quarta-feira, 17 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4543: Fauna & Flora (25): Cobras & Bichas (Manuel Maia)

1. Mensagem de Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74, com data de 12 de Junho de 2009:

Assunto: Fauna & Flora - Cobras & Bichas...

Caro Vinhal,

Vivia o período do merecido descanso no pós-Cantanhez, ali para os lados de N`hacra (radio emissora), mais própriamente em Fatim, destacamento do Dugal, sede da Companhia à beirinha da estrada que ligava Bissau a Mansoa.

O Dugal tinha a fama, e já agora o proveito para quem lá estava, óbviamente, de possuir uma cozinha de eleição, uma vez que os segredos culinários eram passados de Companhia para Companhia...

Assim, por exemplo, o camarão à indiana e o arroz xáu-xáu ou as bocas de um caranguejo azul, (pinças enormes que mais pareciam de sapateira ou até lagosta...) entre outros, eram pratos que faziam as delícias de quem tinha a felicidade de ser convidado da Companhia, e nessa altura, na messse, o pessoal aproveitava para tirar a barriga de misérias, procurando esquecer a fome que te parto do Cantanhez...

Mas este vosso camarada, o Fur Mil Moura, o Fur Mil Brito e o Alf Mil Dias, desterrados que estavam, a dezassete longos quilómetros de picada sinuosa e esburacada, apenas duas vezes puderam sentir-se filhos de um deus maior, ao sentirem primeiro o requintado convite e depois a passadeira vermelha da entrada que nos conduziria ao espaço de deleite onde os restantes furriéis, sargentos, demais alferes e capitão serviam de anfitriões aos tais
homens de ombreiras pejadas de dourados, cofiando bigodes uns, e esforçando-se por apresentar um ar inteligente outros, olhando-nos sempre, sempre do alto das dragonas...

Que felicidade, nós ali, convivendo com os deuses do Olimpo, não num tu cá, tu lá... que isso seria abusação, como diria o brasileiro, mas perto deles, respirando o mesmo ar, porventura absorvendo resquícios das suas auras, de estrategas conceituados, muito dados ao alfinete e ao mapa, aos soldadinhos de chumbo e demais artefactos das projecções das suas guerras...

Cirandavam de copo na mão que pousavam na bandeja do diligente soldado, vestido a rigor, sempre que pretendiam debitar conhecimento.

Olhavam em redor depois do esforço da explicação à espera dum simples menear de cabeça concordante ou de embasbacado e arregalado olhar que terminaria num coçar de nuca imbecil, de quem não conseguira apreender a sua sagacidade, a sua capacidade de raciocinio, e o brilhantismo da sua exposição, só ao nível dos eleitos, de semi-deuses, por manifesta estreiteza de vistas, leigos que éramos no que concerne aos altos estudos militares, onde as guerras eram traçadas com o rigor do esquadro e a precisão do compasso...

Noblesse oblige, saíramos lá do acanhado e bafiento tugúrio onde havíamos sido colocados no pós guerra, levando vestida a nossa roupinha melhor com a camisa verde e os calções regulamentares, divisas de bico p´ra baixo apostas, olhando-nos mutuamente a ver se parecíamos bem, o alferes ele também no seu melhor.
A barba aparada, os cabelos apresentáveis, lá fôramos, e valera a pena.

Evidentemente que ninguém gosta de pontapés no sítio onde as costas mudam de nome, uma vez bem tratados, fomos vivendo espreitando outra oportunidade que não surgia...

Assim, solicitei a um telegrafista, uma apitadela quando tivesse conhecimento da eminente chegada desses cabos de guerra, para, fazendo-nos de convidados, podermos beber aqueles conhecimentos (evidentemente que não enjeitávamos o Casal Garcia gelado da ordem, e hoje, visto a esta distância creio bem que era mesmo o leit motiv da nossa pretensão de secundar aquela visão do etéreo a que subíramos...)

O chefe, almadense de gema, vinha já dos tempos de Bissum, e sem pretender fazer qualquer analogia com o barbeiro do Porto que passou a cabeleireiro e hoje se auto intitula escultor capilar, nem mais, era o que poderíamos chamar de construtor de sabores...

Constava aqui e ali, da existência de uma relação assolapada entre este mestre cuca e o Teixeira, um lingrinhas educado na tutoria do Porto, e a saber mais que o Papa...

Mas voltemos às questões exclusivamente culinárias...

