O António Garcia de Matos, Alf Mil CCAÇ 2790, Bula, 1970/72 (*) ... Dois momentos, duas fotos: o Matos, acabado de chegar à Guiné (foto de cima), e depois a meio da comissão... (Já completamente apanhado do clima...)
O nosso camarada Matos, na Guiné, era um homem que brincava com o fogo, um sapador, o tal das minas e armadilhas ( o terror de qualquer infante, de um lado e do outro), o tal que montava, desmontava, cavilhava, descavilhava... Felizmente regressou inteiro... Mas deixou lá dois anos de vida (só ?). Ei-lo aqui ao espelho, fazendo a sua autoscopia... Mais um texto de antologia do nosso blogue (entre centenas que temos publicado)... Obrigatório ler para quem quiser conhecer, do lado de cá do monitor, a angústia do sapador em acção... Um abraço para o António Matos e outro para o Luís Faria, que felizmente regressaram para contar aos filhos e aos netos essa estranha história de gente que aos 20 anos andava em cima do fio da navalha (quer eu dizer, da faca de mato)... (LG)
1. Mensagem do António Matos:
Meus caros editores,
Após o desafio do Luís Graça, aqui está uma pequena contribuição minha para o tema (**).
Anexo 4 fotos:
(i) Uma de quando cheguei à Guiné;
(ii) outra a meio da comissão, no campo de minas;
(iii) uma outra da mina descrita no texto;
(iv) e finalmente outra da actualidade.
Façam como entenderem melhor no seu aproveitamento.
Embora ande por aí um texto meu por publicar, gostava de pedir que este fosse mais rápido por uma questão de actualidade com o pedido do Luis.
Se puder, óptimo !
Se tiver que ultrapassar outros textos, .... óptimo !
Se não puder ... Stº António !
Um abraço,
António
2. Espelho meu, diz-me quem sou eu (2) > António Matos
Um dia, vejo-me de faca de mato em riste, camuflado desbotado de tanta lavagem ter suportado, olhando para o céu como que a implorar capacidade de compreensão da situação do momento, rodeado de alguns camaradas mais absortos uns do que outros, numa missão cujas consequências não nos era dado reflectir ainda que as alterações comportamentais pessoais viessem a ser extremamente condicionantes do que seria de supor se se observassem, exaustivamente que fosse, as apetências que o nosso ADN deixaria antever.
Em menino também fui dos que brinquei ao Zorro e ao Tonto (eu era o Zorro !), ao David Crocket, ao chefe da Brigada Montada, ao Major Alvega e neles via os heróis, os justiceiros, os aventureiros que queria imitar...
Eram saudáveis as lutas que travava de espada (de madeira e numa imitação de O Pirata Vermelho protagonizado pelo Burt Lancaster ) ou aos cowboys onde o cavalo mais não era do que o som imitativo dum galope (às vezes umas relinchadelas ) e a postura se assemelhava ao do equídeo a correr numa cadência de trote...
De quando em vez o nosso quintal que dava vida aos desfiladeiros do Grand Cannyon, transformava-se em palco de tiroteio de TÁTÁRÁTÁTÁ TRRRRRÁÁÁÁÁÁ e discutíamos acerrimamente que “tu já morreste !”, “eu acertei-te !”, “tens que morrer !”
Depois começava a escurecer e regressávamos a casa para jantar e fazer uma sabatina com o pai sobre tabuada ou os rios de Portugal...
Um dia, a faca do mato de lâmina afiada, emparelhando com objectos detonantes que não se destinavam às lutas do faz-de-conta, transportava-me para uma realidade abjecta e da qual eu participava activamente, calculando, milimetricamente, a colocação mais adequada do engenho para potenciar a sua eficácia destruidora ….
E ali estava eu, confrontado com o mata-ou-safa-te, não discernindo capazmente entre o Bem e o Mal, o Dever e o não-Dever, entre o conceito de Humanidade e o de não-Humanidade que uma guerra gera ….
E eis-me estupidamente no meio dum mato, a colocar minas estrategicamente pensadas, de acordo com sofisticadas tácticas de destruição, separadas a distância rigorosa umas das outras, numa densidade de penetração no terreno tal que não permitia a veleidade de alguém atravessar aquela zona sem accionar, pelo menos, uma delas...
