosso moral.

Entretanto o coro foi aumentando:

piriquito vai no mato... óréréré
que a velhice vai no Bissau... óréréré
salta, salta piriquito... óréréré
que a velhice já saltou... óréréré


E a festa continuou.

Numa das mesas as picadelas tornaram-se mais fortes e foi para lá que eu me dirigi para os cumprimentar. Nem parecia que tinha chegado à Guerra, de onde és pergunta um, não havia sol lá na terra, diz outro, para onde vais? Vai trocar as divisas porque essas cheiram a leite (ainda hoje tenho as divisas de outro furriel). O que queres beber, foi aqui que comecei a beber o bom Whisky Old Parr, simples e seco, porque a água estraga o whisky e este, 5$00 a bolha e 127$50 a garrafa, era barato. 

Só no dia seguinte é que comecei a ouvir relatos sobre a guerra. O ambiente era bom, não fosse a saturação e a pancada no sotão, em alguns "velhinhos" com mais de 28 meses de comissão, fartos daquilo que era a fruta da época a aguardar que os mandassem para casa. Na minha primeira visita ao "Barracão", perdão queria dizer Hospital Militar de Bissau, para visitar uns amigos do "velho" furriel Bilhau da Leirosa, é que vi que tinha chegado à Guerra.

No dia 17 de Março, ao som do altifalante e da voz de Raul Solnado, que falava das munições da Guerra de 1908, recebi a ordem para fazer o espólio dum furriel miliciano morto em combate na região de Bafatá e que era o objecto da minha mobilização.

Foi um momento difícil, conhecer o historial desse camarada, fazer a seleção dos seus pertences para os enviar à família e queimar a correspondência imprópria das cartas enviadas por cinco mulheres ou raparigas que com ele tinham tido uma relação muito íntima, não sei se seriam madrinhas de guerra ou outra ligação qualquer, a verdade é que aquele tipo de escrita até dava vida a um morto. 

Fiquei então a saber que a fotografia dele de camuflado com chapéu à cowboy com a walter de 9 mm a pender para o lado direito pronta a sacar não era nada, quando comparada com a dita escrita das cartas. Apenas o vi em fotografias, não vi nem o caixão e a dita escrita não permitiu saber que tipo de vida levava na Metrópole, prefiro recordá-lo apenas como um guerreiro com tomates.

Entretanto a dita rendição para Bafatá nunca se concretizou, nem cheguei a saber a razão. O facto é que fui direitinho para a CCaç 4541/72 para aprender a arte da Guerra. Depois de começar a beber bom Whisky é difícil parar, só temos que manter o controle da situação. A primeira coisa que me lembro quando cheguei à CCaç 4541/72, foi da minha deslocação ao barraco, perdão queria dizer Bar, pedir um Old Parr e o soldado dizer que não havia,  porque dava prejuízo, foi a minha oportunidade para saber quantas bolhas tinha uma garrafa e ensinar o soldado a gerir o bar. 

De facto 5$00 por cada dose e sendo elas 28, dava para ganhar dinheiro, mas a melhor opção seria vender do Dimple porque a garrafa custava 125$00, ainda hoje é raro o dia, não beber um Whisky a seguir ao almoço. As moedas que ainda mantenho na minha posse têm a ver com Whisky. Na tropa aprendi que há limites para tudo e 10$00 correspondia a dois Whisky e eram suficientes para andar direito, não falar demais, não dar nas vistas e não fazer coisas que nos tragam problemas. É o melhor remédio.

Destas recordações sobre a minha mobilização para a Guiné, resta-me apenas um papel timbrado que a grande maioria não possui, que guardo como recordação e sem complexos de esquerda ou de direita. O facto de ser contra a situação da guerra nas ditas colónias, refletia o pulsar da juventude do meu tempo e ela só trazia problemas, mas uma vez chegado à guerra da Guiné, o meu lado da barricada estava escolhido, a minha obrigação era cumprir e fazer cumprir as ordens, respeitar a hierarquia e fazer a guerra, ali comecei a respeitar aquele povo, mas também a aprender que, afinal, além de ter costelas de esquerda, tinha uma mão direita e um dedo que disparava a G3 apenas com o apoio do braço e da anca do mesmo lado e enquanto existissem ordens as ditas eram para funcionar.

A minha passagem pela Guiné mostrou-me que, se o Regime que nos conduziu à Guerra não era bom, o PAIGC não era melhor e as minhas costelas de esquerda começaram a perder força. Entre outras coisas eu consegui uma Declaração em papel timbrado de uma comissão por imposição, que nem o filho do Secretário do Gabinete do Ministro das Colónias, Baltazar Rebelo de Sousa dessa altura tem. 

 Quando regressei da Guiné esperava-me outra surpresa. Fomos mal recebidos, os empregos eram poucos e muito menos para aqueles que não fossem soviéticos ou próximo deles, mas a tropa e a psícola da Guiné tinham-me tornado mais forte e por isso fui à luta.

No início de 1975 comecei a trabalhar na empresa Sepsa, de Leça do Balio, na montagem da Petrosul em Sines, o centro do furacão da revolução no Alentejo, onde vi e assisti àquela cegueira ideológica dos soviéticos que nada tinham compreendido daquele poema do Zeca Afonso, ou da queima das fitas e da linha férrea entre Coimbra e a Figueira.

Vejam bem
que não há só gaivotas em terra
Quando um homem se põe a pensar
Quando um homem se põe a pensar

Quem lá vem
Dorme a noite ao relento na areia
Dorme a noite ao relento do mar
Dorme a noite ao relento do mar

E se houver uma praça de gente madura
e uma estátua
uma estátua de febre a arder

Anda alguém
pela noite de breu à procura
E não há quem lhe queira valer
E não há quem lhe queira valer

Vejam bem
Daquele homem a fraca figura
Desbravando os caminhos do pão
Desbravando os caminhos do pão

E se houver
Uma praça de gente madura
Ninguém vai levantá-lo do chão
Ninguém vai levantá-lo do chão

Vejam bem que não há só gaivotas em terra
Quando um homem
Quando um homem se põe a pensar

Que poema bonito este.