Um dia, soubemos via rádio da eminente visita de uns três de dragonas largas acompanhados de um alferes, guarda de campo de um deles, assim estão a ver a modos que um AB, (segundo a senhora Allen, pelo que li aqui no blog, que afirma ser usual ouvir-se então em Bissau a piada em que a monocular figura dizia para o ajudante de campo: - Bruno toma nota...)

Pois seriam quatro as visitas importantes à sede.
É o momento aprazado para nos fazermos convidados, sugeri ao alferes que de imediato concordou.

Vamos todos? Alvitrei...

- Não tem de ficar um, senão o Capitão zanga-se, dissera o Dias.

Tiradas as sortes, o azarado foi o Brito...

Nessa conformidade preparámo-nos eu, o Moura e o Dias para aparecer, de surpresa, pouco antes da hora de almoço que aí... ficávamos pela certa.

Entretanto, os soldados Valadas e Cardoso (Baião) saíram para a caça...

Davam cabo das estrias das G3 disparando cartuchos aos quais tiravam as balas e colocavam anilhas de chumbo (dos reordenamentos usadas para prender as chapas de zinco...).

Tinham um stock grande ainda do tempo de Cafine...

O chumbo espalhava-se e as hipóteses de abater umas rolas ou outras aves pequenas para além dum nhec ou leitão da tabanca, eram significativas.

Saíra entretanto o Unimog para trazer o almoço para o destacamento.

Tão depressa tinham saído pela tabanca como regressavam aos altos berros.
O Valadas lamentáva-se com a mão a tapar um dos olhos a dizer:

- Ai Jesus que estou cego, ai Jesus que estou cego!!!

O Cardoso, esse repetia:

- Fugiu-me a p...

Atirei-lhe quatro ou cinco tiros e fugiu-me a p... P... de merda!!! Fugiu-me a p... de merda!

Imediatamente o alferes disponibilizou o jeep que nos haveria de levar ao Dugal para nos abancarmos à mesa, por forma a levar o Valadas, o cabo enfermeiro que litarelmente não sabia o que fazer, e um condutor até ao Dugal para ser visto pelo Antunes, furriel enfermeiro.

Lá se foi o nosso almoço, Dias, lá se foi o nosso Xáu-Xáu, disse o Moura...

Ficáramos sem transporte que nos permitisse chegar a tempo, na qualidade de penetras na almoçarada do Dugal...

O Valadas que era de Aveiro e adepto do Beira-Mar, ficou à Belenenses, sendo obrigado a andar com uma camoneana pala no olho...

Durou quase um mês...

Grande pontaria da cobra que com uma cuspidela, prejudicou a vítima, Valadas, e os três cristãos entre os quais este vosso escriba, de aspirarem a uma almoçarada daquelas...

Nós perdemos de vez a hipótese de comer as iguarias do chef almadense pois pouco depois cairia em desgraça perante o capitão que recebeu a confirmação das suspeitas sendo informado que ele servia cerveja gelada ao Teixeira, tirada dos frigoríficos da messe numa altura em que uma das arcas da cantina estava avariada e como a outra era aberta muitas vezes não permitia refrescar as bebidas...

De castigo foi enviado para o meu destacamento.

Já não chegava ter uma cobra na tabanca, agora presentearam-nos com uma bicha, disse o Dias...

Um abraço ao Vinhal extensivo a toda a tabanca.
Manuel Maia
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4519: Estórias avulsas (34): Desertei depois de ter vindo da Guiné (Manuel Maia)

Vd. último poste da série de 14 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4524: Fauna & flora (24): Companhia indesejável no meu bura… ko morreu, sem apelo nem agravo, no Cachil (José Colaço)

2 comentários:

Anónimo disse...

Manuel Maia
Mais uma bela história como só tu sabes transmitir e sempre com as alfinetadas, a propósito, ao AB que era o "aponta B...." e não o "Toma nota B....".
Ficaram com a bicha, mas também com bons menus, ou não?
Abraço
Jorge Picado.

JD disse...

Camarada Manel,
Eis-nos perante mais um brinde da tua fresca memória, um pedaço de escrita que se esgota subitamente, de tanta qualidade e ironia. És mestre a conjugar o humor com a litaratura, quer em verso, quer em prosa.
Descreves os cenários e dás-lhes vida, com riqueza de pormenores e atributos da cultura.
E cimentaste esse personagem bizarro, o AB, para gaúdio do maralhal, que já o imagina por tudo quanto é sítio. E ainda bem, para que ninguém se esqueça.
Com a devida vénia, aí vai um abraço
J.Dinis