sábado, 15 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24224: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXIV: As previsões agoirentas do adivinho Mamadu Candé que nos via, a mim e ao João Bacar Jaló, a viajar num barco para desembarcarmos numa grande cidade e aí a sofrer muitas baixas (... só não nos disse o nome da cidade: Conacri...)



Guiné > s/l > 1ª CCmds Africanos > c. 1970 > Da esquerda para a direita, em pé, os então alferes graduados 'cmds' Saiegh e Sisseco, o major inf Leal de Almeida, o tenente graduado 'cmd' João Bacar Jaló e outro alferes. Em baixo, o ex-fur mil pil Ramos, e o alferes graduado 'cmd Justo Nascimento. Foto reproduzida no livro, pág. 167. A foto é do Jorge Caiano, ex-1º cabo especialista, melec/av (Bissalanca, BA12, 1969/70), a residir desde 1974 no Canadá (Poste P3897). 

Foto (e legenda): © Jorge Caiano (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. C
ontinuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital,  do seu livro 
"Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O seu editor literário, ou "copydesk", o seu camarada e amigo Virgínio Briote,  facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.

[Floto à direita > O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966. (Foto reproduzida no livro, na pág. 149) ]

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri,  começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii)  depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido,  por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757; 

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló; 

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual vai participafr

 

Capa do livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.  



Guiné > Região de Gabu > Carta de Paunca (1957) ( Escala 1/50 mil > Posição relativa de Paunca e do rio Xaianga (ou Geba Estreito) que vem do Senegal, atravessando a fronteira no marco 74

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas fa Guiné (2023)



Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um    luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXIV:  
 

As previsões agoirentas do adivinho Mamadu Candé que nos via, a mim e ao João Bacar Jaló, a viajar num barco para desembarcarmos numa grande cidade e aí a sofrer muitas baixas


Em setembro
 [de 1970] , na última saída da companhia para os lados do rio Xaianga, quando estávamos a regressar a Paunca [1], um guarda da administração civil, de nome Sore Bombeiro, viu-nos passar nas viaturas. Esse homem viveu muitos anos com o capitão João Bacar Jaló, na vila de Catió. Quando me viu, fez-me sinal para eu ir ter com ele.

Mal a coluna entrou no aquartelamento de Paunca, fui procurá-lo e vi-o a falar com um homem também meu conhecido, o adivinho Mamadu Candé.

Quando eu e o capitão João Bacar, em feve
reiro [de 1970] , tínhamos vindo de Bissau para Fá Mandinga, para formarmos a CCmds da Guiné, o capitão Barbosa Henriques  [o instrutor]   deixou-nos em Bambadinca para tratarmos da situação das nossas famílias. E foi nessa ocasião que, em casa de um companheiro de João Bacar, encontrei esse tal homem, o Mamadu Candé, um Homem Grande e adivinho muito respeitado.

Pois, então, em Paunca, quando o encontrei, Mamadu Candé disse-me, solenemente, para eu avisar o capitão João Bacar que fizesse tudo por tudo para que a nossa companhia não fosse deslocada para ocidente de Fá Mandinga. Que nos ajudava a tratar de nos mantermos no leste, que a nossa fama já era grande e que, assim, o leste não seria conquistado. E disse mais: que nas suas previsões nos tinha visto a viajar num barco para desembarcarmos numa grande cidade e que nessa cidade íamos começar a sofrer muitas baixas.

Quando lhe perguntei que cidade era essa, se ficava na Europa ou em África, ele respondeu que não sabia. Eu acho que ele sabia muito bem qual era a cidade, não queria era dizer-nos.

Depois de acabarmos a conversa corri para uma viatura da coluna e seguimos em direcção a Bajocunda e, só à noite, quando chegámos contei a conversa ao João Bacar, mas ele não deu qualquer resposta.

Em finais de outubro de 1970, estava eu e o furriel Talabio a regressar a Fá Mandinga, tive conhecimento que o capitão João Bacar ia estar trinta dias de férias. Chegado o dia, ele e o Talabio foram para Bissau com o major Leal de Almeida, o supervisor da nossa companhia.

Nessa data, dois grupos nossos partiram para o Enxalé[2] e eu fui com um dos grupos. Os outros grupos da companhia ficaram em Fá.

Já no Enxalé, quando estávamos a regressar da primeira saída[3], chegou uma mensagem para recolhermos todas as unidades o mais rapidamente possível. Nem houve tempo para descansar da saída, arrumámos as nossas bagagens e corremos para o porto, para apanhar o barco para o Xime. Aqui chegados entrámos para as viaturas e rumámos para . Depois de pousarmos as armas e os equipamentos seguimos para Bafatá.

