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segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26064: Elementos para a história do Pel Caç Nat 54, "Águias Negras" (1966/74) - Parte III: Em Porto Gole, com a CART 1661 (de fev67 a mar68)...Quem se lembra do nome do ten mil médico, de origem goesa ? E do cap art Figueiredo ? E do nosso soldado "Papá das pernas altas", que ia ptra o mato em cuecas ? (José António Viegas)



Foto nº 1 > Guiné >  s/l [ Porto Gole]> s/d [1967/68] >  Eu (à esquerda) e o tenente médico da CART  1661,  mais o nosso "companheiro" [um macaco-cão]


Foto nº 2A > Guiné >  s/l [ Porto Gole]> s/d [1967/68] >  O cap art Figueiredo, sentado, e o "Papá das meias altas", de pé (1)


Foto nº 2B > Guiné >  s/l [ Porto Gole]> s/d [1967/68] >  O cap art Figueiredo, sentado, e o "Papá das meias altas", de pé (2)


Foto nº 2 > Guiné >  s/l [ Porto Gole]> s/d [1967/68] > Numa das várias operações na zona de Porto Gole, sentado descansando o capitão Figueiredo, cmdt da CART 1661 (em primeiro plano); de pé, um militar guineense [do Pel Caç Nat 54 ] conhecido como o "Papá das pernas altas", não gostava de camuflado,  era esta a indumentária com que saía para as operações.


Fotos (e legenda): © José António Viegas (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




O algarvio José António Viegas, nosso grã-tabanqueiro nº 587 (desde 11 de novembro de 2012), uma fonte privilegiada de informação sobre o seu Pel Caç Nat 54, de que é um dos "pais-fundadores"; as suas recordaçóes CTIG, de 1966 a 1968, são preciosas para se reconstituir a história desta subunidade (1966/74)... Infelizmente, deste dos outros Pel Caç Nat ... "não reza a História" .

 

1. Mensagem de José António Viegas, ex-fur mil do Pel Caç Nat 54 (Bolama, Enxalé,Missirá, Porto Gole e Ilha das Galinhas, 1966/68):

Data - segunda, 14/10/2024, 19:39

Assunto  - Recordações


Na 1ª foto eu e o médico da CART  1661 mais o nosso "companheiro" 
[um macaco-cão]
 
Tentei com vários camaradas da 1661 saber o nome do médico que acho era de origem goesa, mas não consegui que se recordem, nem sequer o enfermeiro.

Na 2ª foto, numa das várias operações na zona de Porto Gole, sentado descansando o capitão Figueiredo; de pé, um militar guineense 
[do Pel Caç Nat 54 ] conhecido como o "Papá das pernas altas", não gostava de camuflado,  era esta a indumentária com que saía para as operações.

Cumprimentos
Um abraço


2. Sabe-se que o Pel Caç Nat 54,  no início, em Bolama era constituído pelo alf mil  Carlos Alberto de Almeida e Marchã (ou Marchand); os fur mil  Álvaro Valentim Antunes (que será "morto na 1ª mina"), Arlindo Alves da Costa ("ferido na segunda mina", DFA); e José António Viegas; os 1ºs cabos Manuel Januário (DFA), Coelho (DFA) e João Simão (telegrafista); mais os soldados, do recrutamento local,que  eram das etnias Papel, Fula, Mandinga e Olof (um deles).

Em fevereiro de 1967, aquando da visita do genb Arnaldo Schukz, o Pel Caç Nat 54 estava em Porto Gole, juntamente já com parte do pessoal da CART 1611.

Esta subunidade, a CART 1661, passou por Fá Mandinga, Enxalé, Bissá e Porto Gole. Partiu em 1 de fevereiro de 1967 e regressou em 19 de Novembro de 1968. Teve três comandantes: 



Foto nº 3 > Guiné > Porto Gole > Fevereiro de 1967 > V
isita do general Arnaldo Schulz  e do brigadeiro Reimão Nogueira ao destacamento, onde se encontravam o Pel Caç Nat 54 e parte da CART 1661. Em primeiro plano, de costas, o tenente médico da CART 1661 (à direita)  e o alferes Carlos Marchã (ou Marchand),  comandante do Pel Caç Nat 54 (à esquerda).



Foto nº 3A > Guiné > Porto Gole, fevereiro de 1967 > O general Arnaldo Schulz, de máquina fotográfica ao ombro...  Em primeiro plano, visto de perfil, 
o tenente Médico da CART 1661, à direita,


Foto (e legenda): © José António Viegas (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


3. Companhia de Artilharia nº 1661 > Ficha de unidade

Identificação CArt 1661
Unidade Mob: RAC - Oeiras

Cmdt: Cap Mil Art Luís Vassalo Namorado Rosa | Alf Mil Art Fernando António de Sá | Cap Art Manuel Jorge Dias de Sousa Figueiredo
Divisa: -

Partida: Embarque em 01Fev67; desembarque em 06Fev67 | Regresso: Embarque em 19Nov68
 
Síntese da Actividade Operacional

Em 6fev67, deslocou-se para Fá Mandinga, a fim de substituir a CCaç 818 e realizar, inicialmente, um curto período de adaptação operacional, sob orientaçã do BCaç 1888 e actuar depois nas regiões de Xime, Enxalé e Xitole, até 8mar67.


Após rotação, por fracções, com a CCaç 1439, assumiu em 3abr67 a responsabilidade do subsector de Enxalé, com pelotões destacados em Missirá, Porto Gole e Bissá, mantendo-se integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1888 e a partir de 1jul67 do BCaç 1912, por alteração dos limites dos sectores daqueles batalhões.

Em 21dez67, a sede da subunidade foi transferida para Porto Gole, com destacamentos em Enxalé e Bissá, mantendo-se no mesmo sector do BCaç 1912, onde a par de várias operações e acções efectuadas nas regiões de Mato Cão, Mantém, Malafo e Colicunda, orientou a sua actividade para a construção e desenvolvimento dos reordenamentos de Enxalé e Bissá, este a partir de mar68.

Em 7nov68, foi rendida no subsector de Porto Gole pela CArt 2411, tendo recolhido seguidamente a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n.º 81 - 2.ª Div/4ª Sec, do AHM).
Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002,
pág. 450



Infogravura: © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné  (2009)





O autor, Abel Rei (ex-1º cabo at art, CART 1661, 1967/68, em Porto Gole, aqui na foto à esquerda  escrevendo o seu diário) nos possa dar uma ajuda, identificando o tenente médico da companhia... À direita,   a capa do seu livro,"Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 196/1968". [Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira. Edição de autor. 2002. 171 pp. Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002].


__________________

Guiné 61/74 - P26063: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (34): Ciúme patológico


Contos com mural ao fundo >  Ciúme patológico

por Luís Graça (*)


A Nucha ainda estava bastante combalida quando tu, na semana seguinte, lhe telefonaste. Por mero acaso, numa daquelas vezes em que te lembravas de fazer a ronda dos amigos que viviam longe.  (Gostavas de saber, de viva voz, que  a malta "ainda ia estando por cá",  se bem que já com a saúde "remendada"...   Tudo isto antes da pandemia, tragédia que mudou para sempre as nossas vidas. )

A Nucha estava viva, graças a Deus. Mas tinha tido um “acidente de percurso” (sic), nesse princípio de verão de 2017. Desconfiaste do eufemismo...

− Acidente ?!...

− Num ataque de ciumeira, o meu ex tentou estrangular-me!

− O quê, estrangular-te ?! Quem, o teu ex ?!... Não posso acreditar!...

− Desculpa, 
 nestes anos todos nunca te cheguei a falar dele, e da nossa relação!...Mas tu conheceste-o, uma vez na Casa da Música.
 
