segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3662: As Nossas Mulheres (4): As que casaram com a...Guiné (Virgínio Briote)



À minha Mulher, às nossas Mulheres

por Virgínio Briote (*)

Em Santa Luzia, QG, Bissau


O aroma dela nas cartas, falta pouco, um mês só, não vou a Lisboa esperar-te, mas quando puseres os pés em terra, lembra-te, estou contigo. Em Bissau, a noite quente não lhe trazia ideias. Uma folha toda em branco, enorme, com tanto espaço para responder, nem sabia como começar. Quero estar contigo, sem mais ninguém por perto. Uma frase só numa carta. Não tenho mais para dizer, não sei o que escrever.

Vinte e quatro meses de cartas para lá e para cá. Escritas de coisas a encher papel, que de guerra não havia que dizer. Tinha cumprido, sem um desvio, o que tinha prometido a ele próprio, não falar de coisas de um mundo que se vivia longe. Que havia de dizer aos Pais e à namorada? De bazucas, de morteiros, de costureirinhas, de feridos, de estropiados, de evacuações? De uma guerra que se discutia? Não, não à namorada e aos Pais nem pensar.

Quando falava da Guiné, era do tempo que escrevia. Do calor e da humidade que nunca sentira. Vê lá tu, acabo de tomar banho e só de me limpar com a toalha estou outra vez a suar. E do tempo que falta, já estou aqui há quatro meses, falta-me pouco para ir de férias. Umas férias que também nunca vieram, por culpa dele. Quem havia de se meter em sarilhos na Associação Comercial de Bissau? Quem havia de fazer frente a um coronel, na ordem de batalha, dizer-lhe nas trombas, com oficiais presentes, que ele, senhor coronel, estava errado na vocação?

Não posso ir de férias, fui castigado, na tropa diz-se punido, por falta de respeito a um senhor coronel. Já passou um ano, só falta o outro. Vai passar num rápido. Estou bem, em descanso, não tenho nada para fazer, limito-me a esperar pelo dia em que te vou abraçar. Não é preciso testemunhas, só quero estar contigo, os dois sós.

E foi assim, a descontar num calendário riscado dia a dia, que o regresso se foi fazendo, até Janeiro de 1967. Tinha embarcado para a Guiné em 10 de Janeiro de 1965 e, exactamente no mesmo mês e dois anos depois, estava no Uíge, de volta.

Não acreditava, a ponte Salazar acabada, a Conde de Óbidos na mesma, tantas cerimónias de idas e vindas depois. E o ar de Lisboa, o frio de Janeiro, as pessoas enroupadas e ele ainda cheio de calor, da reserva que trazia das terras quentes.

No Depósito de Adidos, pediram-lhe que aguardasse, já que estava cheio de pressa. Só o tempo para lhe passarem um papel para as mãos. Passa à disponibilidade desde amanhã o Sr. Alferes Mil Gil da Silva Duarte, indo domiciliar-se em Fonte Seca, freguesia de Fonte Seca, concelho de Braga. O portador deste documento deverá apresentá-lo quando lhe for exigido pela autoridade militar ou civil, em substituição da sua caderneta militar. Quartel em Lisboa, 24 de Fevereiro de 1967. O Comandante, Fulano Ferreira de tal, coronel.

Na estrada para o Porto, mal deu pela viagem, fartou-se de dormir. Nem se lembra onde ficou, se em casa dos pais, se na da madrinha. Recorda-se, isso sim, do dia seguinte, a seguir ao almoço. O eléctrico para o Monte dos Burgos, o 6 por ali acima até ao Carvalhido, o passo acelerado até à rua dela, o toque na campainha, a corrida pelas escadas acima e ela a vir por ali abaixo.

Um dia frio de finais de Janeiro. O Porto era o Porto do Sol escondido, o eléctrico chiava pela Carvalhosa e Cedofeita abaixo até aos Aliados. Os olhos nem sabiam para onde se virarem, o cheiro era o mesmo Lancôme. Dois anos depois e quase tudo na mesma.

Ao lado dele, Ela linda, de sobretudo azul escuro de botões prateados, os olhos levemente pintados, a cara lisa e redonda, os olhos magníficos. Ele, ainda cheio de calor, de blaizer azul escuro e calças cinzentas, camisa branca e gravata de tons vermelhos como gostava, Atrix nas mãos dadas, rua 31 de Janeiro, de nome mudado para Santo António, acima até à Batalha, muito mais silêncio que palavras de ocasião. Um embaraço, tanto tempo depois, tantas palavras para dizer e tanto silêncio.