Mas a realidade era outra, aquela gente no complexo Industrial de Sines esqueceu-se que alguns da minha geração já conheciam o poema, conheciam as praxes académicas de Coimbra e já tinham aprendido a pensar e aquela revolução tinha mais a ver com aquele ditado popular "Olha para o que eu digo, mas não olhes para o que eu faço" e o pior, estava para vir.

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur Mil At Inf

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24226: (In)citações (237): "Reflexão sobre a pobreza" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P24230: A galeria dos meus heróis (49): A doença do Alemão (Luís Graça)

A galeria dos meus heróis > A doença do Alemão

por Luís Graça (*)


− Eu era capaz de oferecer o meu lugar no reino dos céus por um prato de favas suadas!... Antes que se faça tarde…

− Tarde ?!... O que queres dizer com isso, Arsénio?... E, por favor, não blasfemes…

− Calma, senhor provedor, não invoquei o nome de Deus em vão… Também andei na catequese como tu, embora em África…

− Mas o teu catecismo não era o mesmo que o meu, aposto…

− Olha, a mim quem me dera saber se tenho um lugar reservado no céu…

− É com essa que Deus nos trama… Mantém o suspense até ao fim… 

− Ah!, para ti, António, está mais do que reservado, está assegurado!... Não precisas que te rezem missas...

− Obrigado, mas que história, afinal,  é essa… das favas ?!

− É o que me estava mesmo a apetecer agora, um prato de favas suadas…

− Abriste-me o apetite. Também já ia… E estamos em março, é a altura delas. Vamos almoçar ao Jacinto, pode ser que nos arranje, nem que seja um pires de favinhas, como entradinha, com chouriço preto alentejano…

− Sabes, tenho medo de esquecer como se chamava o prato de favas suadas feitas pela minha mãezinha, com tanto esmero e carinho…

− Ah! , a nha Bertinha, de saudosa memória…

− … E sobretudo esquecer a delícia do seu sabor, memória que me vem dos tempos da meninice.

− Ó engenheiro!..., estás com a doença do Alemão, ou quê ?!...

− Quem sabe ?!...

− Só Deus e os médicos é que sabem… A tal doença que nenhum de nós ousa nomear.

− Acho que ainda não a tenho, meu caro António…  Os neurónios  estão no sítio, descansa...

− Mas quem te pode garantir que a não vais apanhar, a dita cuja?...

− Cruzes, canhoto!... A única coisa que me aterroriza, mais do que a morte, é perder a memória, a identidade... e alguns dos cinco sentidos, como o gosto, o olfato, o tato...

− Terror por antecipação… Mas essas reminiscências da infância, quando recorrentes, dizem os entendidos, podem muito bem ser o primeiro sintoma precoce da doença do Alemão…

− Achas ?!...

− Lembras-te das favas suadas da senhora tua mãe que Deus já lá tem, mas não do que comeste ontem…

− Tens razão… E não me lembro mesmo!... Fora de brincadeira, dizem que para lá caminhamos todos…

− A demência ?!... A menos que apareça, um dia destes, a tal droga milagrosa que nos há de salvar da amnésia total…

− Já não será para os dias que me restam…

− Não sejas tolo, Arsénio, não vês o cancro ?!... Todos os anos saem novos medicamentos inovadores.

− Ah!, a indústria da doença: quem entra num hospital, já de lá não sai… Vê o meu irmão: já não lhe bastava ter que fazer hemodiálise três vezes por semana…

− Ah!, sim, é bem pesada a sua cruz… Mas desculpa-me que te pergunte: e a outra solução, o transplante renal?!

− Não brinques comigo, António, estás farto de saber que ele também já passou o prazo de validade!

− Tens razão, os setenta?!

− Sim, os malditos setenta!… Ainda esteve na lista de espera. No dia em que fez os setenta, riscaram-no logo da lista.

− É tramado…

− É isso mesmo, não fazem transplantes aos velhos. E não há dinheiro que compre um rim novo...

− Nem serviço nacional de saúde que aguente... 
Mas dizes bem, os setenta!... Passas a ser “velho… vitalício”!... Ora toma lá o carimbo... 

− E é aí que um homem se sente velho pela primeira vez, António Queiroz. Ou discriminado como tal. 

− Mas, por outro lado, já não precisas de renovar o bilhete de identidade…

− É agora o que somos, meu amigo. Eu, tu, o meu irmão… Gosto da expressão: “Velho… vitalíco!”... A mim também me puseram o carimbo, quando arrumei as botas aos setenta!

− Há que dar lugar aos novos!, dizem-te os safad0s que lá ficam… 

 Mas a ti ainda te fizeram uma festinha…

− …com direito a uma salva de prata e uns versinhos recitados pelas criancinhas mais novas… ”Ao nosso querido diretor, dr. António Queiroz, com (e)terna saudade!”… Até houve balões, coisa que eu sempre detestei e proibia por causa do ambiente…

− E o que é que tu querias mais, meu velho e caro amigo, dr. António Queiroz, agora dedicado e piedoso provedor da Santa Casa da Misericórdia ?!

− Gratidão, verdadeira gratidão… E não reverência cínica!...  No último dia de trabalho, dão-te um chuto no rabo com sapato de veludo.

− Mas ergueram-te um busto, em bronze…

− …um mamarracho, que está lá no átrio, ao pé do lago com repuxo, nenúfares e peixinhos vermelhos… Por mim, bem o dispensava.

− És um gajo com sorte, António… A mim, nem isso, nem salva de prata, nem versinhos, nem balões… E muito menos um busto em bronze...