Sentiste que ela precisava de desabafar.  Nada, afinal,  como ter um velho amigo (e confidente). A 300 km de distância. Longe mas sempre ao alcance de um clique. 

Ainda os telemóveis não faziam videochamadas. Pelas fotos que ela te mandou,  dava para perceber a gravidade da agressão de que fora vítima… Trazia um colar cervical.

Segundo as suas queixas, sofrera diversas contusões no pescoço, mas também na couro cabeludo e no peito. Felizmente não havia vértebras cervicais partidas.

Logo que pudeste, em meados de julho desse ano, arranjaste um pretexto para estar com ela
. Tinhas uma viagem no Alfa, paga. Até Braga, por razões profissionais. Aproveitaste para ir na véspera e ficar no Porto nesse fim de semana.

A Nucha era uma das “mães-fundadoras”  da Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade (**). Juntavam-se às quintas feiras.  
Tu havias entrado neste grupo, como "observador-participante", justamente através da Nucha e do seu projeto local de promoção do envelhecimento ativo e saudável. 

−  Deixou-se ir abaixo com esta história toda, anda deprimida 
− confidenciou-te uma das pessoas do grupo que lhe estavam mais próximas. 

Mas, não faltaram logo, à boa maneira nortenha, as manifestações de afeto e de solidariedade, por parte dos caminheiros e demais amigos.  O  “caso” tornara-se público, contra a sua vontade. 

A Nucha fora vítima de violência doméstica. Disso ninguém tinha dúvidas. Algumas pessoas do grupo estavam chocadas, umas mais do que outras.

− Uma brincadeira, ao que parece, que poderia ter acabado em tragédia – terá comentado um dos caminheiros com quem falaste ao telefone.

Ninguém achou graça nenhuma  à subtil insinuação desse caminheiro. "Brincadeira" ?!... Para mais vinda  de alguém que, no passado, também fora vítima de violência conjugal. Neste caso por parte da companheira, que sofria de graves problemas de saúde mental. 

Enfim, o termo “brincadeira” não estava isento de uma conotação algo machista.

− O gajo, no fundo, está a insinuar que a Nucha também tivera culpas no cartório, “ao andar a brincar com o fogo”... Estás a ver a mente pornográfica destes sacanas?! 
− comentava uma amiga dela.

Quanto ao ex-companheiro da Nucha (que vivia com ela há cerca de oito anos, e que ela te apresentara uma vez como "amigo" ) contaram-te que fora ouvido, no dia seguinte, na polícia e depois no tribunal, na presença do seu advogado.

A Nucha apresentava, pelas fotos que tu viste,  claros sinais de ter sido vítima de uma grave agressão, com escoriações ao nível do pescoço, peito e cabeça. Teria havido uma tentativa de estrangulamento, num acesso de fúria provocada, ao que parece, por uma crise de “ciúme patológico” (sic).

− Patológico ?... Dizem-me que o ciúme é o fogo que alimenta, a lume brando, o amor.

− Todo o ciúme é patológico!... Não me lixes − asseverava ela.

A verdade é que a Nucha ficara muito afetada, física e psicologicamente. 

“In extremis” conseguira libertar-se das mãos do agressor, e chamar o 112. O INEM veio com a polícia. O  fulano acabou por cair em si e deu-se por “culpado”. (Até por que era um homem "educado, culto e inteligente", disse o advogado no tribunal.) 

A Nucha foi levada, à meia noite, para o Hospital de São João,   tendo estado dois dias em observação e depois em tratamento.

Compreensivelmente, ela nunca mais quis voltar à casa da Foz. Nem sequer para ir buscar uma muda de roupa e alguns objetos pessoais mais urgentes.  Incumbiu, p
ara essa tarefa, uma amiga, que morava para os lados da avenida da Boavista. 

A Nucha voltou, de vez, para o seu apartamento na Rua da Alegria. 

− Os 50 metros quadrados da sua ilha preferida.

Costumava dividi-los  com o confortável casarão da Foz, nomeadamente no outono e inverno, estações mais "tristonhas".

− Na primavera e no verão, preciso de sentir na pele a maresia, preciso de estar junto ao mar, como a Sophia [de Mello Breyner], faz-me bem aos quatro humores… 

A Nucha confidenciara-te que nunca mais  poderia viver por detrás de uma serra!.,. Detestava o rosmaninho e a urze, aromas de uma infância em que decididamente não fora feliz!

O juiz impôs ao agressor,  como medida de coação, o simples termo de identidade e residência... Aguardou o julgamento em liberdade...


− É a merda da nossa justiça, no seu melhor, uma justiça ainda com muitos tiques de classe... Pior ainda, misógina, sexista, homofóbica e racista 
−  comentou-se no grupo que, em peso,  foi solidário com a Nucha.

Sobretudo as mulheres não escondiam a sua indignação:
 
− Os nossos juízes, e nomeadamente os machos, mas também algumas juízas que vestem calças, parecem, às vezes, ter dois pesos e duas medidas... Pelo menos, em matéria de crimes sexuais e de violência de género, incluindo a violência doméstica. Tudo depende do sexo e da classe social da vítima e do agressor.
 
Mas, afinal, quem era o homem de que tanto se falava, no círculo dos amigos e conhecidos da Nucha ?...  O "mau da fita", a "besta quadrada", o "energúmeno", para usar alguns dos epítetos mais suaves do léxico   nortenho.

Bom, vieste a conhecê-lo melhor mais tarde. Não no Porto, mas em Lisboa. Por ocasião do lançamento do álbum fotográfico de um amigo comum,  fotojornalista, que to apresentou:

− O eng. Vaz C... (vamos omitir o apelido por razões obvias.)

− Por acaso, já nos tínhamos visto antes...

Não vais dizer que ficaram amigos, seria uma fanfarronice da tua parte. Afinal não costumavas fazer amigos logo ao primeiro aperto de mão... E sobretudo seria uma "traição", uma quebra de solidariedade para com a tua amiga Nucha que tu conhecias há mais de vinte anos, e que era uma boa e leal amiga do Norte.

Mas tiveste depois, mais tarde, uma conversa franca,  com o "engenheiro"... Ele prometeu que, "um dia", iria contar-te a sua versão dos factos, tanto mais que se sentia "injustiçado pelo tribunal, e crucificado na praça pública"... De
 resto, ele sabia  tratar-se de uma amiga tua de longa data.  

O tribunal condenara-o a a 30 dias de prisão, com pena suspensa. Teve que pagar ainda uma indemnização, por danos corporais e morais, à Nucha.

Deves ter-lhe inspirado confiança. Por outro lado, tu tinhas a vantagem de estares em Lisboa, de não seres do Porto nem viveres no Porto. E muito menos na Foz.

O  Vaz C...  era um engenheiro químico. Fizera toda a vida no Porto mas tinha as suas raízes no Alto Minho (curiosamente, tal como a Nucha).

− Corrijo: fui engenheiro químico, já não sou. É uma parte do meu passado que ainda hoje me é doloroso evocar... Mas não posso riscá-la do meu currículo, seria fazer batota comigo e com os outros que me conhecem... Afinal, sou filho, neto e bisneto de engenheiros... O meu bisavô, esse, era engenheiro militar e ainda chegou a conhecer o Fontes Pereira de Melo. Tenho orgulho nas minhas raízes.

Poucos o conheciam na vida da Nucha. Ela, de resto, nunca o havia apresentado à Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade. Nem muito menos aos seus colegas,  professores da escola secundária onde ela dava aulas de biologia.  (E onde, de resto, fez lá toda a sua carreira e desenvolveu projetos na área da promoção da saúde escolar; foi daí que tu a conheceste.)