E eis-me a esboçar um sorriso cada vez que concluía a montagem de mais uma, num claro sinal dos efeitos da guerra na integridade intelectual e psicológica dum menino de 22 anos obrigado a ser homem rapidamente, custasse o que custasse !
- PUM !
- Ah foda-se ! O que foi isto ?
O coração saía pela boca tal a pulsação perante o inesperado rebentamento.
- O que foi, porra ?
Desta vez o caso não foi grave. Tinha sido um macaco que acionara a mina e ficou espalmado no terreno.
Porém, a extrapolação do espectáculo para um cenário cujos protagonistas fossemos nós, criou reacções de grande constrangimento e os efeitos psicológicos não tardaram a aparecer.
O homem é um animal de hábitos e cai frequentemente no erro das rotinas.
Havia que lutar contra esse inimigo o que não era fácil pois a minha situação (como a de todos os outros, diga-se) ao estar envolvido com as “mãos na massa”, não me permitia controlar o pelotão que, entretanto, fazia a segurança.
Essa tarefa era passada para os outros graduados do grupo mas ficava-nos sempre o aperto no peito ao imaginar que as tais regras básicas de segurança pudessem ser alijeiradas .
O dia acabava para aquela equipa passadas que estivessem cerca de 3 ou 4 horas ou se, por outro lado, houvesse um acidente.
Nessa altura seríamos imediatamente recolhidos para tentarmos lavar as más imagens.
É, pois, fácil de imaginar a alteração do estado de estabilidade emocional de cada um. A cada passo, e para não baixarmos a guarda, dava-se mais um acidente e mais um e mais outro...
Tenho para mim que foi a prova mais difícil em toda a minha vida onde tive que dinamizar um grupo de pessoas na concentração num objectivo (regresso à Metrópole ) e, simultaneamente, tê-las despertas para um perigo eminente mas que podia ser avaliado e minorado.
Nessa grande aventura tive sempre a companhia do nosso camarada Luís Faria e com ele protagonizámos uma cena que tem tanto de dramático e aterrador como de patético.
A situação passa-se aquando da desmontagem desse famigerado campo de minas.
Fácil será de compreender que havia factores que tornavam a operação responsável por elevadíssimos níveis de stress e entre eles estava o fim da comissão à vista e o facto de as minas não estarem todas nos sítios onde tinham sido colocadas (chuvadas e animais ocasionaram a deslocação de muitos dos engenhos) e, finalmente, uma catadupa de acidentes que aconteceram nessa altura.
É nesse ambiente que eu e o Luís Faria nos propusemos neutralizar uma determinada mina. Fruto do tempo passado desde a sua instalação até esse dia, a vegetação cresceu à sua volta bem assim como um bagabaga.
Aquela mina estava complicada mas por razões que agora não recordo, não optámos pelo rebentamento puro e simples.
Com a coragem que os 20 anos fazem confundir com irresponsabilidade, começámos a tornear o terreno circundante com o auxílio das facas de mato.
Pé-ante-pé, ou melhor, mão-ante-mão, estávamos a conseguir o objectivo definido –levantá-la com a prévia neutralização.
A cena não foi cronometrada mas hoje arrisco que podem muito bem ter sido uns 20 minutos de tensão ao máximo e com os nervos à beira dum colapso.
Nisto, entrámos numa dimensão etérea... O suor escorria pela cara como se uma torneira se tivesse aberto...
A noção que tenho foi de que entabulámos uma conversa de mortos onde nos questionávamos o que tinha corrido mal para termos morrido...
A escassos dois palmos das nossas caras, nós accionámos a puta da mina !
Reconheço a incapacidade de traduzir por palavras as emoções, os desesperos, as aflições por que passámos naquele momento enquanto não nos apercebemos que aquela mina, AQUELA E NÃO OUTRA ! tinha apodrecido e, embora accionada, não rebentou !
A ter acontecido, e tratando-se da mina que se tratava, julgo que seria difícil a um qualquer instituto de medicina legal recompor o puzzle e dizer quem era quem.
Julgo que esta cena não foi do conhecimento geral e, após fumarmos meia dúzia de cigarros seguidos, respirámos fundo e continuámos, alarvemente, a levantar minas...