− Oh!, pá, mas ainda não morreste, que eu me tenha dado conta!... Ou sou eu que já estou com a doença do Alemão ?!

− Não, não morremos, nem tu nem eu!...Ou melhor, eu já morri, da primeira vida. Morte social, que não é menos cruel que a morte física que me espera, um dia destes…

− Morte social ?!... Dizes bem. Foi por isso que eu nunca mais lá pus os pés na associação que ambos ajudámos a criar e a engrandecer. E tu ainda mais, Arsénio, que andavas na política, tinhas bons contactos em Lisboa e puxavas os cordelinhos… 

− Sempre a pensar no interesse da terra do meu querido pai... Mas poucos já se lembram desses tempos!… E, sem memória, não há gratidão!

− Dizes bem: essa é outra forma de doença do Alemão, a que dá no povo…

− … ingrato e vilão,  o Zé Povinho!

− Mas tu não tens lá ido mesmo, nem na festa de Natal ?!...

− Eu, agora, é raro lá pôr os pés, e pior ainda com a hemodiálise do meu irmão. A minha vida social acabou há muito, desde que larguei a política.

− Lembro-me sempre do tipo que eu fui substituir, o dr. Veloso, o professor do Colégio… No dia seguinte, depois de deixar o cargo, deu-lhe a veneta, quis ir matar saudades e foi lá cumprimentar as criancinhas, os velhos, as funcionárias… Ele era a delicadeza em pessoa. 

− Quem, esse palerma ?!... Desculpa lá, está xexé...

− Sabes o que é que eu ouvi, sem querer (a porta do gabinete estava entreaberta), da parte de um grupinho de senhoras (educadoras, auxiliares e até a nossa antiga secretária e a assistente social) ?

− Não, não imagino…

− Estavam na galhofa, e a cochichar entre elas, deu para ouvir: “O que é que o filho da p...  do velho está aqui a fazer?!”…

− Assim, sem mais nem ontem ?! Filho da p... ?!

− Isso mesmo, e ainda dizem que nós, os homens, é que somos ordinários… E toda a gente a saber que tinha sido ele, o meu antecessor, quem estabeleceu (ou melhor, propôs, em Assembleia Geral) o limite dos setenta anos para o exercício de cargos diretivos. 

− Das catraias era de esperar tudo, mas logo da nossa assistente social!... Olha, era uma senhora por quem eu tinha elevada estima e consideração… Afinal, António, quem vê caras, não vê corações…

É uma longa transcrição, esta, que pode aborrecer o leitor, sobretudo se for jovem, com a vida toda pela frente: trata-se de uma conversa, seguramente deprimente, entre dois homens (chamemos-lhes “velhos”…) que eram das minhas relações sociais. E que eu, ainda há alguns anos atrás, costumava encontrar nos sítios habituais da pacata cidade de província onde então vivia: o barbeiro, o Café Central, o Museu Etnográfico, a Universidade Sénior (onde cheguei a dar aulas), o Clube Náutico  e, claro, a IPSS, a associação privada de solidariedade social que era o orgulho da terra, e a que eles, os dois,  estiveram ligados desde a sua fundação.

Eu sabia da história de vida de ambos, mesmo sendo um estranho, para não dizer um “outsider”, chegado há poucos anos do estrangeiro, mais exatamente do Luxemburgo, a minha segunda pátria.

Nos meios pequenos sabe-se tudo ou quase tudo da vida uns dos outros, das doenças, das sacanices, dos amores e até dos negócios (mesmo quando se diz que o segredo é a alma do negócio).

O homem, o engº. Arsénio Marques, que temia o Alzheimer (sem nunca o nomear), morreu há pouco tempo. Não teve "funeral de Estado" mas a câmara municipal acabou por fazer-lhe uma discreta e cínica homenagem póstuma: numa sessão da assembleia municipal, foi aprovado por unanimidade  um voto de pesar pelo seu falecimento e foi-lhe atribuída a medalha de mérito municipal.  Tarde e a más horas, como se costuma dizer.

O outro, o dr. António Queiroz, que fora diretor da IPSS que geria várias creches e lares de idosos em todo o concelho, e depois provedor da misericórdia local (o último cargo que exerceu), está doente, dizem-me que sofre da doença de Parkinson. E, em boa verdade, há alguns anos que não o vejo, não sendo eu visita da família, residente em Lisboa.

Ambos, o Arsénio e o António, eram do mesmo partido, mas com diferentes sensibilidades e experiências de vida. O António, dizia-se,  era da "Opus Dei". E o Arsénio, provavelmente, era "maçon"...

Mas é dele que eu quero falar: retornado, engenheiro técnico, empresário, autarca, dirigente partidário, figura grada da terra. Os seus mandatos como autarca a seguir ao 25 de Aril não terão sido pacíficos ou consensuais. A avaliação dependia muito das simpatias ou antipatias partidárias. Diabolizado por uns, santificado por outros, não deixava ninguém indiferente.

A seu favor tinha a construção de todas as infraestruturas e equipamentos sociais que fizeram a terra dar "um salto para a modernidade"… Abriu estradas, construiu em altura na orla costeira, fez  a rede de saneamento básico, criou o parque industrial, ofereceu terrenos aos investidores de fora,  inaugurou o polidesportivo, fez o passeio marítimo, trouxe o politécnico, pôs o clube de futebol da terra a subir de divisão, convidou  os homens de letras para as feiras do livro, apoiou a banda filarmónica e os bombeiros, deu emprego a muita gente, na câmara e nos serviços municipalizados,  
desenvolveu o turismo, em suma, "pôs a terra no mapa"... Chamavam-lhe o “marquês de Pombal sem acento circunflexo”. O seu apelido era Marques… 

Os insultos grafitados nas paredes da câmara municipal irritavam-no solenemente… Chegou a contratar uma empresa de segurança para apanhar em flagrante os autores dos grafitos… Até tinha uma família, decadente mas ainda com brasão, de alcunha os "Távoras", que concitavam os seus ódios de estimação por causa de um polémico processo de expropriação de terrenos. E com o padre da terra as suas relaçóes também não eram as melhores.  Um dia, o padre, que era dos tesos,    ostensivamente recusou  dar-lhe a comunhão quando soube que ele mantinha uma amante no concelho vizinho.