Também eram muito raros 
os amigos comuns. O Vaz C... não te explicou como é que a Nucha aparecera na vida dele, há cerca de uma década atrás. Mas é capaz de ter sido numa viagem do Pinto Lopes, a quem chamavam, no Porto, a "agência do amor" ou "agência cor de rosa"...

Nem ele nem ela faziam grande vida social. Eram pessoas discretas, "cada um na sua casa, como convinha".  A dele, na Foz, a dela na rua da Alegria. Formavam um casal atípico. "Andavam juntos" há cerca de oito anos, com interregnos, e com completa "separação de bens", a começar pelas contas bancárias...O  IRS faziam-no sempre em separado. Ela como "solteira" (nunca se tinha casado), e ele como "divorciado", pai de 2 filhos e avô de 3 netos... Filhos e netos que, é curioso,  ela nunca quis conhecer.  

Preferiam dizer que "andavam juntos" do que "viviam juntos". A Nucha ficava muitas vezes na casa do Vaz C... Por conveniência, comodidade, preguiça,  inércia, etc. "Por ser mais espaçosa e confortável, enfim, e sobretudo, por estar junto ao mar"... Mas ela não gostava do vocábulo "namorados". Nem nunca terá estado atenta a eventuais "sinais de crises de ciúmes"... Consideravam-se pessoas adultas, cultas, racionais, livres...

− Éramos amigos que às vezes dormíamos na mesma cama − confidenciou-te ela.

Ele também raramente a apresentava como "namorada", e apenas  aos vizinhos e conhecidos, mais próximos. Não era nada "exuberante" no que dizia respeito à sua vida..."amorosa". Era um "cavalheiro",  em suma.

Todas as despesas de manutenção da casa (e não eram pequenas, a começar pela segurança e condomínio) eram suportadas por ele. A Nucha contribuía "apenas com parte da alimentação". Nas despesas do dia a dia, ela gostava das "contas à moda do Porto". Os pequenos luxos, como restaurantes caros, uma vez por outro, em "dias de festa", era ele que fazia questão de pagar.

 De resto, ele era também "um razoável cozinheiro, um bom, garfo e um melhor copo", segundo o autoelogio que ele próprio fez, na conversa que teve contigo. 

A Nucha confirmou-te que "ele bebia bem, e às vezes demais". Tinha uma excelente garrafeira, de fazer inveja aos amigos e vizinhos.  Adorava o "Alvarinho" da sua terra...

Não, não  era um desses "antigos ricos da Foz", nem sequer se considerava "rico". Vivia com relativo desafogo, graças ao "pé de meia" que juntara no tempo das vacas gordas, e ao longo de uma vida de trabalho. 

A casa na Foz ("um casarão", integrada agora num condomínio fechado) já vinha de família, mas fora remodelada. O pai tinha sido um dos pioneiros da construção das barragens no Douro. Era também engenheiro (e empresário). E dera-se bem com as obras públicas do Estado Novo.

− Pela minha parte, investi na bolsa, ganhei dinheiro, soube aplicá-lo, poupei-o... Fui formiguinha, hoje posso dar-me ao luxo de ser cigarra...A Nucha só conheceu a cigarra, não a formiga...

Foi ele próprio que te deu alguns detalhes do seu currículo profissional. Tinha sido, durante mais de três décadas, um alto quadro de um conhecido grupo empresarial do Norte,  ligado à indústria transformadora.

Tivera uma "fulgurante e brilhante carreira", até à morte do fundador do grupo. (Nas fábricas do grupo, antes do 25 de Abril, o fundador era tratado por toda a gente, desde os operários às chefias, como o "Senhor engenheiro", só mais tarde é que passou a ser o "Velho" ou o "Patrão Velho".)

− Fui eu que sugeri (e preparei o dossiê de) a internacionalização do grupo e é por isso que alguns não me perdoam, a começar pelos herdeiros. Deviam-me estar gratos. Se o grupo não se abre (ao capital estrangeiro), os filhos e os netos estariam hoje na miséria. A empresa familiar não teria sobrevivido aos choques políticos, económicos e tecnológicos dos últimos 30 ou 40 anos... 
Hoje está sólida e tem à frente uma equipa de gestores altamente profissional.

E prosseguiu o teu interlocutor (que parecia ter necessidade de falar do seu passado):

− Tudo corria aparentemente bem até ao dia em que lhe foi diagnosticado (ao fundador e líder do grupo,) um tumor. Fatal, no cérebro. Ainda foi operado nos EUA, mas em vão. 

Com um prognóstico tão reservado, toda a gente entrou  em pânico. Ele era muito centralizador, para não dizer autocrata. Gostava sempre de ter a última (e decisiva) palavra, à boa maneira antiga do "eu quero, posso e mando". 

- Este período poderia ter sido fatal para o futuro do grupo mas eu fui-lhe sempre leal e dedicado até à sua morte. De resto, eu não tinha funções executivas.

Convém acrescentar que o Vaz C... já antes se tinha começado a incompatibilizar com o filho mais velho do patrão.  Este regressara  à fábrica, vindo da América, com o canudo de um "Master", um "MBA", debaixo do braço, preparando-se para assumir, "com toda a legitimidade", o lugar que um dia, pela "ordem natural das coisas", o pai deveria deixar ... ao "morgado". 

Na realidade, não seria assim tão pacífica a sucessão... E confessou-te, o Vaz C...,  o que sentiu com a morte do "Velho":

− No dia seguinte, tive a sensação (sufocante) que aquela casa também já não era a minha...

A correlação de forças mudara com a modificação da estrutura acionista: entraram para o Conselho de Administração os representantes dos herdeiros e dos novos acionistas, nacionais e estrangeiros.

O eng Vaz C..., assessor para a área do desenvolvimento estratégico, braço direito e protegido do "Patrão Velho", deixou de ser convocado para as reuniões do Conselho de Administração onde tinha lugar "praticamente vitalício", embora com funções consultivas. 

Sobretudo os herdeiros não gostavam dele, chamavam-lhe o "Rasputine". Acusavam-no  de ter uma influência demasiado grande (e sobretudo nada benéfica) sobre o "Velho".

− Substituiram o rei (que morreu) e afastaram o seu "leal conselheiro"... A história repete-se... Vi este filme noutras empresas aqui do Norte.

Os novos patrões não o despediram logo, até por razões legais e por respeito a uma cláusula testamentária do "Velho"... Por "piedade" (sic), deixaram-no só, num gabinete vazio, com uma secretária, uma cadeira e um PC... Alguém lhe sugeriu que escrevesse a "história" da empresa e as suas memórias de trinta anos de colaboração com o "Patrão Velho"...

− Recusei-me, disse-lhes que não era historiador, era engenheiro...

O seu conhecimento e relacionamento com o fundador do grupo já vinha de longa data, ainda antes do 25 de Abril, quando, jovem engenheiro químico (e um dos melhores alunos do seu curso) fizera um estágio prolongado numa das fábricas da empresa, na Maia.

O "Velho" também vinha da "química" (ou da "alquimia", como ele gostava de  dizer, na brincadeira entre "colegas"), mas era de outra geração... 

Apreciava, no jovem Vaz C..., além da "competência técnica", a "visão estratégica" em relação ao futuro do setor e dos negócios, a par da "arte de negociar" e de sobretudo de "resolver problemas práticos sem grandes equações".

− Sem falsa modéstia, eu fui um dos obreiros da "via real" do sucesso daquela empresa. E, por tabela, do grupo que veio depois a criar-se. Sobrevivemos aos desvairados anos 70, à crise do petróleo de 1973, ao 25 de Abril, às greves, saneamentos e ocupações selvagens, 
ao PREC, à deriva totalitária, às nacionalizações, à intervenção do FMI, , etc. Mas, depois, vieram os "trinta gloriosos", de princípios de 80 até à primeira década do séc. XXI"...

