ABRIL DE 1973
Se ainda se lembram, terminei o último capítulo da história da minha Companhia com o relato de um ataque ao arame no dia 9 de Abril (*), a um arremedo de aquartelamento que era o Cumbijã: duas fiadas de arame farpado, quinze ou vinte tendas de campanha, valas para protecção de eventuais ataques e uma cozinha de campanha.
Todos os pedidos dirigidos ao Batalhão no sentido de tornarem a vida menos difícil aos Tigres esbarravam num muro de silêncio, eventualmente por não disporem de quaisquer meios para nos ajudar na construção de condições que nos permitissem viver com um mínimo de dignidade humana, até porque a engenharia começava a fase mais difícil da construção da estrada.
Tomámos então a decisão de construirmos nós próprios as nossas instalações.
Em Roma sê romano, na Guiné sê guineense.
Começámos por amassar o barro com os pés, dávamos a essa massa a forma de blocos que secavam durante uns dias ao sol e as primeiras paredes começaram a ser levantadas. Era fundamental ter um posto de comando bem perto da toca das transmissões, que era um buraco cavado no chão pela Engenharia, coberto por troncos de palmeira, por sua vez tapados por barro e finalmente cobertos com uma montanha de terra.
Foi pelo Posto de Comando que iniciámos as nossa obras. Tenho duas fotografias que mostram o esforço dos meus companheiros, que anexo, relativamente às quais peço lhe sejam dadas o devido relevo, pois quero salientar o sacrifício desta malta que depois de vir do mato da protecção à estrada, ou da coluna diária a Aldeia Formosa ainda tinha uma horita de trabalhos forçados para fazer já não sei quantos blocos por dia. Presto a minha singela homenagem a toda a Companhia, nas pessoas aqui retratadas.
Amassando blocos para a construção das futuras instalações
Amassando após o regresso da coluna a Aldeia
Visita do General Spínola
No dia 14 de Abril, mais uma vez recebemos a visita do General Spínola.
Parei este texto neste parágrafo, vai para mais de quinze dias. Problemas da vida pessoal, mas fundamentalmente o medo de não saber expressar, ou fazê-lo de forma menos correcta, os sentimentos acerca do General Spínola, homem controverso que suscitou, e pelos vistos continua a suscitar, sentimentos de amor e desamor, tão depressa acusado como louvado, que na guerra tentava encontrar soluções ou pela via diplomática junto de Shengor, ou invadindo países vizinhos, como aconteceu com a Operação Mar Verde, autor de Portugal e o Futuro (mais vale tarde que nunca), abandonando o Guileje ou pelo menos não lhe dando hipóteses de uma defesa racional, recusando o convite de Marcello Caetano para ministro do Ultramar em finais de 1973, recusando-se também e juntamente com o General Costa Gomes a fazer parte da Brigada do Reumático que foi prestar vassalagem a Caetano. Este homem, que foi também o primeiro Presidente da República após o dia da libertação – 25 de Abril de 1974 - este homem heterodoxo, será no decurso da história que vou escrevinhando acerca da minha Companhia, analisado apenas e só através de um discurso substantivo que se limitará a descrever a vivência que os Tigres do Cumbijã com ele tiveram.
No dia 14 de Abril de 1973 recebemos então a visita do General Spínola.
Recordo-me da primeira pergunta que me fez:
- É do quadro ou miliciano?
Recordo-me da resposta imediata e eventualmente atrevida que lhe dei:
- Neste buraco?… Sou miliciano.
Vi nele o esboço de um sorriso, seguido de nova questão:
- Falta-lhe alguma coisa?
- Tudo!
- Tudo o quê?
