Quinta de Candoz (Paredes de Viadores, Marco de Canaveses) > 10 e 12 de abril de 2025 (exceto a foto da Serra de Montemuro, com neve, que é de 15 de abril) > A primavera, a Páscoa, o eterno retorno... A esperança, sobretudo a esperança.
Não, não havia Páscoa, sem as cerdeiras (ou cerejeiras) florirem, e sem as videiras começarem a sorrir, e sem os abraços compridos e efusivos de quem chegava do Porto e de mais longe. Ana, Bagana, Rabeca, Susana, Lázaro, Ramos, na Páscoa estamos, já dizia o provérbio popular.
Não, não havia Páscoa, sem a famosa freima que se apoderava das gentes cá do Norte, na véspera dos pequenos grandes acontecimentos, como os trabalhos coletivos (a vindima, as serviçadas...), ou os festejos (o casório dos filhos, o Natal, a festa da Senhora do Socorro ou a do Castelinho...).
Tudo isto, quando o Natal tinha o seu pinhão, e a Páscoa o seu tição, e a salgadeira estava atulhada com o porquinho que era o governinho da casa mas também uma das causas principais dos ACV que matava a gente...
Depois veio a maldita covid, e passaste a ter a triste Páscoa do confinamento, do "take away", e das grandes superfícies, com filas à porta, e a malta toda mascarada, guardando a devida distância uns dos outros...
O raio da covid não olhava a senhorios e rendeiros, a ricos e a pobres, e, aliada da morte, estava à espreita mas não esperava. Não poupava novos e velhos, rapazes e raparigas, homens e mulheres.
Quando o compasso chegava a uma casa, o fogueteiro sinalizava a sua presença... Os vizinhos, mais à frente, a 100, 200 ou 300 metros, nesta região de povoamento disperso, preparavam-se, com grande excitação, muita freima, para a cerimónia...
Já não importava se a Páscoa era no domingo depois da primeira lua cheia do equinócio da primavera, que tu, em passando a covid-19, perdeste a conta aos dias e aos meses e anos do calendário.
Tradição rica de significado socioantropológico, hoje em vias de desaparecer, a tua Páscoa nortenha que adotaste, há meio século.
Domingo da Ressurreição, carne no prato, farinha na mão, que na Santa Feira Santa comia-se o sável do rio Douro.
Folgai, meus filhos, enquanto puderdes, que noutra hora deveis de chorar, lembrava o padre Agostinho.
À noite, do terraço da varanda de Candoz, assistia-se, de borla,
ao espectáculo único da largada de fogo de artifício, quando o compasso recolhia, cansado e suado, depois de andar por montes e vales, estradões e socalcos, pontões e ribeiros, o homem da cruz à frente, e a seu lado o puto, de sobrepeliz, a tocar a sineta, já meio rachada. E a canalha atrás, para apanhar as canas dos foguetes e as sobras das mesas, os rebuçados dos pobres e as amêndoas dos ricos.
Depois da visita do compasso, e bem arrotado o arroz de anho assado no forno, era o espetáculo talvez mais aguardado do ano, a disputa em fogo de foguetório entre cada uma das freguesias circunvizinhas ali em frente, naquele cenário de presépio.
Todos, afinal, a competir pelas luzes da ribalta do céu, e a mostrarem-se mais cristãos e mais valentes do que no ano anterior. E com um sorriso matreiro, e uma pontinha de vaidade, bem mostrados aos que se sentavam na plateia deste vale de lágrimas que sempre fora aquela terra de camponeses, rendeiros e cabaneiros, jornaleiros, trolhas, carpinteiros, ramadeiros, trabalhadores do milho, da vinha e do centeio...
Deus fizera o mundo e as quatro estações de Vivaldi, e os solstícios do inverno e do verão, e os equinócios da primavera e do outono, só não mandara anjos para ajudar a plantar, regar e mondar o milho e a dar de comer ao tourinho, que era metade do patrão (que, ele, "mandjor da tropa", coitado, também lá andava a mourejar por terras de África na defesa da Pátria.)