Só o conheci no ocaso da sua vida política. Era ainda um cacique à moda antiga... e perdia-se por um rabo-de-saia, diziam as más línguas.  Personalidade truculenta,  tinha uma frase lapidar, reveladora da sua repugnância quase atávica para o compromisso e a negociação:

− Não se pode agradar a gregos e troianos, e quem os seus inimigos poupa, às mãos lhe morre.

Os pais do eng.º Arsénio Marques haviam-se conhecido em Cabo Verde. O pai fora expedicionário em São Vicente, durante a II Guerra Mundial, mobilizado pelo RI 5, das Caldas da Rainha. Cavador de enxada, tocador de concertina e poeta popular. A mãe era de Santo Antão, filha e neta de comerciantes e pequenos proprietários de terras. 

Depois de cumprido o serviço militar, o pai do Arsénio fixou-se em Angola, empregando-se nos caminhos de ferro de Benguela. A mãe, depois de uns tempos no Continente,  seguiu-lhe os passos. Ele nasceu em 1944. Foi a avó que transmitiu à mãe os segredos gastronómicos da família.

Não sei muito da sua vida em África. Mas, perguntará o leitor: onde e como nos conhecemos, eu e o Arsénio Marques ?

Eu explico… mas primeiro tenho que falar um pouco de mim… Sou ribatejano da beira rio. Emigrei, "a salto", para o Luxemburgo, em meados dos anos 60, como outros jovens da minha geração, para fugir à tropa e à guerra colonial. Não gosto do termo “fugir”, e muito menos de “fujão”. Já uma vez me chaparam isso à cara…Rejeito o insulto mas tenho que contar a minha história, se não se importam.

Faço aqui a minha declaração de interesses: nunca fui comunista. Mas o meu pai foi preso por estar ligado a um rede clandestina que distribuía o jornal “Avante”… Nunca foi julgado, mas não se livrou de estar preso, arbitrariamente, sem culpa formada, durante pelo menos seis meses…

Julgo que se portou com dignidade na prisão. E, mesmo sob tortura, não denunciou ninguém do Partido (como ele dizia...)  por uma simples razão:  ele não era militante comunista nem pertencia a nenhuma célula clandestina. Em boa verdade, era um simples simpatizante do PCP, o que para a PIDE  era igual. E, depois, ser apanhado a distribuir o "pasquim do Avante", era crime de lesa-Pátria... De qualquer modo, não tinha nomes importantes a dar aos esbirros de Salazar. O jornal chegava sempre misteriosamente de comboio, que vinha de Santa Apolónia, num pacote embrulhado em folhas  do jornal "O Século". A PIDE nunca terá descoberto o "ferroviário vermelho" que preparava a encomenda, e que seguia juntamente com os outros jornais e revistas ao cuidado do quiosque do meu pai... 

Ficámos com o negócio do meu pai, eu e a minha mãe, um quiosque de jornais e revistas, que era o sustento da família. Claro que fiquei com ficha na PIDE, apenas por ser filho de quem era, embora legalmente ainda fosse menor. 

Quando o meu pai regressou a casa, ainda antes de o Marcello Caetano ter substituído o Salazar na Presidência do Conselho de Ministros, eu devia estar a ser chamado para a tropa. Foi aí que tomei a decisão mais difícil e corajosa da minha vida: um antigo colega de escola, que já tinha em França os pais, também eles alentejanos como os meus, desafiou-me a ir com ele… Havia uma carrinha dum passador que partia num fim de semana próximo. Só precisava de 10 contos, o que na época,  em 1967, era muito dinheiro.

Com algumas economias e com o resto emprestado por um tio (cerca de seis ou sete contos, já não me lembro bem), deixei a minha terra sem me despedir sequer dos meus pais… Não os queria comprometer, no caso de vir a ser apanhado na fronteira ou ao atravessar a Espanha do Franco. Pensava escrever-lhes quando chegasse a bom  porto.

Mas tudo correu bem. Fiquei uns dias em Grenoble. E foi de lá que contactei uns parentes afastados que viviam no Luxemburgo, e que me arranjaram os papéis. Cama e mesa, sempre se arranjava por uns tempos. Sabia que não iria, nos anos mais próximos, voltar a ver os meus pais. Mas esperava que a Ditadura caísse ainda antes de eu completar os meus trinta anos. E de facto iria cair, uns anos mais tarde, em 25 de Abril de 1974… (Mesmo assim tarde de mais para o meu pai: morreu cedo, em 1972, e a minha mãe, vinte anos depois.)

É uma dor que trago comigo e que ainda não ultrapassei: não ter podido acompanhar os últimos dias de vida do meu progenitor. Nunca partilhei com ninguém, até agora, e muito menos no Luxemburgo,  as minhas memórias de infância e adolescência. Sempre achei que não poderiam interessar a ninguém. Hoje não tenho a mesma opinião. Às vezes acusam-me de ter dado o "salto" por ter medo de ir parar à “guerra do ultramar”, como então diziam alguns dos saudosos do "Portugal do Minho a Timor". Irei ter mais tarde uma discussão sobre isso com o engº. Arsénio Marques, na terra do seu pai, e que eu irei adotar também como minha.