Porque não dizes nada? Mais perguntas, maior a vontade de se fechar. Um mundo diferente passava-lhe à frente. Pessoas nas ruas, sorridentes, a vida a correr e as recordações não despegavam. Bolanhas, camaradas, trilhos, coladeras, cerveja, tiros, uísque, terra a ferver, pés queimados, noites escuras e logo a seguir brilhantes como se dia fosse. Outro mundo, uma semana e pouco depois.

As nossas Mulheres. As que nos acompanharam desde os bancos das escolas. Que viveram, com a Cruz na parede das salas, com o olhar severo e crítico dos Pais, sempre presentes ao jantar, e o olhar benevolente e compreensivo das Mães, presentes o dia todo.

As nossas Mulheres. Amantes, de beijos roubados às portas das casas, de um sôfrego respiro de ânsias e desejos difíceis de esconder.

As nossas Mulheres. Que nos acompanharam com linhas escritas com lágrimas, em aerogramas de saudade e esperança numa vida que diziam estar, mesmo aqui, ao lado da esquina, amanhã, o mais tardar. De tão jovens, algumas não aguentaram tanta separação. Quem lhes leva a mal, que a vida é curta e a Guiné estava tão longe.
As nossas Mulheres. Que nos recolheram, exaustos de uma vida tão mal vivida, e nos ensinaram de novo a vivê-la.


Em 1971, quatro anos depois da Guerra e ainda à procura da paz.

Foto: © Virgínio Briote (2008). Direitos reservados


As nossas Mulheres. Que foram dando à luz e criando, quantas vezes sós, os filhos de uma geração desperdiçada, tantas vezes com os companheiros ausentes e desinteressados.

Às nossas Mulheres, às que estiveram nos Terreiros do Paço a receberem medalhas e a todas as Mulheres da nossa geração, que de uma ou outra forma, compartilharam a nossa vida.

__________

Nota dos editores LG/CV:

(*) Vd. poste de 11 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1943: Virgínio Briote, novo co-editor do blogue

(i) Virgínio António Briote, 63 anos, nascido em Cascais.


(ii) Asp mil em Set de 1964, no BII17, Angra do Heroísmo, Terceira.


(iii) Mobilizado para Cabo Verde, dois dias depois para a Guiné. Engano, disse-lhe o Comandante do BII17.

(iv) Em rendição individual, foi para Cuntima, onde permaneceu de Janeiro até Maio de 1965 na CCAV 489, do BCAV 490.

(v) No final da comissão do Batalhão, esteve nos Comandos, onde fez o 2º curso de Instrução.

(vi) Comandante do Grupo Diabólicos, de Setembro de 1965 até Junho de 1966.

(vii) Extinta a CCmds da Guiné nessa data, foi destacado com o remanescente dos grupos para reforço do sector de Mansoa, onde se manteve até Set do mesmo ano.

(viii) Até à data de embarque em finais de Janeiro de 1967, prestou serviço na CCS do QG em Bissau.

(ix) Na vida civil, ingressou na Indústria Farmacêutica, tendo trabalhado em várias multinacionais, como responsável pelos departamentos comerciais.

(x) Motivos de saúde obrigaram-no a reformar-se aos 60 anos. Dá colaboração a empresas farmacêuticas, em colaboração com empresas de recursos humanos.

(xi) Vive em Lisboa e é casado com a Mria Irene, professora do ensino secundário, ainda activíssima. É pai e avô... babado.


Vd. também o blogue do Virgínio Briote > Guiné, Ir e Voltar - Tantas Vidas> Guiné. Ir e voltar. 1965 e 1967. Histórias baseadas em factos reais, mas vistas por um certo olhar. Outras vistas por esse olhar e que mais ninguém viu . (...).

8 comentários:

paulo santiago disse...

Gostei,apesar de não ter mulher/
namorada à espera,tinha outras
mulheres que muito amava:a minha
Mãe e a minha Irmã,que infelizmente
já nos deixou.
Abraço
P.Santiago
P.S.-Penso que foi em Pombal,fiquei
embebecido com a ternura que
demonstravas para com a tua
Sogra.

Anónimo disse...

Gostei muito do texto. Eu também ainda cheiro bem... apesar dos anos.
Uma dessas

Anónimo disse...