Seria fastidioso continuar esta conversa em discurso directo, pelo que os meus camaradas e amigos que são conhecedores das condições desumanas em que vivíamos, facilmente adivinharão o que durante alguns minutos lhe fui solicitando: cimento para construirmos casernas, chapas de bidão cortadas, apoio da Engenharia para que as coisas andassem mais rapidamente, arcas frigoríficas a petróleo pois não tínhamos direito a uma cerveja fresca, um gerador e obuses, já que o apoio da artilharia quando éramos atacados nos era dado ou por Mampatá ou Aldeia, não tenho a certeza. A sua resposta ficou célebre entre os Tigres:
- Terá tudo isso na próxima LDG. Os obuses já estão tratados, o resto, repito, chega a Buba na próxima LDG, incluindo as arcas frigoríficas, nem que tenha de as ir buscar à messe dos oficiais de Bissau.
A parte final da frase obviamente era escusada, mas não imaginam a alegria que todos os soldados, e não só, sentiram ao ouvi-la. O General Spínola era exímio neste tipo de tiradas e nunca o ouvi a recriminar nenhum soldado, mas vi-o zangado com um grande do quadro, utilizando por várias vezes no seu discurso a palavra que imortalizou Cambronne, apesar da minha presença. Visitar-nos-ia ainda em Nhacobá, mas aí não houve tempo para discursos.
Só quero acrescentar que na LDG seguinte o prometido chegou!
O Vasco posando junto ao recém - chegado obus 10,5
O General Spínola e o Vasco, de costas, em pleno aquartelamento
Da esquerda para a direita: Alf Abundâncio, Cap Vasco da Gama, General Spínola, Cap Malheiro da CCaç 3399, de Aldeia, o sr. Comandante do Batalhão de Aldeia Formosa, BCaç 3852
Interrogatório do Comandante em Chefe
Interrogatório do Comandante em Chefe
Interrogatório do Comandante em Chefe
Partida do General Spínola
Até finais de Abril e diariamente, tivemos sempre dois Grupos de Combate a construir o destacamento, enquanto dois outros pelotões realizavam também diariamente patrulhamento e picagem na zona do Cumbijã, ou iam a Aldeia buscar os géneros para dois ou três dias ou escoltavam a coluna Aldeia – Buba - Aldeia.
O destacamento começava a ter construção de blocos e cimento. Cada Grupo de Combate teria em meados de Junho a sua caserna, onde, separados apenas por uma parede, dormiam também o alferes e os furriéis de cada Pelotão.
A adopção desta distribuição custou-me uma espécie de reprimenda de um dos comandantes do Batalhão de periquitos que entretanto havia chegado a Aldeia Formosa – BCaç 4513 - e esteve durante algum tempo em sobreposição com os já velhinhos do BCaç 3815. É verdade amigos, Aldeia durante algum tempo teve dois batalhões, para além da excelente CCaç 18. Obviamente que a distribuição do pessoal permaneceu como o Gama entendeu, e palavras como promiscuidade e outras que tais não tinham razão de ser, pelo menos para mim. Findo que seja um jogo de xadrez peões, cavalos, torre e rei voltam todos para a mesma caixa.
Para terminar Abril apenas mais um embrulhanço de morteiro 82 sem qualquer consequência.
Com os obuses veio a sua guarnição composta de negros enquadrados por um cabo, um furriel e um alferes, todos eles brancos…
Rapidamente os negros começaram a construir as suas moranças, das quais, felizmente possuo uma fotografia que um antigo camarada meu, o ex-cabo e sempre amigo José Carlos Faria dos Santos, me enviou.
O Zé Carlos, que aparecerá em duas ou três fotografias que abaixo vos mostro, era um homem sem medo tanto com a sua bazuca ou como apontador de dilagrama e era também um daqueles desenrascados sempre pronto para uma partida mas também para ajudar o seu amigo.
Um belo dia, numa das deambulações que fazia pelo acampamento, deparei por detrás das moranças dos camaradas da artilharia, mesmo junto ao arame, com uma bela horta, que se pode ver na foto devidamente identificada. A horta, obviamente, era da autoria do Zé Carlos.
