Pesquisar neste blogue

domingo, 23 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26608: Os 50 Anos do 25 de Abril (37): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte III


De acordo com a legenda, esta imagem é a reprodução de um postal de c. 1906 (Fonte: João Loureiro: "A Sociedade Angolana de há 100 anos", pref. António Barreto.  Lisboa: Maisimagem, 2008. pág. 94).


Painel II . "Missão Civilizadora" e "Progresso" > 3. O trabalho indígena: modalidades, violência e denúncias.


Exposição > “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. 
O Colonialismo Português em África: 
Mitos e Realidades”

 Lisboa, Belém,
30 out 2024 / 2 nov 2025


1. Continuamos a "visita resumida"  desta exposição, que pode ser vista até 2 de novembro de 2025. (Há visitas guiadas, tem que se reservar.)

Requer "tempo, vagar e... distanciamento crítico"! ... Merece pelo menos duas visitas, para se lidar com tanta informação. 

Para já é uma oportunidade única para se conhecer uma tão vasta e rica  documentação fotográfica, que ilustra os diferentes painéis, e que é proveniente de diversos arquivos, públicos e privados, incluindo o Arquivo Histórico-Militar, o Arquivo Histórico Ultramarino e o Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Sem esquecer a notável coleção de postais antigos do dr. João Loureiro (ou João M. Loureiro:): uma das suas obras, "Postais Antigos da Guiné", já foi aqui, oportunamente objeto de recensão em quatro postes do nosso crítico literário, Mário Beja Santos. "Uma relíquia", este trabalho, de um grande colecionador que percebeu o valor iconográfico de um simples bilhete-postal... 

De resto, desde cedo, no blogue, fizemos um esforço por recolher e salvaguardar os nossos velhos postais ilustrados (temos meia centena de referências).

Por outro lado, estamos a falar de um período da nossa história (e da história africana) mal conhecido de todos nós. antigos combatentes: grosso modo, vai do último quartel do séc. XIX até à descolonização.

Quem é que no nosso tempo de escola (incluindo o liceu), nos anos 50/60,  ouviu falar em "trabalho forçado", "imposto de palhota". "assimilados", "colonialismo",   "código do trabalho indígena", "acto colonial", "luso-tropicalismo", "nacionalismo africano", etc. ?!... 

Eu não ouvi, nem me perguntaram nada disso no exame de admissão ao liceu, em 1958... Era lá coisa para uma criança de 10 anos ter que saber!.. Perguntaram-me, isso sim, os nomes e cognomes de todos os reis de Portugal... (Felizmente, sabia-os, na ponta da língua!)

Nós já somos do tempo, em que as "colónias" passaram a "províncias"... Mas não sabíamos que só em 1962 fora"abolido legalmente o trabalho forçado", era então ministro do ultramar  o professor Adriano Moreira (1922-2022)... Tinha eu 15 anos.  

O  objetivo desta exposição pretende ser  "pedagógico e didático",  resultando da colaboração de 3 dezenas de especialistas mas não deixando de ter o cunho muito pessoal, profissional, metodológico e teórico-ideológico da sua curadora, Isabel Castro Henriques (vd. aqui a entrevista que deu à RTP África). 

A exposição é organizada pelo CEsA Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento (do ISEG / UL)  e pelo Museu Nacional de Etnologia, com curadoria da historiadora Isabel Castro Henriques. Integra as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.


2. Recorde-se que, de acordo com a folha de sala, a "narrativa da exposição" centra-se em dois  eixos:

(i) um primeiro eixo baseado  "em painéis temáticos, nos quais texto e imagem se articulam, pondo em evidência as linhas de força do colonialismo português dos séculos XIX e XX, e dando a palavra ao conhecimento histórico"; 

(ii) e um  segundo eixo que "pretende 'fazer falar' as   [139] obras de arte africanas", quase todas do espólio do Museu Nacional de Etnologia (que, acrescente-se,  não é um museu do colonialismo...)  como "evidências materiais do pensamento e da cultura africanas, evidenciando a complexidade organizativa dos sistemas sociais e culturais destas sociedades, permitindo mostrar a criatividade, a vitalidade, a sabedoria, a racionalidade, a diversidade identitária e as competências africanas e contribuindo para evidenciar e desconstruir a natureza falsificadora dos mitos coloniais portugueses."