Gostei Gil, gostei e recordei. Mais ainda, senti o quanto tantos ou todos devem ás mulheres suas ou - à Mulher Mãe, Namorada, Esposa, Amante ,Amiga, Madrinha - Mulheres que, enquanto os homens por lá andaram ou, mais tarde, após o regresso no amparo, a eles, de vidas, de angustias e tormentos.
Gil, meu caro, eu não tinha mulher minha á espera. Enquanto a Comissão se desgastava a (ou as) relações foram-se. Depois, vieram a caída em braços e abraços, aqui ou acolá...e um dia vi fugazmente um rosto, um breve olhar, uma passagem rápida e marcante, um cabelo a cair a meio de costas em camisola amarelada...e o pisar, o andar...ficou indelevelmente marcado. A vida voltou a fazer saídas para aqui e acolá, a cair em braços de ocasião. Um dia, num breve regresso, voltei a ver...ah mas fiquei a ela amarrado, grudado...mesmo em fugas...havia a ela o regresso.Até que parou...tudo para trás se esfumou e, como tu meu caro Gil dizes Tantas Vidas, mesmo em fugas e corridas pelo mundo, a ela sempre voltei. Sem promessa vou, talvez em Janeiro,enviar-te um escrito de férias desse mês 40 anos atrás...estou a ficar "entrado" nos anos Gil..."entrado" AB José

Anónimo disse...

Que dizer...Gil
Também eu gostei muito deste teu texto...Tão belo...Tocou-me profundamente.
Já tinha mulher e toda a prole nascida...
Um abração
Jorge Picado

Santos Oliveira disse...

Camarada
A verdadeira Poesia é feita de dor e amargura. Identifico-me na tua bela narrativa de exaltação da Mulher, das Mulheres...
Conheço o sabor desses sentimentos e valorizo a ternura que aqui deixas marcada.
Não sou a "Mulher", mas fico grato por todas as Mulheres que nos seguraram, por aqueles tempos, na Esperança dum regresso ao seu Amor, aos seus beijos e abraços...
Bem hajas, amigo.
Abraços
Santos Oliveira

Juvenal Amado disse...

Caro camarada

Bela homenagem às mulheres. que estiveram também «lá», sofreram a incerteza todas as horas e todos os dias.
Depois do regresso, sofreram com os traumas que muitos carregaram, não foram por isso poupadas. São as derradeiras vitimas daqueles tempos.
O teu texto tão belo, deve-se com certeza ao que o cerebro ditou, o coração escreveu.

Um abraço

Juvenal Amado

Luís Graça disse...

Gil, heterónimo do VB: Obrigado por de vez em quando deixares à solta o teu criador... Isto é, libertá-lo das suas pesadas obrigações de editor deste blogue.

Magnífico texto, Gil!

VB: Espero que, quebrado o pudor e dado o exemplo, a malta da Tabanca Grande vá ao baú, desenterrar as cartas e os aerogramas que escreveu às suas queridas mulheres, amigas, primas, vizinhas, madrinhas de guerra, namoradas, esposas, mães, ...

Se a malta precisar de pretextos, todos os pretextos são bons: Dia dos Namorados, Dia da Mulher, Dia da Mãe... Vamos lá teclar... LG

PS - Mas que melhor pré-texto do que o teu texto inaugural ?

Anónimo disse...

Caro Virgínio Briote

Pela primeira vez, li um texto seu, e logo este...
Em primeiro lugar quero dar-lhe os parabéns pela forma como expressa, evidência, os seus sentimentos, em relação à mulher, (mulheres) de que fala e que foram ainda num número razoável. (Cada um, pode fazer o seu juízo próprio dos sentimentos de cada um, mas nunca se tem uma ideia perfeita, do que pensa cada um), neste caso, as (mulheres-crianças) desse tempo, que viram os seus muito prováveis namorados e maridos, partir para uma guerra de que ninguém sabia se regressariam, e depois os receberam,
e os trataram, e os ajudaram a superar, tudo o que sabeis melhor que eu, por isso, meu Caro Virgínio Briote, o meu muito obrigada pela sua ternura para com as mulheres desse tempo, para com as mulheres jovens, desconhecedoras e puras, que vos esperaram, amaram, e ajudaram a construir a vossa própria vida, contribuindo para o equilíbrio da sociedade.
Obrigada em nome de todas as mulheres desse tempo, pela ternura com que fala.

Saudações cordiais da
Felismina Costa