Vê lá, Zé Carlos, que ao fim de trinta e sete anos vou mostrar a centenas de pessoas que vão acompanhando o nosso blogue a tua horta. O Zé que hoje habita para os lados de Torres Novas, é um bom amigo com quem me vou encontrando; é pai de três filhos, um engenheiro, outro sargento da Armada e outro estudante no ensino superior. Ele foi o grande impulsionador dos encontros da nossa Companhia e todos os anos sobe ao palco para dizer uma versalhada, que eu julgo ser sempre a mesma, pois por essa altura já os vapores etílicos tomaram conta da maior parte de nós.
Para ti e para os nossos camaradas e amigos que moram ao pé de ti, o Felício e o Félix, vai um abraço amigo e solidário.
Prefiro ficar por aqui, pois o mês de Maio, sem dúvida o mais negro, não se enquadra nesta forma despreocupada com que hoje termino.
Zé Carlos no posto de vigia voltado para Nhacobá
A célebre horta do Zé Carlos
Zé Carlos em pose com a sua bazuca
Fotos e legendas: © Vasco da Gama (2008). Direitos reservados.
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 28 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3675: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (5): Ocupação do Cumbijã e construção das instalações
INAUGURAÇÃO OFICIAL DAS INSTALAÇÕES
Ia o dia nove de Abril quase no fim, quando os Tigres sofrem um ataque a parecer bem. Era a primeira reacção do PAIGC à construção do acampamento. Os dois Gr Comb que então se encontravam no Cumbijã são confrontados com um ataque violentíssimo de morteiro 60, RPG7, RPG2 e armas ligeiras, tendo mesmo o grupo IN tentado o assalto. O primeiro disparo de RPG2 destruiu por completo uma tenda de campanha, tendo-nos causado oito feridos. Ripostámos forte e feio, e dizem-me alguns soldados que viram integrados no grupo que veio ao arame dois brancos. Vale o que vale… mas que foi muito duro para os dois GCOMB foi. Mas as entradas ali não eram permitidas… só pela porta de armas, que não havia. Os feridos, suponho que todos eles ligeiros, foram de seguida para Aldeia Formosa. (...)
Vd. último poste de série de 4 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3697: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (6): Aditamentos (Vasco da Gama)
O destacamento começava a ter construção de blocos e cimento. Cada Grupo de Combate teria em meados de Junho a sua caserna, onde, separados apenas por uma parede, dormiam também o alferes e os furriéis de cada Pelotão.
A adopção desta distribuição custou-me uma espécie de reprimenda de um dos comandantes do Batalhão de periquitos que entretanto havia chegado a Aldeia Formosa – BCaç 4513 - e esteve durante algum tempo em sobreposição com os já velhinhos do BCaç 3815. É verdade amigos, Aldeia durante algum tempo teve dois batalhões, para além da excelente CCaç 18. Obviamente que a distribuição do pessoal permaneceu como o Gama entendeu, e palavras como promiscuidade e outras que tais não tinham razão de ser, pelo menos para mim. Findo que seja um jogo de xadrez peões, cavalos, torre e rei voltam todos para a mesma caixa.
Para terminar Abril apenas mais um embrulhanço de morteiro 82 sem qualquer consequência.
Com os obuses veio a sua guarnição composta de negros enquadrados por um cabo, um furriel e um alferes, todos eles brancos…
Rapidamente os negros começaram a construir as suas moranças, das quais, felizmente possuo uma fotografia que um antigo camarada meu, o ex-cabo e sempre amigo José Carlos Faria dos Santos, me enviou.
O Zé Carlos, que aparecerá em duas ou três fotografias que abaixo vos mostro, era um homem sem medo tanto com a sua bazuca ou como apontador de dilagrama e era também um daqueles desenrascados sempre pronto para uma partida mas também para ajudar o seu amigo.
Um belo dia, numa das deambulações que fazia pelo acampamento, deparei por detrás das moranças dos camaradas da artilharia, mesmo junto ao arame, com uma bela horta, que se pode ver na foto devidamente identificada. A horta, obviamente, era da autoria do Zé Carlos.