Ainda não visitámos a exposição toda que, se não erramos, tem oito painéis (sendo o último dedicado à descolonização e o legado colonial).



3. O segundo painel  (*) tem como subtemas os seguintes (pelo menos, os que eu registei na minha máquina fotográfica), e que são profusamente ilustrados com imagens da época (mais de Angola, Moçambique e São Tomé, e muito menos da Guiné, que não era uma "colónia de povoamento"):

(i) a criação do "indígena" e o "grémio da civilização";

(ii) a obra civilizadora da Igreja: evangelização e instrução:

(iii) o trabalho indígena: modalidades, violência e denúncias;

(iv) o imposto indígena: caracterização e significado histórico.

Seguem-se alguns conteúdos (reproduzidos aqui com a devida vénia, e a pensar sobretudo nos nossos leitores fora de Lisboa que dificilmente terão oportunidade de se deslocar ao Museu Nacional de Etnologia, no Restelo, de entrada gratuita para os antigos combatentes)... 

A exposição é muito rica do ponto de vista documental, com se pode aferir pela pequena amostra que apresentamos (seleção de c. de 220 imagens que fiz de metade dos painéis):



























"Sacralização da vida: objetos e rituais" (Uma das diversas vitrines com objetos de arte africana , na sua maioria espólio do Museu Nacional de Etonologia)






















(Imagens obtidas da exposição "in situ",  sem flash, com a devida vénia, e aqui reproduzidas com propósito meramente informativo...)


(Fotos, seleção, edição: LG)

(Continua)

______________

Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores:


15 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26499: Os 50 Anos do 25 de Abril (36): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte II

sábado, 22 de março de 2025

Guiné 61/74 – P26607: (Ex)citações (530): Guiné, da escravatura à carne para canhão. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Guiné, da escravatura à carne para canhão 


Camaradas,

Os tempos, que por ora atravessamos, remete-nos para outras eras em que a escravatura eram “dotes” de senhores cuja presunção os remetia para a escravidão de seres humanos, sobretudo de gentes de linhagem negra.

Camaradas, sabeis que essas jactancias pressuponham poder absoluto sobre o mundo que certamente os rodeava, logo, o homem e as mulheres negras eram simplesmente matéria que rendiam dinheiro, por isso cada qual valia bastardos cruzados e os “magnatas” não olhavam a meios para atingir os seus fins.

Mais tarde, em pleno século XX, nós não fomos escravos como aqueles de antigamente, mas sim jovens militares atirados para as frentes de uma guerra colonial que fora demasiado cruel.

Deixo um pequeno texto do meu livro – UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ-BISSAU 1973/1974 – Edições Colibri, Lisboa

Guiné, da escravatura à carne para canhão

Escravos e combatentes


Imagem retirada da internet

Numa apurada caminhada sobre a problemática dos antigos escravos na Guiné, seres humanos que sofreram as amarguras da crueldade de uma atroz escravidão por parte de genuínos patrões de “carne para virtuais fregueses”, pessoas sem escrúpulos, maliciosos, miseravelmente déspotas e que usufruíam da sua condição senhorial para atingir infinitos objetivos, servindo-se, simultaneamente, das obsequiosas mulheres para os prazeres sexuais, eis o retrato de uma sociedade onde os poderosos de outrora ditavam lei.

Investiguei o tema escravos numa Guiné que todos conhecemos. Andei por trilhos, agora desarmadilhados, e deparei-me com a fundação de uma tal Companhia do Cacheu que no século XVII terá sido determinante para a comercialização de escravos. Naquele local controlava-se, olho por olho, o negócio. As caravelas portuguesas levavam tecidos, barras de ferro, muitas bugigangas, álcool, de entre outras mordomias, e aí executavam a troca direta, recebendo escravos, pimenta de entre outros objetos de valor.