Não foram trinta, emendou ele:

− Se não foram trinta, foram vinte e tal anos a trabalhar bem, sem horários, às vezes sem férias, a criar riqueza, postos de trabalho, a distribuir dividendos, a abrir novas fábricas...

 Católico, com "sensibilidade social", o "Velho" não perdeu a oportunidade de contratar o jovem e brilhante Vaz C...para a sua equipa de gestores e assessores, numa época em que, nas empresas, ainda se valorizava mais a "tarimba" do que os "canudos". Por outro o conhecimento pessoal e as famosas "cartas de recomendação" também eram como o código postal, ou seja, meio caminho andado para se arranjar um bom emprego numa boa empresa... 

Mais do que simples colaborador, o eng Vaz C... tornou-se um amigo e confidente do "Velho", e um homem, afinal, poderoso. 

Resumindo:

− Eu era um "colarinho dourado" muitíssimo bem pago, comecei a ser vítima de "bullying", como se diz agora. Arrumaram-me para um canto, como um trapo velho... A maior humilhação da minha vida... Devia ter lutado mais, mas faltaram-me as forças... O braço de ferro acabou por quebrar pelo elo mais fraco da cadeia. Estive de baixa psiquiátrica durante três anos, e depois a Segurança Social mandou-me para o esquema da invalidez... Hoje estou reformado, isto é, arrumado. 

E arrematou: 

− A única coisa boa que me aconteceu nestes últimos oito anos foi ter conhecido a Nucha. Infelizmente acabei de a perder, pela coisa mais estúpida que fiz na minha vida, que foi bater numa mulher. Perdi completamente a cabeça, meu Deus!

Fez-se um silêncio prolongado, embaraçoso. O teu interlocutor ia sendo traído pela emoção. Recompos-se, puxou de um lenço, assoou-se e prosseguiu:

− Há coisas que fazemos que não têm volta a dar: a rajada de G3 que se dispara à queima-roupa contra um pobre diabo de um negro que tenta iludir a vigilância dos seus captores, mesmo de mãos algemadas; a pedra que se lança no pátio da escola, e que vai partir a cabeça de um inocente; a gadanha da morte que varre a autoestrada e que ceifa a vida daqueles que te deram o ser; enfim, uma mão, pesada, que se abate sobre a cara da mãe dos teus filhos...

Depreendeste, ou deduziste,  que eram fantasmas do seu passado: a guerra colonial, o acidente mortal com os seus pais, o divórcio litigioso do seu primeiro (e único) casamento...

Ainda estavas à espera que ele te contasse o que se passara exatamente "naquela malfadada noite" em que a Nucha regressara de Lisboa, de um congresso internacional... Mas ele, de repente, entrou num mutismo extremamente embaraçoso... 

Respeitaste o seu silêncio, levantaste-te, despediste-te dele... e nunca mais o voltaste a encontrar.

Só mais tarde é que conseguiste saber mais pormenores, através da Nucha,  sobre o que se havia passado nessa noite fatídica, para ambos, que marcou o fim de uma relação... 

 − Um relação que tinha tudo para ser tranquila e até feliz − assegurou-te o engenheiro,  quase no fim da conversa (que foi mais um monólogo).

Eis,  em resumo,  alguns excertos de longas conversas que tiveste, entretanto, com a Nucha, permitindo completar o “puzzle” do retrato do seu ex-companheiro e da narrativa sobre a relação de ambos, que terminara num já longínquo mês de junho de 2017:

− De qualquer modo, houve uma punição legal e uma reparação material… A justiça é sempre relativa.

− O tanas, minha querida!... Ele teve uma pena suspensa, caricata, e foi obrigado a indemnizar-te por danos físicos e morais…mas isso para ele foram "peanuts".

− De mal o menos… Se eu fosse uma verdadeira lutadora, como a minha vizinha Maria da Fonte, ter-me-ia esforçado por provar que vivíamos juntos a maior parte do ano, em união de facto… Por uma questão de orgulho, não o fiz… Bloqueei!... Nunca me tinha visto num tribunal, com montes de gajos a despirem-me, mentalmente, de alto a baixo!

− Ias pôr em causa o teu autoconceito de mulher livre e independente ?!

− Posso estar a ser burra, mas assim foi-me mais fácil varrê-lo completamente da minha vida e das minhas memórias…

− ?...

− Sou uma mulher do Minho… de pêlo na venta e nas pernas!... Nisso sou uma cópia, a papel químico,  da minha mãezinha, que era capaz de ser má como as cobras, quando lhe pisavam os caules!

− Que disparate!

− ... Legalmente não houve violência… doméstica! Não éramos um casal, o juiz deve pensado que eu era um cabra, julgou o caso como uma simples agressão corporal…

−… na cama!

− Foi tudo muito sórdido!... Ele [o Vaz C…] tinha massa, arranjou um advogado, conhecido aqui na praça, que lhe limpou  a barra...

− E inverteram-se os papéis, não ?!

− Sim, às tantas, eu é que era a má da fita, a fria e astuta Eva que ludibriara o pobre e indefeso Adão!... Tive de reconstituir não sei quantas vezes a cena dessa maldita noite!...

−  Tens de ma repetir para eu poder defender-te quando as pessoas vêm insinuar que fizeste uma cena de teatro só para provocar o teu ex...

− Foi o que o advogado dele procurou demonstrar perante o juiz, passando da defesa ao ataque… A minha advogada era uma jovem, minha conhecida, que estava mais atrapalhada do que eu!...

A Nucha reforçou-te a ideia de que o tipo afinal tinha uma dupla personalidade:

 − Sabes, ele era um tipo misterioso… E deixa-me, desde já,  falar dele como sendo um fantasma do passado!... Pensava que o conhecia minimamente, que estupidez a minha!...Vivi com um animal estranho, durante oito anos, se não foram oito, anda por lá perto, com muitos intervalos pelo meio entre a casa da Foz e a da rua da Alegria…

− Ele falou-me em tiros de G3, deu a entender que andou na guerra colonial… Não quis aprofundar o assunto, seria indelicado da minha parte...

− Sim, ele esteve na Guiné, entre 1963 e 1965, se não erro… Não sou boa em datas. Regressou com 25 anos e só depois é que acabou o curso de engenharia, faltava-lhe um ano ou coisa assim… Deve ter apanhado a crise estudantil de 62… Não te sei dizer.

− Nasceu portanto em 1940 ou por aí…

Sim, ele era mais velho do que a Nucha uma boa dúzia de anos… Ela era de 1952.

− Falava-te da guerra ?

− Pouco ou muito raramente... Sim, quando fomos à Guiné-Bissau, ou melhor, à ilha de Orango, no arquipélago dos Bijagós… Fomos de avioneta, diretamente de Dacar para Orango… Em rigor, não estivemos na parte continental da Guiné-Bissau. Nesses dias, que adorei, vi os estranhos hipopótamos que vivem tanto em água doce como salgada, e que vão desaparecer com a subida do nível do mar, daqui a algumas décadas… Sim, nesses dias, ele falou-me por alto de algumas recordações do tempo da Guiné… Tinha estado em Bubaque, em 1964, numas curtas férias…

− Mas nunca te falou em episódios de guerra ?!... De um prisioneiro que terá tentado fugir e que ele terá abatido à queima-roupa...

− Não... Acredito que não deve ter sido fácil para ele. Mas eu também não queria saber nada sobre esse passado obscuro. E muito menos da merda da guerra!...  

− Deve ter tido também um divórcio litigioso… E deve ter havido, aí, no passado dele, mais episódios de violência doméstica, não ?!