António
_______
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 1 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3390 Tabanca Grande (95): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2790, Bula (1970/72)
(**) Vd. poste de 6 de Maio de 2009 >Guiné 63/74 - P4288: Espelho meu, diz-me quem sou eu (1): Joaquim Mexia Alves
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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13 comentários:
Não ganhaste para o susto. Se bem te lembras da nossa linguagem de programadores na IBM, estiveste à beira de um "dump". Também tenho alguns episódios interessantes que contarei na devida altura cronológica de eventos referentes à C. Caç. 2402. Sabes que eu, tambem com especialidade de Minas e Armadilhas, acho que a maioria das acções tomadas que se confundiram com loucura ou inconsciencia, mais não eram que a única alternativa que tivémos para não sermos catalogados por quem nos observava de medrosos, incompetentes ou algo pior ainda. De pouco serviria alegarmos que estávamos a proceder conforme as regras que aprendemos de darmos prioridade à segurança. Senti que em cada reacção minha ou decisão sobre situações perigosas com minas ou armadilhas, estava silenciosamente a ser julgado pelos camaradas, pela especialidade que tinha, e isso não me deixava grande alternativa sobre a acção a tomar, mesmo que a considerasse inconsciente. Creio que compreendes auilo que senti, se é que não sentiste também algo parecido. Um abraço,
Raul Albino
Oh António: Assim não vale porra. Estava a ler e gozando as letras e as palavras...quase lá e de repente...pum rebenta a mina e acaba o texto...porra e a continuação?
Ká espero pela dita...1 abraço Torcato
Olá Torcato, é sempre um prazer "ouvir-te" !
Mas olha, eu sou um homem do norte e sigo um lema literário pelo qual um bom palavrão, na altura certa, não deve ser contido.
Que me desculpem os ouvidos mais sensíveis ( também tento recriar a linguagem militar ) mas deu-me vontade de brejeirar perante a tua pergunta de " ...porra, então e a continuação ? "
Só te posso dizer ( como aliás frisei no texto ) que depois, veio um macaco e ... fodeu-se !
Um grande abraço
António matos
Já me tinha apercebido, pelos escritos vossos, que tu e o Luís Faria deviam formar uma boa dupla de "nervos de aço". Não só a montar (nada de duplo sentido) as minas, mas depois a "alevantar" todo aquele "contentor" sabia-se lá em que condiçóes de manutenção e localização, foi Obra de Mestre. Quem havia de dizer, olhando para aquele teu ar travesso, de menino franzino, mas já de sorriso brejeiro, que se escondia ali não uma criança de 20 anos, mas um Homem de nervos de aço?
Abraços
Jorge Picado
É isso António!
Muito bem descrito!
E às vezes os defeitos do material ou a sua deterioração até davam jeito!
Parabéns pelo texto!
Continua!
Juvenal Candeias
Meu Caro Antº Matos:
Eu queria mais texto. Ou seja ,eu queria que escrevesses mais. Gosto de ler porra e, certas histórias, dão-me um prazer acrescido.
Não sou do norte mas o vernáculo, o palavrão em nada me incomoda porque, sendo do sul, falo como um "carroceiro" se me atentam os "cornos"- como por lá se diz. Além disso somos um País tão pequeno que norte, centro ou sul...mas dá-me um prazer especial andar pela planicie ou pela beira mar do sudoeste ou do algarve...gostos...vim de lá há dois ou três dias...conheço o rectângulo (excepto "a corda" Chaves/Bragança) somos diferentes???nha...iguais.Somos nós e gosto de ser português. Abraços Torcato
O texto de António Garcia de Matos, Alf Mil CCAÇ 2790 trouxe-me à memória as peripécias que o meu tio deve ter tido aquando da sua comissão na Guiné “o tal que montava, desmontava, cavilhava, descavilhava”
Infelizmente o meu tio perdeu o “jogo” das minas e armadilhas, porque nesse “jogo “do montar, desmontar, cavilhar e descavilhar, as formigas decidiram participar nele… e com isso não poderei ouvir histórias como esta
Texto emblemático sobre a frieza e coragem de quem tinha a especialidade de minas e armadilhas, e ficou-me na retina a frase "O homem é um animal de hábitos e cai frequentemente no erro das rotinas."
Bem-haja António Matos
Amigo Nelson, quis-me parecer que não é um ex-combatente mas sim familiar de um deles e que retem na memória as histórias que lhe ouvia contar.
Por isso, e até confirmação em contrário, trato-o, não por tu, mas com a parcimónia usual nas relações humanas entre desconhecidos.
Concluí que o seu tio, ao "perder o jogo" com aqueles objectos, teria falecido, foi ?