Para se efetuar o respetivo comércio havia os intermediários que eram, naturalmente, os armadores e os régulos. Existiam, também, os lançados, homens brancos, sendo que alguns deles tinham a origem judia que interferiam, à socapa, no tráfico e que atuavam no negócio à revelia das autoridades ali existentes.

A curiosidade desta demanda remete-nos para as queixas que tanto os capitães-mores como os comerciantes mais fortes, que partilhavam os dividendos do comércio de escravos, lançavam àqueles que, para eles, atuavam à margem das regras legais impostas pelas autoridades oficiais.

Este pequeno introito sobre o comércio inicial de escravos no Cacheu, transporta-nos para séculos posteriores, ou seja, para a guerra na Guiné, século XX, na qual fomos atores forçados. A 23 de janeiro de 1963, na região de Tite, iniciaram-se as ações da guerrilha, estendendo-se depois a todo o território, sendo que a luta armada só terminou em 1974, mercê da Revolução dos Cravos, o 25 de Abril.

E se o PAIGC se revelou como o partido da revolução no solo guineense, na Metrópole, Lisboa, a capital do Império, os senhores da guerra enviavam um outro tipo de escravos para o cenário da peleja, os chamados carne para canhão.

Creio, conscientemente, que o termo carne para canhão não é um ímpeto deselegante, e nem tão-pouco o deverá ser. Pelo contrário, ele reflete uma realidade conhecida por todos os camaradas. Isto porque enviar jovens para as frentes de combate com uma arma na mão cujo estatuto era matar para não morrer, significava que os nossos soldados, muitas das vezes, davam o corpo às balas numa pura e simples veracidade que eles, meninos e moços, se apresentavam para os teores da ferocidade da guerra como “miúdos” indomáveis que literalmente resvalavam para a meteórica expressão denominada como carne para canhão.

Se os escravos, vendidos aos lotes para patrões de outros continentes, o europeu nomeadamente, sendo o lote das mulheres melhor taxado, a condição física dos homens passava por monotonizar minuciosas visualizações, isto é, o conhecer da força, a doutrina da composição de toda a massa muscular, as doenças africanas, a saúde dos dentes, vistorias às partes íntimas, de entre outras malazengas, nós, eternos camaradas e antigos combatentes, éramos a tal carne para canhão, onde os aspetos físicos que cada um apresentava pouca ou nenhuma importância teria para uma missão deveras agressiva.

Falamos, e é verdade, de sistemas e de conteúdos completamente diferentes, melhor, de sistemas sob uma ancestral matéria humana conhecida nos séculos XVII e XX, contudo, os elos que unem os antigos combatentes resvalam para restos de uma escravatura que se propagou no tempo num agreste terreno de batalha chamado Guiné.

Este entrosar de realidades observadas, em séculos diametralmente diferentes, volto a referir, é somente o reavivar de histórias passadas, sendo o conflito da Guiné um dado real por todos nós conhecido.

Escravos além de combatentes? Admitamos um pouco que sim! Não fomos “vendidos” em lotes, nem tão-pouco sujeitos a humilhações humanas, ou motivo para notórias vistorias corporais, mas sim atirados sem dó nem piedade para Batalhões, Companhias ou Pelotões onde o fator da morte estava sempre iminente.

Em Gabu fui, tal como muitos dos milhares de camaradas que por lá passaram, mais um elemento onde o fenómeno da escravatura se enraizou em combatentes que tudo fizeram para salvar a pele. Restava o pacato aguardar pelo fim da comissão militar, mas isentos de eventuais marcas de guerra e sobretudo bem vivo.

Factualidades de um tempo sem tempo!



Mulheres seu papel de escravas  
    
Abraços, camaradas
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 

19 de dezembro de 2024 » Guiné 61/74 – P26291: In Memoriam (529): Comandante Almada Contreiras (1941-2024), um antigo camarada que conheceu as terras da Guiné, e um dos militares do 25 de Abr (José Saúde)

 

Guiné 61/74 - P26606: Desaparecido do nosso radar (2): Silvério Dias, o "senhor PIFAS!