Eu, logo de manhã fui ao mercado ver gente conhecida. Havia muito peixe nas bancas e comprei uma cabeça de bicuda, que a minha mulher levou para casa para fazerem uma caldeirada, enquanto fiquei a conversar com os meus amigos.

A certa altura, um soldado chegou ao pé de mim e, fazendo-me a continência, eu era furriel então, disse que queria falar comigo em particular. O que tinha para me dizer era que a companhia estava a ser recolhida, por ordem de Bissau. Perguntei-lhe pelo major Leal de Almeida, ele não sabia a resposta, perguntei-lhe quem tinha dado a ordem e ele também não tinha resposta para dar.

Então, tomei o meu lugar na viatura e dirigi-me para casa. Quando cheguei a comida ainda não estava pronta, mudei outra vez de roupa e despedi-me da família, com grande pena minha e deles. A minha mãe perguntou se eu não esperava pelo almoço e eu respondi que não tinha tempo para esperar, que ia sair com fome. Uma facada no coração da minha mãe, foi o que ela deve ter sentido.

Quando voltei a ver a minha mãe, quase um mês depois, vi-a muito magra. Quando me abraçou, senti o seu coração bater de amor e sentimento que ela tinha por mim. Sei que a minha mãe só comeu à vontade, a partir desse dia. 

Continua: vd. poste P233804 (**).

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Parènteses rectos com notas /  Subtítulo / Negritos: LG]
______________

Notas do autor ou do editor literário (VB):

[1] Nota do editor: desde 26 Julho 1970, guarnecida com a CCaç 2658 e, desde 15 Agosto 1970, com a CArt 11 / CTIG.

[2] Nota do editor: destacamento da CArt 2715.

[3] Nota do editor: 30 Outubro/07 Novembro 1970.
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Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 6 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24204: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXIII: Na 1ª CCmds Africanos em 1970: de Fá Mandinga a Bajocunda, Pirada e Senegal, respondendo ao terror do PAIGC

(**) Vd. poste de 22 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23804: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte X: Op Mar Verde, há 52 anos, em 22/11/1970: para Conacri, rapidamente e em força.

7 comentários:

Valdemar Silva disse...

Em Setembro de 1970, eu a minha CART11 estávamos em Paúnca e no destacamento de Guiro Iero Bocari.
Eu não me recordo da C.Comandos Africanos estar no nosso Quartel em Paúnca, talvez por andar numa segurança à vacinação que se efectuou na população das tabancas da zona.
Dentro do triângulo Sara Bacar-Paúnca/Sonaco-Pirada havia várias tabancas sem tropa (não sei se em autodefesa) e fazíamos visitas com frequência. Também, com a chegada da nossa CART11, de soldados fulas, ou com falta de efectivos a partir do Senegal, deixou de haver incursões do IN naquela zona
Calhando, o Abílio Duarte se lembre dessa visita.

Valdemar Queiroz

Abilio Duarte disse...

Com certeza... Amigo e camarada Valdemar, como se fosse ontem.

Estava em Paunca, na altura em que a Companhia de comados do Cap. Bacar Jaló, foi fazer uma operação ao Senegal.

Sem mais nem menos, ninguém sabia de nada, e entra aquela malta toda no nosso aquartelamento em Paunca, e eu digo para mim, porra estes gajos vêm a fugir de onde?

Passada a surpresa, vim a saber, o que se tinha passado, e o Capitão Aniceto chamou a nossa malta, e fez um breve briefing, era necessário por a malta nas valas e abrigos, pois os comandos tinham a sensação que vinham a ser seguidos pelo PAIGC.

Em seguida , o Cap, Jaló deu umas coordenadas, e fez-se fogo do canhão 140 mm, e de morteiro 80 mm.

Ainda nesse fim de tarde, apareceu uma coluna de hunimogs, que vieram buscar os Comados Africanos, e zarparam, não sei para onde.

Estava tudo combinado, e nem 0 Aniceto sabia , de alguma coisa.

O segredo é a alma do megócio.

Só ouvi falar novamente desta gente, na operação em Conakri, em que o pelotão do Ten. Januário foi apanhado, e fuzilado.

Recordando a operação Mar Verde , eu dormia numa tabanca, e numa manhã, veio o dono da dita, me acordando, Furiel , tuga esta em Conacri !!!

Fui ouvir a rádio que ele estava a sintonizar e...tudo de boca aberta, apesar do meu mau francês, lá percebi o que se estava a passar.

Ligando para o PIFAS, e EN, era tudo mentira.

Abraço Valdemar e as tuas melhoras.

Abílio Duarte

Valdemar Silva disse...