Fui assaltado pela dúvida metódica ( Descartes que me perdoe )por não conseguir juntar as peças ...
Ele morreu com as minas ?
Ficou ferido ?
Nelson, dê-nos a sua visão desta realidade da qual tem conhecimento por interposta pessoa, uma vez que, admito, seja de uma geração pós-guerra e essas opiniões serão bem vindas para nos esclarecer quanto à mensagem que temos conseguido passar ao longo dos anos.
Interessa-lhe o tema da guerra do ultramar ?
Que opinião formou já sobre o assunto ?
De que maneira lhe marcou a vida ?
Quantos familiares seus por lá passaram ? E onde ?
Enfim, caso a minha primeira assumpção esteja certa, o seu depoimento será um contributo valioso para este blog e para a história que se está a fazer.
Obrigado
António Matos
Caro António Matos
Para mim a parte final não é tanto um "foda-se", mas mais um, "UFA!!!"
É pá, fizeste-me viver um momento único que passei na Guiné quando, logo no inicio da comissão, junto ao Xitole me passou pela cabeça levantar uma mina do "outro lado".
Dizem que foi rápido, mas a mim pareceram-me horas...
Quando hoje me lembro acho que ainda me tremem as mãos!
Abraço camarigo
Oh Matos
A cabrona dessa portuguesa cúbica de pregos fez-me(nos)sair o sangue da cabeça e do corpo pelas unhas dos pés ,num ápice.
Nunca na vida me poderei esquecer do som (clic) do percutor a armar e ficar preso.Que milésimos de segundo,caramba!!! e que UFA (como diz o Mexia Alves) depois !!...daaasssee !!!
E com este teu optimo escrito,fizeste-me recordar duas situações tambem "mineiras"que posteriormente talvez relate
Abraço
Luis Faria
Caro António Matos,
Sou da geração pós guerra, e tive um tio que faleceu ao manusear uma mina, em 24 Fevereiro de 1968 na Guiné, ele era Alferes Miliciano com a especialidade minas e armadilhas, e criei um blogue em sua homenagem, onde descrevo a sua passagem na guerra, com o titulo as verdades do sobreirito, http://sobreirito.blogspot.com/.
Verdades porque existiram muitas versões(verdades) sobre a morte do meu tio, e o sobreirito, porque era assim que o saudoso Zé Neto o tratava, e assim ficou, as verdades do sobreirito.
Respondendo às suas perguntas:
“Interessa-lhe o tema da guerra do ultramar ?
Que opinião formou já sobre o assunto ?
De que maneira lhe marcou a vida ?
Quantos familiares seus por lá passaram ? E onde ?”
O tema sobre a guerra interessa-me porque permite conhecer o meu tio, a minha gente, o meu Pais que nunca conheci. Nada dou e recebo muito….
Mas o que me marca a mim de uma geração que pertence ao pós guerra, é ter o privilégio de poder contactar seres humanos fantásticos como os senhores.
Não me esqueço que ao iniciar o meu blogue em 2007, pedi ajuda na descoberta das verdades do sobreirito, e o Sr. Luís Graça, abriu-me a porta e disponibilizou-me a informação, publicou um post e deu-me palavras de incentivo, foi a arte de bem RECEBER, confesso que pensei o oposto, pensei que as pessoas que lutaram na guerra, fossem pessoas corporativistas, egocêntricas…puro engano os senhores são amáveis, solidários, um património a homenagear.
Venho quase todos os dias espreitar o blogue, a vossa história, é minha história, e desde já agradeço o post do amável Carlos Vinhal, hoje publicado.
Um abraço amigo!
Nelson Sobreira Domingues
Só agora tive a oportunidade de actualizar a leitura e que encontro, mais uma história de guerra fabulosa, contada de uma forma que até parece não ter heróis.
Se tivessem morrido tinham levado medalhas, a título póstumo mas eram medalhados, como ficaram vivos foderam-se(não é meu hábito em termos de escrita a utilização destes termos, mas entre nós e como linguagem de caserna achei ser o termo certo). Espero que tenham pelo menos recebido um prémio monetário para a cerveja desse dia, ou só contavam as inimigas? Estas não matavam...
É pena que dessem só valor aos mortos esquecendo-se dos vivos, pelo menos enquanto o eram/são.
Um abraço também para o parceiro de odisseia Luis Faria que igualmente me encanta com a sua forma de narrar os acontecimentos.
BSardinha
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