A mascote do Programa [de Informação]  das Forças Armadas (PIFAS), da responsabilidade da Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica. Autor (até à data) desconhecido.  Imagem cedida  pelo nosso camarada Miguel Pessoa, cor pilav ref (ten pilav, Bissalanca, BA 12, 1972/74). 



1. Publicou há dias o Manuel Resende na página do facebook da Magnífica Tabanca da Linha > 6 de março às 17:34 

Caros Magníficos, já procurei em tudo onde podia estar o nosso Magnífico, e não o encontro. 

Alguém sabe dele? 

Mora(va) em Oeiras, o telefone está desligado, já contactei alguém da Biblioteca de Vila Velha de Ródão, onde ele era colaborador e natural, e ninguém sabe dele. 

Silvério Dias

Tinha um blog "Poeta Todos os Dias", desactivado desde finais de 2023. Disse-me ele, "Manel,  publico todos os dias alguma coisa em verso até morrer".

O seu nome é Silvério Pires Dias.

Se alguém souber algo sobre ele, diga.



2. Comentário do editor LG:

O nosso camarada o Silvério Dias, 1º srgt ref, ex-radialista do PIFAS, grão-tabanqueiro nº 651 (*),  é um cso extraordinário de "resistência e resiliência" contra os "males da idade"...

Mas também deixei, infelizmente, de ter notícias dele (**), depois do último convívio da  malta do Pifas no "Páteo Alfacinha", em Lisba, em 9/9/2023, com a presença do general Ramalho Eanes (***).

Tinha então 89 anos completados em 18 de agosto. Ainda me desafiou para aparecer, o que não me foi possível por estar fora de Lisboa. Um das últimas vezes que o vi, erá sido em Oeiras, em 2017.



Oeiras > Galeria-Livraria Municipal Verney > 4 de março de 2017 > 15h00 - 16h30> A antiga equipa que deu voz e alma ao PIFAS: o primeiro sargento Silvério Dias (nosso grã-tabanqueiro nº 651) e a famosa "senhora tenente", sua esposa.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Recorde-se aqui, muito sumariamente,  o  percurso de vida do nosso camarada Silvério Dias: 

(i) nasceu em 19/8/1934,  em Sarnadinha, Vila Velha de Ródão  

(ii) como militar passou pela Índia, Moçambique e Guiné (ex-2º srgt art, CART 1802, Nova Sintra, 1967/69):

(iii) 1º srgt art, locutor do PFA - Programa das Forças Armadas, 'Pifas', Bissau QG/CTIG, 1969/74, onde trabalhou com Ramalho Eanes e Otelo, entre outros; 

(iv) civil, foi delegado de propaganda médica, 1974/76, em Bissau; 

(v) 1º srgt art ref, casado com a "senhora tenente", também do 'Pifas',  vivia em Oeiras até finais de 2023;

(vi) editou, até 26/11/2023,  o  blogue "Poeta Todos Dias"  (criado em 2011 e onde todos os dias, publicava um, dois, três, quatro , cinco ou seis apontamentos poéticos, em geral, quadras populares, sobre temas do quotidiano, e suas memórias de militar);

(vii) teve, até então, cerca de 526,5   mil vizualizações de páginas;

(viii)  apresentou  na Biblioteca Municipal de Vila Velha de Ródão em 23 de março de 2017 o seu livro  de poesia "Neste lugar onde nasci" (2017); 017, o seu livro  de poesia "Neste lugar onde nasci" (2017) (,

(ix) é membro da Tabanca Grande desde 24/3/2014; tem cerca de 3 dezenas de referências no nosso blogue.

Se alguém tiver notícias do Silvéro Dias, que partilhe connosco.