Duarte, ainda bem que te lembras do que aconteceu.
Não me lembro de nada, nem sequer de ouvir falar do que tu agora contaste. Até o História da Unidade não refere esse acontecimento.
Devia estar em Guiro Iero Bocari ou com um grande bioxene que limpou o disco rijo.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tal como os seus patrícios guineenses, muçulmanos, animistas ou cristãos, o Amadu Djaló era supersticioso. Veja-se a importância que ele dá no seu livro de memórias às revelações dos adivinhos.

Neste caso, em Paunca, ele recebe uma mensagem misteriosa que deve transmitir ao seu comandante, João Bacar Jaló, ambos fulas e muçulmanos. A CCmds Africanos deve ficar no leste e nunca sair de lá. O adivinho Mamadu Candé, homem grande e respeitado na suas artes adivinhatórias, que ele já conhecia de Bambadinca, diz que a CCmds Africanos vai ser confrontada com um cenário de tragédia. O adivinho vê o Amadu Djaló e o João Bacar metidos num barco a caminho de uma grande cidade, aonde desembarcam e onde sofrem muitas baixas.
Trata-se de uma premonição da Operação Mar Verde, o desembarque anfíbio em Conacri em 22/11/1970... Ou será antes uma reconstituição feita "a posteriori", muitos anos depois, pelo Amadu ?

O adivinho não lhe revela pormenores, de qualquer modo, uma cidade grande, junto ao mar, alvo da ação dos comandos africanos, só podia ser nos países limítrofes, Dakar (Senegal) ou Conacri (República da Guiné).

O recurso a adivinhos, para saber o futuro e aliviar a angústia da incerteza, devia ajudar os combatentes de um lado e do outro a exorcizar o medo, enfim é um ato de securização, tal como ob uso de amuletos (ou mesinhos) que protegem o corpo contra as balas do inimigo, era muito frequente, nesse tempo, entre os guineenses, quer do PAIGC, quer das nossas tropas.

Amílcar Cabral sempre lutou contra estes aspetos "menos racionais" do comportamento dos seus militantes, e em particular dos seus combatentes. O 'Nino Vieira', por exemplo, não se deslocava no Mato em situações de combate sem o seu arsenal de amuletos. Quem o diz é o comandante Bobo Keita (ou Queita) (In: Norberto Tavares de Carvalho, De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita. Edição de autor, Porto, 2011. (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11). Posfácio de António Marques Lopes. p. 197).

Abilio Duarte disse...

Olá Luís,
Eu sou cristão, católico não praticante, aquando da minha ida para a Guiné, a minha mãe, deu -me um saquinho, e que eu o levasse sempre comigo. Hoje está na minha mesinha de cabeceira.

Para mim, aquilo tornou-se um talismã.

Eu brincava com os soldados fulas da minha CAR.11, de que também tinha um ronco, e era mezinha de tubaco.

Trazia num dos bolsos do meu camuflado, durante 22 meses, nunca o abandonei... das duas uma, ou foi do saquinho, ou das rezas, da minha mãe.

Por isso, e apesar de muitas das minhas descrenças, em relação ás religiões, eu no dia 20 de Julho de 1970, julgo que enganei a morte, por duas vezes.

Assim, cá vamos, por mais uns tempos, o azar que nessa data tocou, ao Aledjei Silá, e que veio a falecer, eu que vinha atrás dele, a sorte ou o as rezas, me livraram daquele martírio.

Abraço, Abílio Duarte

Valdemar Silva disse...

Pois foi, Duarte.
Eu estava de férias, foi quando o teu Pelotão respondeu ao ataque à pequena tabanca de Guiro Iero Bocari, que, depois, passou a Destacamento a nível de dois Pelotões.

Quanto a amuletos, a minha mãe meteu na minha carteira um santinho para me proteger e também rezava para eu regressar sãozinho. Eu até lhe dizia 'reza é para a guerra acabar'.

Não sei te lembras, os soldados fulas diziam 'branco usa mezinha de fio e cruz de ouro ao pescoço e nome da mulher no braço para não morrer sozinho'.

O Ussumane Colubali, o soldado da metralhadora da minha Secção ofereceu-me um ronco, um pequeno corno envolto em cabedal, para usar no cinturão para ter sorte.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Os meus soldados também usavam, ou não fossem fulas, amuletos (no mínimo, um saquinho de coro com versículos do Alcorão, em árabe, diziam-me)... A maior parte de nós usava o fio (de ouro ou prata) com o crucifixo ou medalhas de santinhos/santinhos... Eu nunca usei, e ia-me lixando...

Os artesáos que faziam estes amuletos devem ter feito um bom negócio. Agora que o Ramadão chegou ao fim, talvez o Cherno Baldé tenha mais tempo e vagar e nos possa explicar melhor o uso de amuletos (que começa logo que uma criança nasce)... LG