− É bem possível, mas era assunto tabu entre nós. Nunca falámos da ex-mulher dele. Nem eu queria ouvir falar dela, nem de filhos e netos... Afinal, também sou ciumenta, como toda a gente.

− Estranho, não ?!,,, O passado de cada um de nós é sempre uma caixinha de Pandora...Percebi que também perdera os pais, ainda relativamente cedo…

− Sim, num estúpido acidente automóvel, nas vésperas de Natal quando iam para Viana do Castelo. Há uns trinta e tal anos. Ele é que ia a conduzir. Os velhotes iam atrás. Ficaram esmagados pelo embate de um camião TIR, que ficou sem travões…

− Não o amavas assim tanto…

− Vamos lá a ver: habituámo-nos à companhia um do outro. Tínhamos, de facto,  algumas coisas em comum. Por exemplo, éramos cinéfilos, adorávamos o cinema italiano do pós-guerra... Ele era um gajo culto, para os padrões burgueses do Porto… Gostava de ir ao teatro, gostava de ouvir um bom concerto sinfónico, etc. Não discutíamos política... Ele ia a missa, eu não...Sempre respeitei as suas convicções... Mas, amor, amor… É uma palavra demasiado forte que eu não gosto de pronunciar em vão… 

E depois de retomar o fôlego, a Nucha lamentou: 

- Andei toda a vida à procura do grande amor da minha vida, como quem joga no Euromilhões… Desisti, olha, agora jogo à raspadinha...  

− Somos utópicos…

− Somos mas é estúpidos, pelo menos nós, as mulheres, somos mais estúpidas do que vocês…

− Não digas isso, estás ainda magoada ao fim deste tempo todo.

− O meu sexto sentido, a minha inteligência emocional, o meu faro de felina... falharam redondamente desta vez… Aliás, têm falhado bastas vezes. Afinal, nunca acertei com os gajos que passaram pela minha vida, ou pela minha cama, que são coisas que deveriam ser completamente distintas!

− Não, quando se tem vinte anos!... 

− Sim, nessa altura o sexo era tudo… E ainda não havia, felizmente, a Sida!.... Mas já tínhamos a pílula, ao menos… Nós, as mulheres!...  Lembras-te ? Dizíamos que era o "amor livre"!...

− Mas, afinal, ainda o odeias, ao teu último ex ?

− Se queres que te seja franca, tenho-lhe um pó danado. Só consigo fazer o luto de uma relação, através do ódio… Ainda não deixei de o odiar, acredita... E não quero encontrá-lo nunca mais, o que é difícil para quem vive numa cidade provinciana como o Porto. Evito, por exemplo, ir à Foz, e aos locais que frequentávamos... Felizmente que ele não vai ao Parque da Cidade... Nem temos praticamente amigos comuns...Vivi meses enclausurada como uma monja...

− O amor e o ódio são as duas faces da mesma moeda… Mas como é que se risca uma pessoa da nossa vida ?... Foram oito anos de vida juntos…Ou em que andaram juntos.  Vocês partilhavam algumas coisas boas da vida: as galerias de arte, Serralves, a Casa da Música, o teatro, o cinema, a música, a boa comida, as viagens…

− Até o nosso álbum de fotografias destrui, num acesso de raiva, as férias “maravilhosas” que ele me proporcionou na ilha do Príncipe ou na ilha de Orango… Queimei todas as fotos em que aparecíamos juntos. É assim que eu faço o luto de uma relação quando as coisas acabam mal por culpa dos gajos…

− Parece-me que o teu ódio também é contra a injustiça da justiça, digamos, falocrática, não ?!

A Nucha fez questão de te acompanhar ao comboio, apanharam o metro até Campanhã. Pelo caminho foi-te então contando, mais descontraída, o que se passara nessa noite de junho de 2017…

Vieste no comboio, de regresso a Lisboa, a tentar reconstituir, por escrito, o longo monólogo que a Nucha teve na cama com ele, o Vaz C…, e que terá sido o “móbil do crime”… Ou pelo menos a gota de água que fez transbordar o copo de uma relação já há muito desgastada pela usura do tempo, da rotina e do medo do futuro… 

(...) "Imagina, encontrei o Mastroianni em Lisboa! [começou ela a contar ao Vaz C..., os dois já deitados na cama]... Um Mastroian
ni grego, ateniense. Foi um dos estrangeiros que participou na conferência. Ele era lindo como um deus do Olimpo. Mais novo do que tu, muito mais novo. Um quarentão, charmoso, brilhante, sedutor, como Apolo. De facto, dava muita parecença com o Mastroianni quando novo... (Como sabes, sempre foi o meu ator italiano preferido... Isto de ser cinéfilo é o que dá: confunde-se às vezes a ficção com a realidade. Gostamos de tirar parecenças dos atores que vemos na tela com as pessoas de carne e osso que vamos conhecendo na vida.)

"Em boa verdade, já nos tínhamos encontrado antes, uma vez, em Barcelona, há uns poucos anos atrás, recordava-me do seu nome... Era o último da lista, o Zacarias, mas nem ele reparou em mim nem eu nele. Também era mais novo e desconhecido.  E eu era já uma cinquentona nesse tempo... 

"Desta vez, em Lisboa,  ele era a estrela da companhia. Intelectualmente brilhante, fisicamente atraente. O encontro foi de dois dias, 5ª e 6ª. No primeiro dia, à noite, houve o tradicional jantar de gala, oferecido pela organização. O sítio não podia ser mais romântico e inspirador, no terraço coberto de um hotel de charme, um antigo palacete do séc XVIII, revestido a fabulosos azulejos da época, e que milagrosamente sobrevivera ao terramoto... Com vista para a Baixa e o estuário do Tejo, estás a ver ?!... A noite estava perfeita, com uma temperatura já de verão, e Lisboa estava em festa com a proximidade dos santos populares.

"Comeu-se bem e bebeu-se melhor, sabes como são os estrangeiros quando vêm cá, a Lisboa ou ao Porto, em negócios ou trabalho, gostam de juntar o útil ao agradável, o dever e o prazer. São muito trabalhólicos mas à noite tiram a gravata e o casaco, o mesmo é dizer, a máscara. O ambiente era descontraído, e desinibido, e havia uma tremenda carga de energia positiva no ar. 

"Os trabalhos, no dia seguinte, só recomeçavam às 10h00, por alteração de última hora do programa. Esperava-se a presença do ministro. Ainda fomos ao Bairro Alto, mais para ver o ambiente e andar um pouco a pé. Depois regressámos ao hotel, que não era longe, estávamos alojados no mesmo sítio, e por coincidência no mesmo piso. Como estava sem sono e, em boa verdade, sentia-me 'very, very free, cool, happy', uma sensação que há muito não experimentava. 

"Apesar da nossa diferença de idades, para aí uns vinte, o Mastroianni quis ser gentil comigo, ficou mais tempo na conversa, bebemos o último copo 'para a sossega' (fez ele questão de mo oferecer!), acabámos por subir juntos, no elevador, despedimo-nos com um beijo e eu aí..., tive uma sensação estranha, um impulso irresistível: agarrei, qual leoa, com as duas mãos, aquela cabeça de Apolo e,  zás!, ..."

(...) "Foi nesse preciso momento que o gajo [ela estava agora a referir-se ao Vaz],  o cabrão que estava a ler, a um canto da cama, a fingir que me ouvia, saltou como o tigre da Malásia, ferrou-me o pescoço com os dentes, tapou-me a boca com uma mão, puxou-me os cabelos com a outra, e deu um urro que ecoou pela casa toda: 'Cala-te, sua caaaaa... braaaaaa...!'... 

"E tentou estrangular-me, quase até à asfixia total...