Confesso que ainda hoje não sei por que razão é que escolhi aquela terra, para voltar ao meu país natal e viver o meu último terço ou quarto de século de vida. Tinha 65 anos em 2009, uma razoável reforma (por comparação com os padrões portugueses da época) e umas boas economias (para quem tinha começado como eu a ganhar a vida como ardina…). Com isso comprei um apartamento à beira-mar, um T3 onde esperava poder receber os amigos e as amigas (poucos, é verdade, mas do peito) que eu fui fazendo ao longo de uma vida de “imigra”. E ainda com uma vaga esperança de, um dia, os meus netos irromperem,  de braços abertos, pela casa dentro...

Não tinha filhos. Ou melhor: os que tive perderam-se, pelos quatro cantos do mundo: uma rapariga a viver algures na Califórnia, e um rapaz que criou raízes na Noruega, depois de casar com uma víquingue.

Fiquei viúvo relativamente cedo, aos 50 e tal anos. A mulher da minha vida morreu de cancro da mama. Era italiana, ou melhor napolitana. Certamente por inépcia minha, nunca consegui que os meus filhos luxemburgueses fizessem de Portugal a sua segunda pátria. Vieram cá, algumas vezes, ainda adolescentes. Mas depois casaram e foram à sua vida. Falamos por telemóvel pelo Natal e pouco mais… Fui à Califórnia conhecer os meus netos. E, claro, dei um salto também à Noruega, aqui mais perto.

Tudo isto para explicar por que é que eu sou mais espetador do que ator, na terra que me acolheu, aos sessenta e tal  anos, depois de regressar do Luxemburgo. Aqui estive ligado à animação sociocultural. E exerci, nos primeiros tempos, os mais diversos ofícios, daqueles pouco ou nada qualificados,  que são desempenhados por qualquer “imigra”: fui varredor municipal, trabalhador agrícola sazonal, trolha da construção civil, operador de caixa de supermercado, ajudante de camionista,  etc. Mas também, mais tarde, radialista, diretor de clube de futebol de “imigras” portugueses, tradutor e guia turístico, jornalista, autarca, etc.

Acabei por montar um pequeno negócio na área da indústria gráfica, cujos principais clientes eram portugueses, ou descendentes de portugueses, mas também italianos. Em boa parte devido aos conhecimentos que tinha, eu e a minha mulher.  Éramos um casal popular nas nossas comunidades. 

Fixei-me nesta cidadezinha do Oeste Estremenho. Abreviando razões, tenho amigos aqui e  no Alentejo. Reformados como eu. Aos alentejanos, meus compadres,  visito-os uma ou duas vezes por ano, em Aljezur,  na costa vicentina.  Gosto do meu sossego, de  ler os meus livros, de ver os meus filmes, e, sobretudo, de contemplar o pôr-do-sol à beira do Atlântico com as Berlengas e o cabo Carvoeiro no horizonte. E tenho alguns hábitos burgueses: não desgosto de comer bem, nisso sou igual ao Arsénio, que também é, ele,  filho de gente pobre. Os pobres têm sempre mais olhos do que barriga, já dizia o meu velhote. 

Um dia, há muitos anos, vim cá com uma representação municipal e uma banda filarmónica.  Do meu município luxemburguês (que não  identifico, porque o país é uma aldeia). Na altura era aqui presidente da Câmara, o engº. Arsénio Marques. Estava no auge da fama, da glória e do proveito. 

Ele tratou-me muito  bem (a mim e aos meus munícipes). Ficámos amigos. Ou melhor, simpatizámos logo um com o outro. Desafiou-me a ficar ou a voltar, quando me reformasse. Ou sempre que me apetecesse. Com cama e mesa à disposição.  Aceitei, vim cá pelo verão, duas ou três vezes. Sempre por minha conta, acrescente-se. No Luxemburgo sempre o tratei também muito bem,  fazendo jus à  tradição de hospitalidade do grão-ducado. Uma terra que ele também aprendeu a amar.  Sempre pusemos de lado as nossas diferenças políticas, ele situava-se mais à direita, eu mais à esquerda. Mas era uma "charmoso", como dizia a minha mulher que ainda o chegou a conhecer.

Depois ele perdeu as eleições (ou já não podia legalmente concorrer a novo mandato, não sei ao certo). Ainda tentou uma carreira política a nível nacional, mas puseram-no na prateleira. Zangado com o seu partido, bateu com a porta e continuou a dedicar-se aos seus negócios.  E a comenda de Belém, que lhe haviam prometido,  nunca chegou em tempo útil, ter-lhe ia feito muito bem ao ego...

No bom tempo, e graças aos amigos de Benguela, do Huambo e de Luanda, matou o galo da UNITA e engoliu o sapo do MPLA (quer dizer, a catana e o martelo, que são mais  indigestos)... Tinha amigos de um lado e do outro, gabava-se ele.

Fez alguns bons negócios, na área da engenharia, planeamento urbano e arquitetura, com um conhecido general que era do seu tempo de escola, e considerado  um dos heróis da batalha do Cuito Canavale. Chegou-me a contar algumas confidèncias do general,  sobre os horrores dessa batalha, que se travou no sul de Angola, entre novembro de 1987 e março de 1988, se não me engano.  E onde o meu amigo perdeu gente conhecida sua. 

 Também chegou a ter, a meias, com esse general, uma empresa de construção civil e obras públicas. Nunca falei muito com ele sobre esses tempos. Mas sei que o sócio passou-lhe a perna. E o capítulo de Angola acabou por fechar-se na vida dele. Para mais, e para seu grande desgosto,  ele nunca chegou a conseguir obter a nacionalidade angolana,  apesar de lá ter nascido e vivido. Falava da sua terra com grande paixão e saudade. Em contrapartida tinha um filho a viver em Cabo Verde, onde explorava um pequeno hotel, em sociedade com um oitro estrangeiro, italiano ou francès, não sei ao certo.