________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12894: Tabanca Grande (430): Silvério Dias, 1º srgt art ref, o senhor PIFAS, e "poeta todos os dias!...Nove anos de permanência em terras guineenses, incluindo uma comissão na CART 1802 (Nova Sintra, 1967/69)... É agora o grão-tabanqueiro nº 651

(**) Último poste da série > 3 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22168: Desaparecido do nosso radar (1): António Duarte de Paiva, ex-sold cond ambulâncias, HM 241, Bissau, 1968/70

(***) Vd. poste de 9 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24636: Convívios (972): Almoço/Convívio do pessoal do Programa das Forças Armadas da Guiné (PIFAS), hoje, 9 de Setembro de 2023, com a presença do senhor General Ramalho Eanes (João Paulo Diniz)

Guiné 61/74 - P26605: Os nossos seres, saberes e lazeres (674): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (197): Bruscamente, no Natal passado, uma viagem relâmpago a Ponta Delgada – 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Nem me passava pela cabeça, já numa certa efervescência da quadra de Natal, aterrar em Ponta Delgada para me integrar nas comemorações de uma associação de consumidores que ajudei a impulsionar e tenho acompanhado a florescência, com a ternura de ver tal filhote já na maioridade, e tratado com respeito pelo trabalho desenvolvido; pois assim aconteceu, tinha que vir lesto e pronto a perorar, o que para mim não tem problema, reformado vai para 12 anos continuo a estudar o que se passa na política de consumidores um pouco por toda a parte, o que me facilitou a vida quando a Fundação Francisco Manuel dos Santos me convidou para escrever um livro sobre a sociedade de consumo e os consumidores em Portugal. Foram 48 horas, mas deu para o deslumbramento, tudo acabou em apoteose quando, era a última etapa da minha intervenção, fui à RDP Açores, quem me entrevistou foi o jornalista Sidónio Bettencourt que conheci nos estúdios da antiga Emissora Nacional (na rua de São Marçal, não muito longe do Palácio de S. Bento), era ele estagiário, gravou um programa da minha responsabilidade, trabalho que eu gabei, vim a sugerir que ficasse como funcionário naquela estação emissora, ele quis voltar à sua terra, e passadas estas décadas foi a grande alegria do reencontro.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (197):
Bruscamente, no Natal passado, uma viagem relâmpago a Ponta Delgada – 1