(...) "Tive uma fração de segundo de lucidez para perceber o que estava a acontecer e que ele me ia matar... Foi aí que consegui, num derradeiro esforço hercúleo de mulher minhota, libertar a minha perna esquerda e dar-lhe uma joelhada fortíssima no baixo ventre. 

"Deu um urro de morte: 'Sua....caaaaa... braaaaa, filha de uma ganda puuuuu...ta!!!".

"E, 'in extremis', largou-me, desistiu, bloqueou, caiu exausto na cama, teve um ataque de choro, histérico ...  

(...) "Sim, consegui chamar o 112...Saltei da cama, cheia de dores, num estado miserável, desgrenhada, a roupa rasgada, pedi socorro ao 112... 

"Não ofereceu resistência quando chegou a polícia... Só voltei vê-lo no tribunal.   O processo correu célebre.

" Cabra, eu?!... O gajo ficou completamente desvairado com a cena que eu estava a contar, em voz alta, mais para mim do que para ele... Uma verdadeira fantasia erótica, se queres que te diga!...Mas na sua imaginação pornográfica ele viu-me agarrada ao grego, a rebolar na cama de gozo!... 

"O gajo tratou-me como uma puta, privativa, a quem pagava, de vez em quando,  uns jantares em restaurantes de luxo, só para eu ser dele!

"Fantasia erótica ?!...Não vou dizer que não estava excitada... Sim, se calhar até era capaz de ir para cama com ele, mas fiquei por ali, peguei-lhe na cabeça com as duas mãos, como uma mãe faria a um filho, dei-lhe um longo beijo de boas noites ... e de despedida!... 

"No dia seguinte, trocámos olhares cúmplices, algo embaraçados, como  dois tímidos adolescentes, acabou a conferência, ele apanhou o avião para Atenas e eu o comboio para o Porto... Nem sequer sei onde mora!...

"No fundo, fiquei com uma pena danada de não ter  dormido com ele nessa noite, única, irrepetível! E ainda hoje não sei por que é que não o fiz... 

"Muito provavelmente porque ele não me deu  'luz verde'... Sou muito intuitiva nestas coisas, dou muito importância ao comportamento não verbal dos meus parceiros... Senti atração por ele, não senti atração dele por mim...

"Sim, o meu Apolo não estaria nos dias dele... Os deuses são caprichosos... tão ou mais que os humanos... Ou então ele era um falso deus, uma merda de sedutor, um daqueles gajos que têm medo das mulheres inteligentes e dominadoras...

"Claro que eu fui completamente idiota ao contar esta história do Olimpo ao meu ex... Se calhar até fui cruel, sem intenção de o ser... Ou, se calhar, inconscientemente, eu quis provocá-lo, testar os seus limites de racionalidade, pôr á prova o amor dele...  

"Dir-me-ás, também tu, que, antes de seres meu amigo, és macho, que as mulheres não podem brincar com o fogo... Se calhar foi por  isso que os homens, com medo, nos roubaram o fogo!... É um dos mitos mais antigos da humanidade!

"Que parva que eu fui!... Afinal, uma mulher não pode ter desejos, não pode ser proativa em matéria de sexo...E muitos menos se tiver cabelos grisalhos... Uma gaja aos 65, era a idade  que eu tinha na altura, em 2017, não pode desejar um homem, vinte anos mais novo... Grego, lindo com o Apolo!... 

"Sabes uma coisa ?!... Tenho reconhecer que estou velha e acabada, não tenho a pedalada dos miúdos de hoje, como os que são (ou foram) meus alunos". (...)

Não voltaste a ver a tua amiga Nucha desde a vossa última conversa, em Campanhã. Meteu-se, entretanto, a maldita pandemia... E, pior do que tudo, a Nucha sofreu, entretanto,  um surto psicótico, esteve internada em psiquiatria, um irmã dela, mais nova, veio ao Porto buscá-la... 

Vive hoje triste, apática, solitária, numa casa de repouso em Terras de Bouro... Por ironia, voltou aos montes da sua infância raiana, cobertos de rosmaninho e de urze. Coisa que já não a incomoda,  felizmente, para ela, que perdeu o olfato. E também já não sai nem ninguém a visita para além da família mais próxima...

Quanto a ti, tu nunca foste a Terras de Bouro. Nem sabias exatamente onde era, antes de ires ao Google... Mas ficaste  devastado ao saber do fim desta história de uma mulher que tanto acreditara, em vida, na arte e na ciência  da promoção do envelhecimento ativo e saudável.


© Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados.
Última revisão: 19 de outubro de 2024
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 17 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25952: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (33): O "Judeu'

(**) Vd. poste de 18 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25653: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (30): Caminheiros

domingo, 20 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26062: Humor de caserna (78): o velho, a "bajuda fugidona" e a justiça salomónica do alferes Mota (Carlos Fortunato, ex-fur mil, CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71)


Guiné > Região do Oio > Carta de Bula  (1953) > Escala 1/50 mil  > Posição relativa de Manga... e ainda Bula, Binar,  Choquemone (a vermelho, base do PAIGC), Nhamate, Changue, Unche, Ponta Cuboi  e João Landim...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Carlos Fortunato, em Bissau, 2006.   
Foto: Arquivo do Blogue Luís Graça
& Camaradas da Guiné

Humor de caserna > o velho, a "bajuda fugidona" e a justiça salomónica do alferes Mota  
A construção dos aldeamentos e aquartelamentos que realizámos, acabou por nos trazer outro tipo de problemas, além dos de índole militar, pois à falta de outra autoridade ou apoio, a população recorria aos militares pedindo ajuda.  Assim além de sermos os construtores de aldeias e aquartelamentos, éramos muitas vezes professores nas escolas primárias, médicos, policias, juízes, etc.

Um dos casos caricatos passou-se com o alferes Matos sedeado em Manga, quando lhe apareceu um velhote a pedir ajuda porque tinha comprado uma bajuda, e ela agora andava a fugir-lhe, mas tinha-a encontrado ali, e ela recusava-se a voltar com ele.

O velhote falava convicto de que os militares o iriam ajudar, pois isso fazia parte dos seus usos e costumes há muitos anos, e nem sequer imaginava que houvesse outros lugares em que as coisas não fossem assim.

Uma visita à tabanca onde estava a bajuda, confirmou a decisão desta em não regressar com o "marido" para o "harém".


Guiné > Região do Oio > Binar >
Manga > 1970 > A bajuda balanta

O alferes Matos tomou então uma decisão ao estilo de Salomão, que tinha dado uma espada a duas mulheres para cortarem ao meio um bebé, pois ambas diziam ser seu, e que acabou por dá-lo à que preferiu que a outra ficasse com ele a fazer tal coisa... 

Assim deu uma catana ao velhote, e disse-lhe que podia levar a bajuda, depois de cortar uma enorme árvore que ali existia com aquela catana.

O velhote ainda experimentou tentar cortar a árvore, mas logo se convenceu que os anos de vida que tinha não eram suficientes para a obra, e foi-se embora a resmungar contra a tropa, perante a alegria da bajuda.


Foto (e legenda): © Carlos Fortunato (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Fonte: Guiné - Os Leões Negros > CCAÇ 13 > Binar > 1970 > A bajuda fugidona
[ página que foi descontinuada, por estar alojada no "Sapo", tendo sido "capturada" e "salva" pelo Arquivo.pt; era administrada pelo nosso camarada Carlos Fortunato, ex-fur mil, CCAÇ 2591 / CCAÇ 13 (Bissorã, 1969/71). Texto publicado originalmente
publicado em 15/04/2006, e revisto em 21/07/2006 por Carlos Fortunato. ]

(Seleção, revisão/ foxação de texto, título: LG)

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Guiné 61/74 - P26061: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (40): "O homem sem nome"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


O homem sem nome

Quando nasceu, trazia entranhados em si dois grandes pecados: o pecado original e o pecado de ter sido gerado em mãe solteira.
Para além disso, fora parido quase moribundo.