Sei que fez a tropa (e a guerra) na Guiné.  Não posso dar muitos pormenores, porque sou um zero à esquerda nessas matérias.  Julgo que pertencia à arma da engenharia militar. Tanto quanto me lembro das nossas conversas, ele não deixava de simpatizar com o Amílcar Cabral, filho de pai cabo-verdiano. Mas achava um disparate a ideia de união ou unidade entre a Guiné-Bissau e Cabo-Verde. 

−  O Amílcar Cabral tinha tanto de génio como de ingénuo   recordo-me de ele me ter dito uma vez. 

−  Ingénuo ?... − indaguei eu.

  E viu-se: deixou-se matar por um dos seus. Em vez de mandar limpar o sebo a esse tal Inocêncio Cani, que era guineense, não, deu-lhe uma segunda oportunidade para  ele se regenerar... 

O Arsénio tinha uma costela cabo-verdiana, pelo lado da mãe que, garantia ele, era bisneta de escravos... 

− E eu trisneto, com muita muita honra, sem qualquer complexo... Tive pena que Cabo Verde tivesse entrado, em 1975, na  paranoia da dipanda, a reboque do PAIGC. Arrepiaram caminho, anos mais tarde, que a euforia revolucionária  não enche barriga...

Dipanda ?!...

− Ah!, desculpa, é angolês, uma corruptela de independência...

Eu aqui não quis comentar, nem nunca disse que tinha tido amigos cabo-verdianos que apoiavam o PAIGC no Luxemburgo... Depois meteram a viola no saco, quando se deu o golpe de Estado do 'Nino' Vieira, em 1989, se bem recordo... Foi o fim de muitas ilusões... "A segunda morte do pai das nossas nacionalidades", chorava um dos meus amigos que era cantor, com discos publicados  na Holanda... E, para mim, também, embora eu nunca tivesse conhecido a realidade da Guiné-Bissau nem de Cabo-Verde, antes e depois da "luta de libertação", como eles gostavam de dizer... Mas o direito à independência, tanto da Guiné-Bissau, como de Cabo Verde, esse, sempre o reconheci. Como lá se chegou, num caso e no outro, isso eu já não discutia, era assunto para os guineenses, os cabo-verdianos, os portugueses  e os historiadores... E eu, afinal, era cidadão luxemburguês...(embora mantivesse a cidadania portuguesa).

 Nos últimos anos, senti o meu amigo Arsénio Marques mais alquebrado, para não dizer deprimido:  o fogo do seu vulcão havia-se extinguido, e "a terra do seu pai" já não era mais a mesma para ele... Queixava-se que, no fundo, havia uma surda discrimição contra os retornados e os mestiços, como ele. O seu antigo partido nunca mais recuperara o poder, nem o antigo autarca era chamado para nada... O sonho de voltar a Angola estava cada vez mais distante, e em Cabo Verde também não se sentia em casa, embora uma vez por outra fosse visitar o filho.

O nosso convívio, por outro lado,  também se foi espaçando... Afinal, pertencíamos a mundos muito diferentes.  Incentivei-o a escrever as suas memórias. Mas a escrita não era o seu forte. 

− Escrever, o quê ? Para quem ?... Sempre fui um homem de ação, não de  pensamento... Tu é que és um homem de letras...

Divorciado, com um filho e netos a viver em Cabo Verde e nos Países Baixos, não tinha muitas amizades no fim da sua vida. O irmão, antigo professor primário, também já tinha partido. Para minha grande surpresa e desgosto, o Arsénio  suicidou-se com um tiro nas têmporas, na casa da amante.  Uma coisa premeditada. Na véspera, ainda me mandara uma mensagem por telemóvel: "Gostei de te conhecer. Um candando" (#). Nunca imaginei que ele pudesse fazer uma coisa dessas. Afinal, não foi a doença do Alemão que o matou. Prefiro, em todo o caso, pensar que  ele partiu para a sua última viagem, desencantado mas lúcido...

(#) Candando, do quimbundo: abraço. (LG)
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 22 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23803: A galeria dos meus heróis (48): Adeus e até à próstata! (Luís Graça)

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24229: Notas de leitura (1573): "Seis Irmãos em África", segunda edição; Porto, 2017; edição de autor, mas os autores são seis: Fernando, Rogério, Dálio, Carlos, Álvaro, Abílio, quem compilou os textos foi o Abílio, trata-se dos manos Magro que percorreram diferentes paragens africanas (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Fernando Magro é um reincidente, no blogue já falei das Memórias da Guiné, ele depois apareceu e mais contou. O que nós não sabíamos é que ele era o mais velho de 6 irmãos que andaram por Angola, Guiné e Moçambique, estiveram 5 deles em simultâneo nas fileiras, entenderam-se para organizar as suas memórias, aqui temos "Seis Irmãos em África". Hoje falamos dos dois mais palradores, Fernando e Rogério, terá sido este o que mais pensou (é esta a opinião de todos os outros), mais adiante falaremos do Dálio, do Carlos, do Álvaro e do Abílio, terão constituído uma família muito unida, lembram no relato deste memorial a mãe Adelina, a 2.ª comandante, é um texto muito bonito: "Os tempos eram difíceis, as bocas eram muitas, os mancebos eram 'levados da breca', mas a 2.ª comandante nunca fraquejava e demonstrava possuir a força mental que um verdadeiro militar deve possuir em situações adversas e era um exemplo vivo para os mancebos em fim de formação. Descansa em paz, mãe. Regressámos todos sãos e salvos."

