terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3703: Cancioneiro de Aldeia Formosa (1): Que canseira passámos na coluna / entre Buba e Aldeia ... (José Teixeira / Silvério Lobo)

1. Mensagem enviada a toda a Tabanca Grande pelo nosso querido co-editor e administrador Carlos Vinhal, com data de 7 de Novembro, e que eu julguei dever publicitar através do blogue:

Caros camaradas e amigos tertulianos

O nosso camarada José Teixeira [, na foto, à esquerda, em Empada, em traje de guerra, ] enviou-me o endereço onde está alojado um pequeno vídeo feito na Guiné-Bissau durante o Simpósio Internacional de Guiledje quando eles visitaram uma série de localidades [no sul, no Cantanhez, região de Tombali, incluindo Aldeia Formosa, esta a 3 de Março de 2008, já no regresso a Bissau].

Este endereço foi colocado no poste Guiné 63/74 - P3413: Blogoterapia (71): O regresso voluntário à África da nossa juventude (José Teixeira) .

Aconselho-vos a ver estas imagens a partir do citado poste ou em: http://video.msn.com/video.aspx/?mkt=pt-br&cid=2997719327111784874&wa=wsignin1.0


Um abraço do
Carlos Vinhal

2. Comentário de L.G.:

Neste vídeo, da autoria do Zé Teixeira [, ou do Silvério Lobo, ou ainda de um terceiro camarada que foi com eles a Quebo,] com a duração de 2' 45'', vemos dois guineenses, um mais jovem e um mais velho (este último possivelmente um antigo soldado da CCAÇ 18), reconstituindo para o nosso camarada Silvério Lobo, que foi logo reconhecido por um deles como antigo mecânico nesta subunidade, algumas das canções dos tugas...Chamemos-lhes o Cancioneiro de Aldeia Formosa...

A primeira era a romantiquíssima canção do brasileiro Nilton César que fazia chorar as pedras da calçada... Era muito popular entre pessoal que vivia como as toupeiras nas casernas da Guiné, e que suspirava pelo dia de regresso a casa, para os braços da sua amada, como qualquer soldado de qualquer guerra, em qualquer época ou lugar do mundo... É espantoso como guineeneses como estes - que conviveram com os militares portugueses, mas que mal sabiam falar português, que eram fulas e islamizados - tenham decorado a letra e a música desta e doutras canções, ininteligíveis para eles... Pode-se admitir que a linguagem do amor é universal. No entanto, do ponto de vista semântico-conceptual, para estes homens, fortemente formatados pelo patriarcalismo e pelo sexismo da sua sociedade de origem, expressões em que se idealiza a mulher amada (como "namorada que sonhei", "rosas vermelhas", "dia dos namorados", "eternos namorados", "deusa na terra nascida, etc.), não deveriam ser de fácil descodificação.

A Namorada Que Eu Sonhei
por Nilton César

Receba as flores que lhe dou
E em cada flor um beijo meu,
São flores lindas que lhe dou,
Rosas vermelhas com amor,
Amor que por você nasceu.

E seja assim por toda a vida
E a Deus mais nada pedirei,
Querida, mil vezes querida,
Deusa na terra nascida,
A namorada que sonhei.

No dia consagrado aos namorados,
Sairemos abraçados por aí a passear,
Um dia no futuro então casados,
Mas eternos namorados,
Flores lindas, eu ainda vou lhe dar.

Que seja assim por toda a vida
E a Deus mais nada pedirei,
Querida, mil vezes querida,
Deusa na terra nascida,
A namorada que sonhei.


As outras duas eram paródias, feitas por algum tuga mais letrado ou com jeito para o verso de pé quebrado, de dois fados muito populares, muito conhecidos, com letras que relatavam invariavelmente a triste sorte dos mecânicos, dos condutores e das suas gloriosas máquina de guerra nas colunas logísticas de Buba para Aldeia Formosa e vice-versa. O tema são as canseiras, o pó, as minas, as emboscadas, os sustos, os perigos...