Vê lá, Zé Carlos, que ao fim de trinta e sete anos vou mostrar a centenas de pessoas que vão acompanhando o nosso blogue a tua horta. O Zé que hoje habita para os lados de Torres Novas, é um bom amigo com quem me vou encontrando; é pai de três filhos, um engenheiro, outro sargento da Armada e outro estudante no ensino superior. Ele foi o grande impulsionador dos encontros da nossa Companhia e todos os anos sobe ao palco para dizer uma versalhada, que eu julgo ser sempre a mesma, pois por essa altura já os vapores etílicos tomaram conta da maior parte de nós.
Para ti e para os nossos camaradas e amigos que moram ao pé de ti, o Felício e o Félix, vai um abraço amigo e solidário.
Prefiro ficar por aqui, pois o mês de Maio, sem dúvida o mais negro, não se enquadra nesta forma despreocupada com que hoje termino.
Zé Carlos no posto de vigia voltado para Nhacobá
A célebre horta do Zé Carlos
Zé Carlos em pose com a sua bazuca
Fotos e legendas: © Vasco da Gama (2008). Direitos reservados.
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 28 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3675: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (5): Ocupação do Cumbijã e construção das instalações
INAUGURAÇÃO OFICIAL DAS INSTALAÇÕES
Ia o dia nove de Abril quase no fim, quando os Tigres sofrem um ataque a parecer bem. Era a primeira reacção do PAIGC à construção do acampamento. Os dois Gr Comb que então se encontravam no Cumbijã são confrontados com um ataque violentíssimo de morteiro 60, RPG7, RPG2 e armas ligeiras, tendo mesmo o grupo IN tentado o assalto. O primeiro disparo de RPG2 destruiu por completo uma tenda de campanha, tendo-nos causado oito feridos. Ripostámos forte e feio, e dizem-me alguns soldados que viram integrados no grupo que veio ao arame dois brancos. Vale o que vale… mas que foi muito duro para os dois GCOMB foi. Mas as entradas ali não eram permitidas… só pela porta de armas, que não havia. Os feridos, suponho que todos eles ligeiros, foram de seguida para Aldeia Formosa. (...)
Vd. último poste de série de 4 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3697: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (6): Aditamentos (Vasco da Gama)
4 comentários:
20 de Janeiro, aniversário do assassinato de Amilcar Cabral.
Era interessante termos o eco das cerimónias quer do PAIGC, quer do PAICV.
Antº Rosinha
Amigo Vasco da Gama:
Antes da mais, agradeço-te do coração por não teres desistido com o relato que tão bem tens vindo a fazer dos tempos de Cumbidjá.Já agora, gostava que me dissesses se um dos feridos de 9 de Abril foi o Angélico que eu vi ser evacuado em Aldeia Formosa, com um estilhaço no pescoço.Mais tarde, passados 10 anos, enquanto funcionários da Seguraça Social, no Porto,falando do tempo ido,chegamos à conclusão de que tínhamos estado na mesma zona e então pedi-lhe que baixasse a gola da camisola para me certificar se aquele Angélico era o mesmo que eu tinha visto entrar para uma avioneta, com dúvidas sobre se sobreviveria.
Amigo Vasco da Gama:
Antes da mais, agradeço-te do coração por não teres desistido com o relato que tão bem tens vindo a fazer dos tempos de Cumbidjá.Já agora, gostava que me dissesses se um dos feridos de 9 de Abril foi o Angélico que eu vi ser evacuado em Aldeia Formosa, com um estilhaço no pescoço.Mais tarde, passados 10 anos, enquanto funcionários da Seguraça Social, no Porto,falando do tempo ido,chegamos à conclusão de que tínhamos estado na mesma zona e então pedi-lhe que baixasse a gola da camisola para me certificar se aquele Angélico era o mesmo que eu tinha visto entrar para uma avioneta, com dúvidas sobre se sobreviveria.
Meu caro camarada Carvalho´
Muito obrigado pelas tuas simpáticas palavras. O então Alferes Angélico de quem falarei no próximo texto, não foi ferido a 9 de Abril, mas sim a 18 de Maio de 1973 como contarei no meu próximo relato.
Um abraço do
Vasco da Gama
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