Imagine-se o terror de sua mãe que já o via a arder no fogo do Inferno.
O pai, mais racional, não tinha assim tão maus pressentimentos. Para ele, Deus não seria capaz de condenar, e logo com penas eternas, um ser indefeso, pelo simples facto de a pia batismal distar três quilómetros do local de nascimento.
Pegaram na mulher mais à mão e no homem mais ao pé, embrulharam num cueiro este escarro de gente e correram a sete fôlegos em direção à igreja.
Ambos conheciam a gravidade do pecado original.
“As almas dos que morrem em pecado mortal ou apenas de pecado original descem ao Inferno”, anunciava o concílio de Florença em 1439.

Todos sabiam que o batismo era a única terapêutica que salvava e apagava o pecado original.
Se chegasse à pia do batismo com vida, não seria este pecado, marca da infâmia do seus longínquos e primitivos antepassados, que o levaria à condenação eterna.
Quanto ao outro, o pecado de amor, o pecado de sua mãe, nada constava na tradição que o considerasse passaporte direto para as profundas, embora fosse exatamente igual ao primeiro, mas muito mais recente.
No mínimo, em cima do outro, agravaria, certamente, a sentença divina.
Portanto, as perspetivas não eram animadoras.
Na correria para a salvação, nada mais dominava o pensamento dos hipotéticos padrinhos, - assim o permitisse serem-no, efetivamente, a graça divina - senão o terror.

Já com alguma idade, esse esperançoso par lembrava-se de ter ouvido da boca de um padre velhinho, de quem se dizia ser pai de onze filhos, que um papa chamado Bento XIV e outros seus sucedâneos aprovaram o batismo de fetos e abortos, bem como dos fetos das mulheres grávidas mortas, aos quais faziam chegar a água benta através de um sifão especial ou de uma cesariana.
O medo era tão grande que chegaram a arranjar fórmulas especiais para batizar abortos ainda sem forma humana ou mesmo aberrações e monstruosidades resultantes, eventualmente, de distrações ou falhas nos cálculos divinos.

Já a meio do caminho da igreja, os corações dos dois estafetas salvadores quase pararam ao sentirem que nada pulsava naquele montinho de carne.
Apertaram-no contra o peito e deram-lhe algumas palmadinhas suaves, não fossem acabar com o sopro de vida em que ainda acreditavam.
Aquele minúsculo projeto, à falta de melhor resposta, reagiu com o intestinal ruído que precede ou acompanha uma pequena dejeção de ferrado, o que aliviou um tanto os padrinhos, embora soubessem que esse facto não constituía, propriamente, uma manifestação de vida.

No último minuto, provavelmente já na fronteira do entroncamento onde divergem os caminhos para o céu e para o inferno, o recém-nascido usou pela primeira vez as cordas vocais, soltando um pequeno gemido que logo se fez choro convulso ao sentir a água benta e fria na cabeça.
Crê-se, hoje, que não fora a água fria, mas o nome que pretenderam dar-lhe, a razão do seu choro.
Era como que voltar à estaca zero, uma espécie de restitutio ad integrum do pecado original, tornando inútil toda aquela corrida para a pia da salvação.

Os seus gritos devem ter ecoado como ribombante trovão para lá dos séculos, no ex-paraíso, hoje deserto, no lugar onde os pais da humanidade condenada, não sabendo para o que servia aquilo que tinham entre as pernas, pagaram com a felicidade eterna por terem-no descoberto.
Para que ele parasse de chorar, não tiveram outro remédio senão, esquecerem o nome.
A força do sacramento venceu, o Diabo recuou e assim ficou sem nome o homem que não tinha nome.
Na verdade, o agora filho de Deus sobreviveu.

Revigorado com o sopro divino, chegou ao seio da mãe onde algumas gotas de leite lhe seguraram a vida e sadicamente o impediram de seguir logo, diretamente, sem necessidade de vir a sofrer as provações de todo um futuro incerto e traiçoeiro, para a garantida felicidade eterna.

Passaram os anos.

Acordava com a voz dos melros e rouxinóis e saltitava com os pardais.
Vestia-se de sol e despia-se de luar.
Estreou o mundo no abraço das árvores e no beijo dos rios.
Seus olhos dormidos casavam a noite e o dia no mesmo silêncio de sonho-menino.
A vida viveu nele crescendo todos os tamanhos e medindo todos os céus.

Mas os homens comeram as crianças.
Os homens comeram-se crianças e neles foram matando a criança que crescia.
Um dia, meteram-lhe uma coisa na boca e disseram-lhe que era Deus.
Como se Deus coubesse na sua boca!
Como se Deus coubesse na sua boca!
O mar, infinitamente mais pequeno do que Deus, não cabe em todas as bocas juntas.

Também lhe disseram que ele era filho de Deus.
Ou gozaram com ele ou pretenderam fazê-lo acreditar em paranoias.
Como se Deus andasse para aí a fazer filhos como ele!
Seria preciso que fosse um Deus muito fraco e muito irresponsável!

Revelaram-lhe, ainda, que sua mãe era uma virgem, o que ele não era capaz de entender.
Deus, pelos vistos, seu pai, ao gritar ao mundo que crescesse e se multiplicasse, ou se enganara ou se arrependera ou não acreditara no que tinha feito.

Disseram cada coisa que ele chegou a pensar que mandava nos pássaros, que era capaz de pôr as cobras de joelhos e que o céu era trigo limpo!
Sendo ele filho de quem era!
Apesar de tudo, sempre foram para ele um tanto estranhas as atitudes de seu divino pai.

Ouvira falar de comboios com milhões de pessoas a entrar nas câmaras de gás.
Deus estava lá, Deus está em toda a parte.
Morreram e morrem milhões de crianças às mãos da fome e Deus, seu pai, atafulha as mesas dos que não têm fome.
As guerras crescem como as moscas, correm rios de sangue ao sabor dos interesses dos que mais rezam a Deus e seu pai, com poderes para desligar a máquina, não o faz.
Milhões de mortos esventrados, despedaçados, violentados!
E eles até são seus irmãos!

O mundo abarrota de doentes, crianças doentes, e logo crianças!
Ainda noutro dia, o seu celestial pai dissera alto e bom som: “Deixem vir a mim os pequeninos!”
Pensa ele que o pai se referira aos meninos ricos, porque os pobres são sempre os mesmos, e ele nunca os vira em casa de seu pai.
Os das barracas, os famintos, os esfarrapados.

As más-línguas até proclamam que ele é filho ilegítimo.
Argumentam dizendo que um pai que tanto faz sofrer os seus filhos não pode existir.
E ele começa a ter vergonha porque nenhum filho gosta que o pai o atraiçoe.
Pensava.

Os que comem tudo e não deixam nada, os que geram a fome para que não lhes falte a fartura, têm casas de ouro, férias para descansarem de não fazerem nada, luxo em cima de luxo, o céu garantido aqui na Terra e lá em cima nas primeiras filas que o Vaticano sempre lhes reservara, enquanto os outros vão para a vala comum, agora que o inferno faliu.

O Inferno lá de baixo, o das almas penadas, perante o grito de sofrimento dos povos, imbuídos da fé que tanta e tanta felicidade lhes trouxe nestes místicos séculos, até parece que não era tão mau como o de cá.
Talvez o Diabo não seja como o pintam.

Os fervorosos comungadores, não tanto da sagrada hóstia como do ouro, acham que os espoliados ainda têm pele, eventualmente rentável e utilizável para fazer tambores.