Mário Beja Santos

Recebo um telefonema do meu amigo Mário Reis, secretário-geral da ACRA – Associação dos Consumidores da Região dos Açores, invoca a nossa estima recíproca de longa data para vir a S. Miguel às comemorações dos 35 anos desta associação que ajudei a fundar, e que com tanto carinho acompanho. Por razões orçamentais, alega, tem de ser quase já, marca-me datas, sinto-me compelido a não poder recusar, enquanto falamos lembro-me daquela tarde em que estive na conferência inaugural, corria o ano de 1989, para minha surpresa, o então Presidente do Governo Regional, Dr. Mota Amaral, proferiu uma alocução de impressionante abrangência, qualidade e sentido premonitório. Outro motivo que me impelia a não recusar é que finalmente entrara em funcionamento o Centro de Arbitragem de Mediação de Conflitos de Consumo dos Açores, a ACRA via-se agora na obrigação de mudar os azimutes, queria ouvir opiniões. Fiz a mala, onde meti umas dezenas de livros de consumidores e pus-me ao caminho. Entrara-se na quadra de Natal. O Mário vai-me buscar ao aeroporto, despeja-me à porta de um hotel, tenho o anoitecer e o resto do dia por minha conta. É um espaço que me é muito familiar aquele que vou agora percorrer pelos meus próprios pés, rever tudo, estou certo e seguro, é uma lavagem para a alma. E assim vai começar a primeira deambulação, o anoitecer está mesmo próximo.
Quando aqui cheguei, em outubro de 1967, este espaço da avenida já existia, o panorama ao fundo nas colinas verdejantes é quase o mesmo, salvo o crescimento do casario. O molhe do porto era um semicírculo, ainda estou a avistar a sua ponta em direção àquele cruzeiro gigante, dizia-se que este porto era obra dos alemães, 1937, talvez na previsão de que esta região atlântica ficaria sob custódia germânica. Indo por aqui fora, aí quilómetro e meio à frente, é uma zona de recreio, chamemos-lhe as docas, em 1967 esta Avenida Infante D. Henrique parava perto da Igreja de S. Roque, havia uma piscina e nada mais. Aqui me detenho a rememorar o encantamento que este passeio marítimo me ofereceu e continua a oferecer.
Ao som da música alusiva à quadra de Natal, avanço em direção ao largo da Câmara Municipal onde descubro este presépio iluminado, onde não faltam as Portas da Cidade, o ex-libris de Ponta Delgada.
Aqui estão as Portas da Cidade, o mar chegava mais próximo como se pode ver num quadro célebre de Domingos Rebelo alusivo aos emigrantes, ali no fim do lado esquerdo desembarcou a família real na sua visita oficial em 1901.
Chama-se Jardim Sena de Freitas, nasceu em Ponta Delgada este historiador e polemista considerado uma das figuras mais importantes do catolicismo na monarquia constitucional. É um espaço frondoso e florido que tem ao fundo o Palácio da Conceição, já foi convento, residência do governador civil e é hoje a residência do Presidente do Governo Regional dos Açores (mantém o seu escritório no Palácio de Santana), aqui se realizam as reuniões do Governo.
Pus-me defronte do Palácio da Conceição, tinha entrada aberta àquela hora tardia, entrei e disseram-me que podia visitar a exposição alusiva à autonomia açoriana, fazer uma visita guiada ao interior do palácio e visitar ainda na sala do coro baixo uma exposição dedicada a Mota Amaral. A curiosidade foi mais forte, entrei todo pimpão, dei por muito bem passado o tempo que aqui estive e o que pude conhecer. Não conhecia este cartaz dedicado aos expedicionários para aqui enviados durante um bom período da Segunda Guerra Mundial, o quartel onde dei duas recrutas, nos Arrifes, a cerca de 7 km de Ponta Delgada, foi inicialmente previsto para ser hospital de guerra, felizmente nunca chegou a funcionar nessa vertente, transformou-se no Batalhão Independente de Infantaria n.º 18.
A bandeira que é o símbolo da região
Uma das surpresas da visita guiada foi constatar que nas obras mais recentes ao palácio descobriu-se a existência de dois grandes tanques no que terão sido os jardins do claustro conventual, há mesmo um fontanário e sinais da existência de canais, havia água que vinha das terras e que inclusivamente contribuía para o abastecimento da população local. Está tudo desentulhado, bem iluminado, é um espaço surpreendente
Não vos vou falar da exposição dedicada a Mota Amaral, tocou-me este elemento expositivo, o recorte de uma fotografia que tem na sua base um aglomerado de lava com nove porções, o conjunto arquipelágico, ele foi o primeiro Presidente do Governo Regional (1976-1995), foi deputado da Assembleia Constituinte, deputado da Assembleia Nacional e Presidente da Assembleia da República. Acho esta simbologia do aglomerado de lava sob os olhos do político uma marca de talento artístico.
É uma das portas laterais da igreja matriz, um belo tardo-gótico, fui surpreendido pela iluminação, viera até aqui para ficar a olhar para um primeiro andar onde o meu saudoso amigo, o médico oftalmologista José Luís Bettencourt Botelho de Melo, tinha consultório, não foram poucas as vezes que ali combinámos o nosso encontro para depois ir jantar e matar saudades da Guiné.
Estou agora no largo de S. Francisco, o mesmo onde há um convento onde se guarda a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, num dos bancos ali Antero de Quental pôs termo à vida. Muitas vezes descia a rua de Lisboa, onde tinha o meu quarto e passava diante deste lugar que era o hospital, o hospital mudou de lugar (antes fora convento), está agora transformado num belo hotel.
Neste banco pôs termo à vida um dos mais influentes poetas românticos portugueses, Antero de Quental, é desse tempo aquela âncora com a palavra esperança, que torna esse tremendo desfecho tão mais chocante.
Aproxima-se o Natal, vê-se à direita outra porta lateral em estilo tardo-gótico da igreja matriz, é impressionante o bulício, as diversões para os mais jovens, a atmosfera musical, caí agora no tropel das compras ou dos passeios dos curiosos, sinto agora uma fraqueza de quem andou a comer sandes e precisa de uma sopa quente. Até já!

(continua)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 15 de Março de 1971 > Guiné 61/74 - P26587: Os nossos seres, saberes e lazeres (673): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (196): From Southeast to the North of England; and back to London (14) (Mário Beja Santos)