Havia palpites, críticas, comentários, exclamações... sobre a quantidade e a qualidade do fogo de cada freguesia. E no final Paços de Gaiolo era o vencedor...
Era a vida que, afinal, na Páscoa, triunfava sobre a morte, naquelas terras de camponeses do vale do Sousa e do Tâmega, que chegaram a alimentar um milhão de portugueses durante séculos e a ajudar a dilatar a fé e o império, sem saber ler nem escrever, e muito menos o latinório aldrabado do padre Agostinho. Bom homem, o que não quer dizer que fosse santo.
Na era da covid-19, deixou de haver Páscoa, compasso, fogo, forno. Só o fogo do inferno, que esse continuava a arder, por mor dos pecadores, para seu exemplo e temor.
Nem abraços nem chicorações, só quando muito "abracelos... Uma tristeza, as casas fechadas, mortos os velhos, cheios de mazelas os menos velhos, tristes e desamparadas as viúvas, desconsolados os órfãos, famílias de desvairadas gentes espalhadas pelas diásporas.
No passado, ao almoço, não podia faltar o arroz de forno, que, em cada ano que passava, estava sempre melhor do que o do ano anterior. Davam-se gabadelas às cozinheiras cuja arte e engenho a idade ia apurando.
Podia chover, que em abril águas mil, mas a água que brotava das minas e da levada de Covas, e que regava os campos de milho, não apagava o fogo da paixão da vida, nem estragava o gosto pelo folgar dos corpos, e o rebolar na cama de palha de centeio, o forno aceso, o folar para os afilhados, sua benção, padrinho!, o pão de ló dos Lenteirões, o doce da Teixeira, a aletria, os foguetes a estalar no ar, alto e longe, a caneca de porcelana, que luxo!, por onde se emborcava o vinho, verde tinto, da Carreira Chã, com o travo adstringente do jaqué.
Os parentes e os amigos, alguns vindo de longe, da terra dos mouros, o vinho verde novo que jorrava da pipa e alegrava os corações, a canalha numa correria para apanhar as canas dos foguetes...
E os cães a ladrar!...
O compasso era tradição minhota e duriense, diziam-te. Tenderá a acabar, há muito profetizavam os sociólogos da desgraça e da mudança.
à desarmotização dos bens de mão-morta que não poupou os passais, provocando a pobreza do senhor abade, que, sendo filho de Deus, também tinha de comer... e "boer". E se ele comia e bebia, que nem um abade!...
Ah!, mas até os padres e as freiras morriam, em tempo de peste e de covid-19, lia-se na gazeta de Lisboa. E o teu vizinho da porta da frente, que vivia na Paris dos portugueses, coitado, também lá se foi, telefonou-te, chorosa, a viúva. E mais o fulano e o sicrano. E mais este e aquele outro.
Já nada era como dantes, desde que o mundo que tu conheceras, começara a soçobrar.
A visita pascal era um pretexto também para a afirmação social, o exibicionismo dos vizinhos e parentes mais ricos, alguns que haviam retornado de França, se não ricos, remediados, pensionistas das "mutuelles" e da "sécurité sociale", e que eram capazes de gastar uns bons contos de réis em foguetório...
Já não havia contos de réis, é verdade, nem lendas e narrativas de brasileiros que haviam feito fortuna no Novo Mundo.
Naquele ano da desgraça de 2020 restava-te a saudade, a ti e à famelga!... E as fotografias e os vídeos de antanho que se partilhava pelas redes sociais... Valeram-nos, ao menos, o Zoom e o Skype e outras plataformas que ajudaram a gente a iludir a solidão... em plena covid-19 que nos confinava e nos emboscava a todos.
© Luis Graça (2021). Revisto 18 de abril de 2025.
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Nota do editor:
Último poste da série > 8 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26665: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (38): Às vezes este país quase perfeito e sem mácula