É preciso estar de ouvido muito apurado para perceber as letras (corrompidas)... Sobretudo é preciso tempo e pachorra. Mas era interessante alguém (o Zé Teixeira ou o Silvério Lobo) poder mandar-me as letras originais completas.

Mais uma vez pode perguntar-se que sentido podia fazer para um estrangeiro - como era o caso daqueles camponeses fulas que tinham pegado em armas, ao lado dos portugueses - a letra original destes fados... O mesmo se podia perguntar em relação a alguns militares portugueses, oriundos do Portugal profundo, pouco escolarizados e viajados, que não conheciam Lisboa, o Bairro Alto, a cultura e a vivências fadistas...

No entanto, eram canções que passavam na rádio, e que entravam facilmente no ouvido. O mais interessante é, no entanto, a recriação da letra: aí fala-se do quotidiano comum dos soldados, guineenses e portugueses, dos riscos comuns, da cumplicidade, da solidariedade, dos comportamentos de bravata, do heroísmo, da camaradagem...

Bairro Alto (Letra: Carlos Simões Neves e Oliveira Machado
Música: Nuno de Aguiar)

Bairro Alto, com seus amores tão delicados,
Certa noite, deu nas vistas,
E saiu com os trovadores mais o fado,
P'ra fazer suas conquistas.
Tangeu as liras singelas,
Lisboa abriu as janelas,
Acordou em sobressalto,
Gritaram Bairros à toa,
Silêncio velha Lisboa,
Vai cantar o Bairro Alto.


[Estribilho]

Trovas antigas,
Saudade louca,
Andam cantigas
A bailar de boca em boca...
Tristes, bizarras,
Em comunhão,
Andam guitarras
A gemer de mão em mão!


Por isso é que mereceu fama de boémio,
Por condão ou fatalista,
Atiraram-lhe com a lama, como prémio,
Por ser nobre e ser fadista.
Hoje saudoso e velhinho,
Recordando com carinho,
Seus amores, suas paixões,
P'ra cumprir a sina sua,
I'nda veio p'rá meio da rua,
Cantar as suas canções!


A outra canção parodiada era a da célebre criação da Amália, o fado Dar de beber à dor (letra e música de Alberto Janes). Como é sabido, a Casa da Mariquinhas - leia-se, casa de passe gerida por uma tal Mariquinhas, terno diminuitivo de Maria - é uma genial criação do Alfredo Marceneiro, um íncone da história do fado.

Foi no Domingo passado que passei
à casa onde vivia a Mariquinhas,
mas 'stá tudo tão mudado
que não vi em menhum lado
as tais janelas que tinham tabuinhas.
Do rés-do-chão ao telhado
não vi nada, nada, nada
que pudesse recordar-me a Mariquinhas,
e há um vidro pregado e azulado
onde havia as tabuinhas.

Entrei e onde era a sala agora está
à secretária um sujeito que é lingrinhas,
mas não vi colchas com barra
nem viola, nem guitarra,
nem espreitadelas furtivas das vizinhas.
O tempo cravou a garra
na alma daquela casa
onde as vezes petiscávamos sardinhas
quando em noites de guitarra e de farra
estava alegre a Mariquinhas.

As janelas tão garridas que ficavam
com cortinados de chita às pintinhas
perderam de todo a graça
porque é hoje uma vidraça
com cercadura de lata às voltinhas.
E lá p'ra dentro quem passa
hoje é p'ra ir aos penhores
entregar ao usurário umas coisinhas,
pois chega a esta desgraça toda a graça
da casa da Mariquinhas.

P'ra terem feito da casa o que fizeram
melhor fora que a mandassem p'rás alminhas,
pois ser casa de penhores
o que foi viveiro d'amores
é ideia que não cabe cá nas minhas
recordações do calor
e das saudades. O gosto
que eu vou procurar esquecer
numas ginginhas,
pois dar de beber à dor é o melhor,
já dizia a Mariquinhas.