Um abraço do
Mário



Os seis manos Magro, façanha única, foram todos à guerra (1)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Seis Irmãos em África", segunda edição, Porto, 2017, edição de autor, mas os autores são seis: Fernando, Rogério, Dálio, Carlos, Álvaro, Abílio, quem compilou os textos foi o Abílio, trata-se dos manos Magro que percorreram diferentes paragens africanas. Nasceram entre 1936 e 1951, a casa paterna, repleta de juventude, ficou num espaço de dois ou três anos, vazia. “Em 1971, estavam quatro dos seis irmãos a cumprir serviço militar em África, e em 1972, quando o irmão mais novo foi incorporado no Exército, estavam ainda esses quatro irmãos em pleno nas Forças Armadas: Fernando e Álvaro na Guiné, Carlos em Angola, e Dálio no Hospital Militar de Doenças Infectocontagiosas, em Lisboa, evacuado de Moçambique.” Será provavelmente um caso único em Portugal.

O Rogério foi o primeiro a partir, mobilizado para a Angola em 1967 e regressado em 1969, passou à disponibilidade antes de qualquer outro irmão ter sido mobilizado. O Fernando (de nós bem conhecido, com histórico detalhado no blogue), o mais velho, depois de ter cumprido o serviço militar obrigatório entre 1958 e 1960, voltou a ser incorporado em 1969, permaneceu na Guiné de 1970 a 1972.
Dálio, que andava a estudar, foi pedindo adiamento, acabou incorporado em 1969, mobilizado para Moçambique, também de 1970 a 1972, só passou à disponibilidade em janeiro de 1974, este a tratar-se no Hospital Militar de Doenças Infectocontagiosas.
Carlos optou por se oferecer como voluntário para a Força Aérea e foi incorporado também em 1969, seguiu para a Angola, ali permaneceu de 1970 a 1972, e só passou à disponibilidade em 1974, já que o tempo mínimo de prestação de serviço na FAP era de seis anos.
Álvaro, com menos de dois anos de idade do que o Carlos, foi incorporado em 1970 e mobilizado para a Guiné de 1971 a 1974, foi contemporâneo do irmão Fernando.
Abílio, com menos de um ano e meio do que o Álvaro, foi incorporado em 1972 e mobilizado para a Guiné em 1973, onde conviveu com o irmão Álvaro e só regressou em setembro de 1974.
Assim se explica a permanência e simultâneo de cinco irmãos nas Forças Armadas portuguesas.

Os manos Magro decidiram agora fazer a compilação do acervo das suas memórias, como escrevem, “relatos simples, sem bazófias ou falsos heroísmos, de episódios vividos no dia a dia nos três teatros de guerra; na maioria dos casos, só viveram raras situações de perigo.”

Começa-se pelo mano Fernando, bem conhecido no blogue. Andava em vilegiatura nas termas de Monte Real, e conversando com um antigo companheiro da Escola Prática de Vendas Novas, curso de 1958, descobriu que em breve iria ser incorporado, fez curso em Mafra, em 1969 e no processo da mobilização foram revelados graves problemas de saúde, resolve escrever ao General Spínola, põe-se à disposição, como técnico de engenharia, para cooperar de acordo com os seus conhecimentos. Foi colocado nos serviços de reordenamentos populacionais e mais adiante no Batalhão de Engenharia n.º 447, deixa-nos um conjunto de apontamentos onde sobressaem a famosa reunião de abril de 1970 em que o general Spínola convocou para uma reunião na grande sala do Palácio muitos oficiais e anunciou que se entrara numa fase de negociações, ficariam doravante excluídas atitudes ofensivas, dias depois desmoronou-se tal expetativa, foi o massacre de oficiais em Jolmete, em 20 de abril de 1970. Fala-nos do seu quotidiano familiar, dos problemas suscitados pelos reordenamentos populacionais, o trabalho desenvolvido no Batalhão de Engenharia, as aulas que deu na Escola Comercial e Industrial de Bissau, os acontecimentos inerentes à operação Mar Verde, o relato feito pelo tenente Januário nessa operação se entregou com o seu pelotão às autoridades da Guiné-Conacri, a sua recordação das amostras de 1971 e até de uma emboscada a uma coluna militar do BENG 447 em 22 de março de 1974, entre Piche e Nova Lamego.

Temos agora o mano Rogério, furriel de Infantaria, Angola, percorreu Lucusse, Gago Coutinho e Dundo, CCAÇ 1719/BCCAÇ 1920. Os manos Magro admitem que terá sido o Rogério o que terá tido o percurso militar mais duro, o que enfrentou maiores perigos, preparou-se nas Caldas da Rainha e em Tavira. Participou em várias operações na zona militar leste, louvado pelo seu comportamento numa emboscada e pelas suas qualidades militares evidenciadas durante cerca de 2 anos. Fala-nos de 48 dias em Lumbala, a comer rações de combate, não esquece os desarranjos intestinais, as lavagens das fardas no rio Zambeze, um episódio pícaro na compra de frangos, a emboscada na picada de Gago Coutinho para Ninda, paira sempre na narrativa a questão da comida, não esquece no início de 1969, na capital da Diamang uma estadia para descomprimir e repousar, é aqui que se viu no papel de mestre de obras, havia que construir uma escola, conta-nos todo o episódio. Segue-se a peripécia da ordem de prisão a um piquete, cumpriu o castigo na caserna, e conclui, pícaro: “Quinze militares foram presos por não existirem meios que possibilitassem a execução do serviço de que estavam incumbidos; os mesmos quinze militares foram soltos no segundo dia de prisão a fim de participarem numa operação.” São as tais coisas absurdas que só podem acontecer numa atmosfera de guerra.

