quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3775: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (3): Ir a Mansoa, não é perigoso?

1. Mensagem de António Paiva, ex-Sold Cond no HM 241 de Bissau, 1968/70, com data de 18 de Janeiro de 2009:

Caros Luís, Carlos e Virgínio

Quando a oportunidade surgia, tínhamos que a aproveitar e, ala que se faz tarde, lá ia eu uma vez mais até Nhacra, com mais dois ou três camaradas para uns banhos na piscina, ao mesmo tempo se aproveitava para o bacalhau assado da tia Carlota.

Se quando vim da Guiné não tivesse feito a maior asneira da minha vida, casar com a mulher errada, talvez hoje as histórias que vou contando tivessem dia e hora, mas como tudo o que trouxe foi destruído, não me é possível dar com exactidão os factos.

Mas vamos à história:

Ir a Mansoa? - O susto ou o medo?

Mansoa > Ponte sobre o Rio Mansoa.
Foto de J. Mexia Alves, editada por CV



Um domingo, igual a outros lá passados, que veio a ser diferente. Arrancámos para Nhacra, sete ou oito em dois jeeps, para o nosso requintado banho, sem sauna nem massagens, para aliviar um pouco o espírito das desgraças do nosso trabalho.
Quando lá estávamos a tomar o nosso banho, pela primeira vez, ouvimos com mais intensidade os rebentamentos em Mansoa, o cantarolar daquelas bocas férreas, expelindo seus dentes para fazer suas vítimas. Penso que nunca tínhamos ouvido a guerra tão perto. Mal pensávamos na surpresa que aí vinha.

Estávamos no banho, quando um furriel ou sargento veio à piscina e só disse:
- Pessoal do hospital, já para baixo.

Tudo foi espontâneo ou característico da prontidão.
Enfiamos camisas, calções e sapatos, ainda um pouco molhados e arrancámos.
Posso dizer que aqueles 32Kms, se a memória hoje não me engana, foram feitos em tempo recorde.
Quem devia ter ficado com as cabeças a abanar foram os senhores Oficiais que se encontravam em Safim, acompanhados de suas esposas ou amantes, amigas ou companheiras a bebericarem refastelados as suas cervejas e whisky com acompanhamento de ostras e camarão, quando viram passar à frente dos seus olhos dois jeeps voadores.
Sim, porque a ponte que estava uns metros antes fazia lomba, o que, à velocidade a que vínhamos, fez levantar as rodas do chão. Logo pensei:
- Estamos feitos com estes gajos, vão participar de nós. Tal não veio a acontecer.

Chegados ao hospital, deparámos com um cenário nada familiar. Companheiros do dia-a-dia com camuflados vestidos e com G3, em frente à escadaria do hospital. Tal foi meu espanto que me levou a pedir ao Altíssimo que não me desse maus pensamentos.

O Tenente Teixeira, me diz:
- Paiva, vai vestir o camuflado e levanta uma pistola na Formação.

Olhei-o com espanto.
- Vá despacha-te, devemos ter de ir a Mansoa.

Bem, lá fui direito à caserna vestir, pela primeira vez, o meu fato de trabalho no exterior, já o tinha vestido mais vezes, mas só para a fotografia.
Passo pela Formação e levanto a maquineta dos supositórios, foi a primeira vez que em tal menina peguei, nem sabia como trabalhar com ela, se dava coices ou não, olhei para ela e ri-me. Esquerdo ou direito, que lado queres? Não tinha praticado para pistoleiro. Levei-a na mão e passei pela Cantina para beber um whisky, talvez o último. Quem saberia?
Segui para cima, a juntar-me aos que lá estavam, para me inteirar da situação que era a seguinte:

Como os helicópteros não podiam lá descer, teríamos de ser nós, por terra, a lá entrar para trazer os mortos e os feridos que lá houvesse.
Cada ambulância ia com o condutor, como era óbvio, mais dois elementos armados com G3.
Aguardava-se ordem para sair.

Entretanto, ia-se questionando:
Como entramos? Por onde? Como vamos ser recebidos? Não somos operacionais, não temos conhecimento de mato, talvez não ataquem as ambulâncias. Quando lá estivermos vai ser tudo ao molho e fé em Deus. Tudo isto, santa ignorância.

O Tenente Teixeira tranquilizou:
- Não tenham medo, vão ter à vossa espera tropas de lá, com dois blindados para vos acompanhar.

Em forma de brincadeira ainda se dizia:
- Vamos armados, ninguém se mete connosco, somos guerreiros do melhor.

Uma porra, era o medo que se tinha instalado em nós, que comprimindo-nos os nervos e o corpo, nos obrigava a frases estúpidas.
Pela minha parte, estava tão seguro que disse a um companheiro do dia-a-dia, dando-lhe nome e morada, se me acontecer alguma coisa de maior escreve para esta rapariga e conta-lhe a verdade, ela o saberá dizer a meus pais de forma mais suave.

Passada uma hora ou coisa assim, tudo voltou ao principio, a nossa saída para Mansoa ficava sem efeito.

Sabíamos perfeitamente, que antes de lá chegarmos teríamos o apoio das NT para nos indicarem o caminho e nos protegerem, nós íamos ser os estranhos num mundo desconhecido.
Só não cheguei a entender a razão de irmos armados. Juntos com as NT o melhor era ficarmos quietinhos para não fazermos asneiras, se encontrássemos o IN teríamos de nos sentar em círculo com uma garrafinha de aguardente de cana para decidir quem passava primeiro.

Fui á Formação e entreguei a maquineta dos supositórios que me tinham dado.
Fui à caserna e tirei o fato de trabalho no exterior.
Fui à cantina e bebi outro whisky, para fazer ver ao primeiro que não tinha sido o último.

Aos jovens daquele tempo estávamos sempre prontos a ajudar, dentro ou fora, não hesitávamos.

Gostava de saber onde param os jovens do meu tempo, com quem partilhámos a vida do Hospital.

Um abraço
António Paiva
__________

Notas de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3641: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (2): Aventura de Domingo

Vd. último poste de António Paiva de 28 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3676: As Nossas Mulheres (3): Um poema da minha Mãe, Leopoldina Duarte (António Paiva)

3 comentários:

Anónimo disse...

Em Junho de 1966 eu mais o Furriel Baião e outro Furriel que não me lembro o nome, todos da C.C. 816, fomos os 3 de Volkswagen alugado a um Sargento em Bissau, de Bissau a Mansoa feitos turistas buscar um documento ao Comando, que era preciso para embarcarmos no avião de TAP para férias. Esta é um história para contar ainda no Blogue da Tabaca Grande.
Que arrepio!!

Anónimo disse...

Caro Rui
No meu tempo (1970/72) o percurso entre Bissau e Mansoa, para nós, era um passeio na Av da Liberdade. Os problemas começavam de Mansoa para Cutia e, daqui até Mansabá... era o diabo. Neste percurso perdemos dois camaradas, quando já tínhamos 20 meses de comissão.
Um abraço
Vinhal

Anónimo disse...

Caro Vinhal
Concerteza que está certo o que disses atrás, mas quando termino "Que arrepio", quero dizer que passadas poucas semanas de eu lá ter passado com os meus 2 colegas em "passeio turístico" (traje civil e sem armas) começou a haver emboscadas com mortes naquela estrada (Bissau-Mansoa).
Ora, pareceu-nos depois, que podíamos ser apanhados à mão.
Se depois a coisa ali abrandou, não sabia.
Um abraço.