O mínimo que posso dizer é que é uma ternura ver estes antigos soldados da CCAÇ 18 (?), em princípio fulas, nossos aliados de outrora, a dar o seu melhor e a tentar fazer uma surpresa aos velhos tugas - seus camaradas de armas de outrora e que agora voltam a Aldeia Formosa, em viagem de saudade -, esforçando-se por cantar as suas velhas canções que serviam, lá no cu do mudo, para espantar o medo, os fantasmas, o tédio, a revolta contra o absurdo, a angústia, a saudade. (Uma receita de humor que, de resto, continua válida para os não menos duros tempos de hoje...).

Amigos e camaradas da Guiné: este é um material precioso (mas muito perecível), que temos que recolher, preservar e divulgar. Ele é tão importante como as nossas histórias para a compreensão sócio-antropológica do nosso quotidiano de combatentes na Guiné (*)... LG

3. Nota posterior do Zé Teixeira:

O seu a seu dono. Eu estive em Aldeia Formosa. Encontrei-me com pessoas amigas, mas não sou o autor da gravação. O Lobo volta lá de mota depois de ter "subornado" o jovem motoqueiro algarvio que nos acompanhou na viagem [em Março de 2008] e passou lá um dia inteiro.

Sei que o primeiro cantor era um puto que andava pela oficina nos anos 73 e reconheceu o Lobo, identificando-se como o puto reguila como então o Lobo o identificava, pela sua esperteza. Em resumo quem fez a gravação foi o Lobo ou o Motoqueiro.

De facto, é impressionante a forma como aquele simpática gente nos recebe. Muito gostava que o Lobo escrevesse o que sentiu quando o Puto o chamou pelo nome, se identificou e perguntou por alguns camaradas do tempo da guerra, entre os quais o Carmelita, nosso companheiro na Tabanca de Matosinhos [, tal como o Silvério].
__________

Nota de L.G.:

(*) Até ao momento temos recolhas de letras (nalguns casos, também de músicas) de canções de caserna, cantadas em vários sítios da Guiné (mas também de poesia com a cor local...): Bafatá, Bambadinca, Bissau, Canjadude, Cufar, Cumbijã, Cuntima, Empada, Gandembel, Mampatá, Mansoa, Xime/Ponta do Inglês... Seguramente que haverá, por aí, cópias de muitos mais poemas e letras de canções... Talvez um dia o nosso blogue possa reunir todo esse material e fazer uma edição crítica do... Cancioneiro da Guiné!

Vd. o último poste dedicado a outro Cancioneiro, o de Bambadinca > 7 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3582: Cancioneiro de Bambadinca (2): Brito, que és militar... (Gabriel Gonçalves, ex-1º Cabo Cripto, CCAÇ 12, 1969/71)

3 comentários:

Anónimo disse...

O seu a seu dono.
Eu estive em Aldeia Formosa. Encontrei-me com pessoas amigas, mas não sou o autor da gravação.
O Lobo voltá de mota depois de ter "subornado" o jovem motoqueiro aogarvio que nos acompanhou na viagem e passou lá um dia inteiro.
Sei que o ptrimeiro cantor era um puto que andava pela oficina nos anos 73 e reconheceu o Lobo,identificando-se como o "puto reguila" como então, o Lobo o identificava, pela sua esperteza.
Em resumo quem fez a gravação foi o Lobo ou o Motoqueiro.
De facto, é impressionante a forma como aquele simpática gente nos recebe. Muito gostava que o Lobo escrevesse o que sentiu quando o Puto o chamou pelo nome, se identificou e preguntou por alguns camaradas do tempo da guerra, entre os quais o Carmelita, nosso companheiro na Tabanca de Matosinhos

Anónimo disse...

2 soldados (dois), fulas?

Mesmo após trinta e tal anos, quantos milhares eles poderiam representar?

E será que eram tão despolitizados como muitas vezes se pretende representar?

E será que esta gente bem no fundo, não almejaria tambem uma independência? Um dia?

Antº Rosinha

Unknown disse...

Os links não abrem ou é do meu computador?
Alvaro Basto