O mano Rogério é decididamente aquele que mais penou, como descreverá na operação Lumai, depois como a morte lhe passou perto, descreve a coluna para Caripande, depois a coluna que foi buscar o T-6 a Mussuma e os seus aspetos insólitos, o destacamento para Sessa, a missão acabou por se revelar um descanso, e depois partiram com destino ao Dundu, ali a sua companhia ficou até ao fim da comissão. Deixa-nos um retrato humaníssimo do seu comandante de companhia, o capitão Azuil Dias de Carvalho. “Percorremos quase todo o Leste de Angola em operações militares; estivemos no Cazombo, no Lumbala, etc. efetuando operações com os fuzileiros, paraquedistas e comandos. O capitão Azuil foi sempre um acérrimo defensor dos homens que comandava.” Ferido em combate, no helicóptero que o transportou para o Luso terá proferido as seguintes palavras ao comandante de Batalhão: “Meu comandante, espero que os meus homens não sejam prejudicados na transferência que se vai efetuar pelo motivo de me encontrar ferido e ausente.”

E findo este tocante In memorium, vamos agora falar de Dálio Magro, alferes-miliciano de Engenharia, Companhia de Engenharia 2686, Marrupa, Moçambique, 1970-1972.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24222: Notas de leitura (1572): "As Voltas do Passado, A Guerra Colonial e as suas Lutas de Libertação", com organização de Miguel Cardina e Bruno Sena Martins, com vasto número de colaboradores; Tinta-da-China, 2018 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24228: (Ex)citações (426): Recordações dos Comandos Africanos em Paunca, em setembro de 1970 (Valdemar Queiroz e Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 11, 1969/70)


 
Guiné > Zona Leste > Regiãod e Gabu > Paunca > CART 11 (1969/70) > Rua principal e quartel, com o Valdemar Queiroz numa das portas de armas, na primeira foto.

Fotos (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentários ao poste P24224 (*), da parte de dois "Lacraus", ex-fur mil, Valdemar Queiroz e Abílio Duarte, da CART 2479 (que em janeiro de 1970 deu origem à CART 11, "Os Lacraus", que por sua vez em junho de 1972 passou a designar-se CCAÇ 11);  os dois passaram por  Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, e outros sítios do Leste, 1969/70; sabemos que o Abílio Duarte estava em Paunca na altura do Ramadão de 1970, que nesse ano começou a 31 de outubro e terminou a 30 de novembro; sobre Paunca temos mais de 7 dezenas de referências.


(i) Valdemar Queiroz:

Em Setembro de 1970, eu a minha CART 11 estávamos em Paunca e no destacamento de Guiro Iero Bocari.

Eu não me recordo da Companhia de Comandos Africanos estar no nosso Quartel em Paunca [sem setembro de 1970], talvez por andar numa segurança à vacinação que se efetuou na população das tabancas da zona.

Dentro do triângulo Sara Bacar-Paunca / Sonaco-Pirada havia várias tabancas sem tropa (não sei se em autodefesa) e fazíamos visitas com frequência. Também, com a chegada da nossa CART 11, de soldados fulas, ou com falta de efetivos a partir do Senegal, deixou de haver incursões do IN naquela zona

Calhando, o Abílio Duarte se lembre dessa visita.

Valdemar Queiroz | 15 de abril de 2023 às 16:45 

(ii) Abilio Duarte:

Com certeza... Amigo e camarada Valdemar, como se fosse ontem.

Estava em Paunca, na altura em que a Companhia de Comados do cap Bacar Jaló foi fazer uma operação ao Senegal.

Sem mais nem menos, ninguém sabia de nada, e entra aquela malta toda no nosso aquartelamento em Paunca, e eu digo para mim: "Porra, estes gajos vêm a fugir de onde?!...

Passada a surpresa, vim a saber o que se tinha passado, e o capitão Aniceto  Pinto chamou a nossa malta, e fez um breve briefing: era necessário pôr a malta nas valas e abrigos, pois os comandos tinham a sensação que vinham a ser seguidos pelo PAIGC.

Em seguida , o cap Jaló deu umas coordenadas, e fez-se fogo do obus 140 mm, e de morteiro 80 mm.

Ainda nesse fim de tarde, apareceu uma coluna de Unimogs, que vieram buscar os Comados Africanos, e zarparam, não sei para onde.

Estava tudo combinado, e nem o Aniceto sabia  de alguma coisa. O segredo é a alma do negócio.

Só ouvi falar novamente desta gente, na operação em Conacri, em que o pelotão do ten Januário foi apanhado, e fuzilado.

Recordando a Operação Mar Verde,  eu dormia numa tabanca, e numa manhã, veio o dono da dita, me acordando: "Furiel , tuga está em Conacri !!!"...

Fui ouvir a rádio que ele estava a sintonizar e...tudo de boca aberta, apesar do meu mau francês, lá percebi o que se estava a passar.

Ligando para o PIFAS, e Emissora Nacional, era tudo mentira.

Abraço Valdemar e as tuas melhoras.

Abílio Duarte | 15 de abril de 2023 às 17:25 

(iii) Valdemar Queiroz:

Duarte, ainda bem que te lembras do que aconteceu. Não me lembro de nada, nem sequer de ouvir falar do que tu agora contaste. Até o História da Unidade não refere esse acontecimento.

Devia estar em Guiro Iero Bocari ou com um grande bioxene que limpou o disco rijo.

Abraço e saúde da boa


Último poste da série (Ex)citações: P24227 (**)




Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Carta  de Paunca (1957) (Escala 1/50 mil) > Detalhes: posição relativa de Paunca, Paiama, Sinchã Abdulai e Guiro Iero Bocari, junto à fronteira com o Senegal.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014)

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Notas do editor:

(*) vd. poste de 15 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24224: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXIV: As previsões agoirentas do adivinho Mamadu Candé que nos via, a mim e ao João Bacar Jaló, a viajar num barco para desembarcarmos numa grande cidade e aí a sofrer muitas baixas (... só não nos disse o nome da cidade: Conacri...)

(**) Último poste da série > 16 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24227: (Ex)citações (425): o recurso ao pensamento mágico, à superstição, aos amuletos e às artes adivinhatórias, etc., na guerra, de um lado e do outro (Luís Graça)