E a vida continua, na sua tradicional canção de louvor a Deus!
No fim de contas, o homem sem nome pensa que seu pai enlouquecera ou perdera a vergonha.
Faz-se surpreendido com tudo o que vê, ele que é omnividente, omnisciente e omnipotente, e otimiza facciosamente as condições de vida dos fortes para que não sofram.
Cria, descaradamente, todas as condições para que as catástrofes, as torres de Babel e os dilúvios se abatam sempre sobre as cabeças dos mais fracos.

A estupidez invade a cidade como uma avalancha de merda e seu pai permite que façam dela a bandeira com que a bolorenta metafísica apodrece a razão de todos os criados e reciclados à sua imagem e semelhança.

O homem que não tinha nome, não sendo estúpido, foi crescendo no seio da estupidez.
Uma noite, altas horas da madrugada, um novo pecado haveria de entrar na sua alma.
Ficara muito assustado.
Lembrara-se, de imediato, do pai de todos, o colega grandalhão da escola primária quando, em segredo, lhe confessara a sua primeira sensação: “Uma estranha mijadela com muito, muito açúcar.”

Tinha razão.
Coisa estranha, nunca sentida!
Era, certamente, um grande pecado.
Não tinha memória do pecado original do qual se livrara à rasquinha.
Pelo que lhe haviam contado, deveria estar, de novo, no caminho das profundas.
Só agora conseguia atingir o significado das palavras do padre prefeito quando este lhe perguntara o número de vezes que havia pecado com o corpo.
Maldito corpo.

Bendita luz.
A luz do sol era azul, lembrava-se como se fosse hoje.
A luz azul azulava os claustros, as caras e o sentir.
Imaterial, pálida e fria.
As grandes janelas filtravam a luz azul que entrava dentro dele como chuva miudinha.
Pela vida fora sentira sempre um arrepio ao recordar essa luz azul e fria.
As batinas negras eram azuis e frias, frias e azuis como os olhos, a alma e a sombra.
A alma não era, nessa altura, designação académica.
Por isso ela punha os braços de fora e estrangulava a sua frágil personalidade de adolescente, sem sexo nem liberdade.

A saudade excitava-o, vivia-o de dia e adormecia-o de noite.
Saudade da sua fogueira quente e vermelha, do seu sol vermelho e quente, do seu campo, do seu rio, da sua noite de estrelas e luar.
A imposição do azul desfaz as formas e os sons e remete para a cidade da morte.
O medo do azul abre as portas do Inferno e mostra, lá dentro, a razão e a coragem a arder.
As horas inverteram-se e perderam o tempo.
Correm agora fora das veias à velocidade de uma luz azul e fria.
Pela mão do pai, passou a vida a correr tropeçando nas sombras.

Arrumou, ao canto da luz, mil horas vazias, sangradas a curricular futuros para ser gente na praça dos homens.
Pisou os passos pequeninos nos avessos da verdade e palmilhou léguas a tossir poeira.
Vestido de ausências, foi renascendo de amor.
Bendito corpo.
Maldita luz.

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Nota do editor

Último post da série de 13 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26042: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (39): "Um simples periquito"

sábado, 19 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26060: O que e feito de ti, camarada ? (20): Manuel de Oliveira Maia, ex-fur mil, 2ª CCAÇ / BCAÇ 4610 (Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74), o nosso "bardo do Cantanhez", está em Portugal até ao dia 25, vive nas Canárias

1. Mensagem de Eurico Oliveira, filho de um camarada nosso, o Manuel Oliveira Maia, de quem não tínhamos notícias há muito (*):

Data - terça, 15/10/2024, 19:25  

Assunto - Manuel Maia

Olá,  Dr.,

Antes de nada agradecer-lhe a amizade e camaradagem ao Sr. meu pai, Manuel Maia.

Ele está bem (bom com todas as vississitudes próprias da idade) e vive em Tenerife, Canárias,  há talvez 4 anos,  junto com a minha mãe.

É um prazer e uma honra para mim, verificar o valor e amizade que nutrem por ele.

Devo dizer-lhe que está em Portugal até ao próximo dia 25. Sería um grande prazer para o meu pai se o Sr. se pusesse em contacto com ele.

Da minha parte, muito obrigado, por todo o respeito e consideração pelo Sr. meu pai.

O número de telefone de contacto é de Espanha, mas certamente estará muito feliz de voltar ao seu contacto.
Manuel Maia 
Telemóvel +34 633429247

Um abraço e bem haja
Eurico Oliveira

2. Resposta do nosso editor, com data de terça, 5/10/2024, 19:53 

Obrigado, Eurico, bela notícia. Vou reencaminhar para alguns dos seus camaradas e amigos da Guiné. E oportunamente falar-lhe. Já tinha visto a mensagem no formulário de contacto do Blogger. Faço também este poste dando a boa nova. 

Um abraço, Saúde para si e seus pais. Luis


3. O Manuel Maia (o nosso bardo do Cantanhez, Manuel de Oliveira Maia, ex-fur mil da 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74), entrou para a Tabanca Grande em 13/2/2009; tem 124 referências no nosso blogue.


Peguem no telemóvel  e façam- lhe uma surpresa. 


4. Recorde-se que são  do nosso poeta Manuel Maia os melhores decassílabos heróicos (à maneira de Camões),  dedicados até hoje à  nossa Tabanca Grande. Ficam aqui duas estrofes, a primeira e a última:
 

Bem dentro deste espaço/liberdade,
que ajuda a mitigar nossa saudade,
Luís Graça & Camaradas da Guiné...
Há laços, inquebráveis, solidários,
nascidos de vivências e fadários,
comuns a todos nós, creiam que é...

(...) Num blog que congrega ao seu redor,
num misto de saudade e até de amor
pela terra ocre-amarela, um batalhão...
Amigo traz amigo e amigo fica,
enquanto um outro amigo fica à bica
e bate à porta n'outra ocasião...

Fonte: poste P7692, de 29 de janeiro de 2011.


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Guiné 61/74 - P26059: In Memoriam (514): José Luiz Gomes Soares Fonseca (1949 - †2024), ex-Fur Mil TRMS da CCAV 3366 / BCAB 3846 (Susana e Varela, 1971/73)

IN MEMORIAM

José Luiz Gomes Soares Fonseca (1949 - †2024)
Ex-Fur Mil Trms da CCAV 3366 / BCAV 3846

O Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux. Enfermeiro da CCAV 3366, deu-nos conhecimento ontem da triste notícia do falecimento do seu e nosso camarada Luiz Fonseca, ex-Fur Mil Trms, ocorrida já em Janeiro deste ano.

O Luiz tinha como hábito enviar todos os anos as Boas Festas aos editores e à tertúlia, não o tendo feito na quadra natalícia de 2023/24. Provavelmente estaria já doente.

Embora tardiamente, a tertútila e os editores, associam-se à dor da família do nosso camarada Luiz que nos deixou em Janeiro.

É já um muito doloroso calvário assistirmos à partida dos nossos camaradas e amigos. Cada dia que passa se torna maior o "batalhão celestial" e cada vez somos menos os que nesta dimensão vamos resistindo ao toque de silêncio. 

O Luiz Fonseca aderiu à nossa tertúlia em Agosto de 2007(*).

A sua Unidade esteve em quadrícula em Suzana e Varela, no chão Felupe, pelo que a sua prestação no Blogue se centrou em dar-nos a conhecer os usos e costumes daquele povo. Certamente apaixonado por aquela etnia guineense que povoa o noroeste da Guiné, deixou-nos preciosos textos e fotos que podem ser acedidos na série "Cusa di nos terra".

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Nota do editor

(*) - Vd. post de14 de agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2047: Tabanca Grande (32): José Luiz Soares da Fonseca, ex-Fur Mil Trms (CCAV 3366/BCAV 3846, Susana e Varela, 1971/73)