sábado, 28 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5368: As Nossas Mães (5): Mãe, eu estou aqui (José Teixeira)

1. Mensagem de José Teixeira*, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, com data de 26 de Novembro de 2009:

Caros editores
Junto mais um trabalho para vocês.

Abraço fraterno para todos.
José Teixeira


MÃE, TEU FILHO ESTÁ AQUI

Ao ler no blogue o grito da mãe do 1.º Cabo Telo na chegada dos seus restos mortais à sua terra natal, fui ao baú do “meu diário“ buscar o que escrevi uns dias depois de chegar a Ingoré sobre a viagem para a Guiné, que me levaria até esta tabanca por uns meses.

A minha mãe no dia em que fez 88 anos.

Foto: © José Teixeira (2009). Direitos reservados.


…Manhã cedo os motores puseram-na de novo em marcha, Cacheu acima.

Os raios solares, afiados estiletes misto de prata e ouro, penetram na minha cabeça rapada, provocando um sobreaquecimento doloroso e entorpecente. Tento reagir positivamente deixando-me transportar para a minha terra natal, mas assalta-me a saudade. Nas silhuetas dos camaradas, também eles absortos, com ar assustado, a mirar as margens, vejo a minha mãe, lacrimejante, tentando esconder as lágrimas num sorriso de esperança. Ouço as suas últimas palavras:

- Vai com Deus. Que te acompanhe sempre e te proteja. A tua vida vai dar muitas voltas, mas tu vais voltar. É tua mãe que o diz. Acredita.

Ah, como eu queria ter, a sua certeza de mãe, que desta maneira me quis transmitir força e coragem, as forças que me faltavam e ainda me faltam agora ao encarar um futuro do qual não tenho a mais pequena ideia de como vai ser.

Tantas eram as dúvidas que me assaltavam naquele momento.

Recordei os seus pedidos especiais. Disse-me no último abraço como que em segredo, daqueles que não se podem dizer, mas se devem viver.

- Duas coisas, te peço. Apenas duas: Primeiro, mesmo que a vida te transporte para caminhos tortuosos, mesmo que sintas a Fé a fugir-te, mesmo que não sintas a presença de Deus em ti, nunca deixes de rezar, nunca deixes de pelo menos uma vez por dia parares um pouco para O deixares entrar.

Rezar nunca fez mal a ninguém, dissera-me ela muitas vezes.

- Pode ser uma âncora a que te poderás agarrar nos momentos difíceis.

- Segundo pedido. Tenta viver sem teres de matar. Vais para uma guerra numa terra desconhecida. De usos e costumes possivelmente estranhos. Não faço ideia do que será uma guerra, mas sei que na guerra se vive e se morre. Tenta voltar de modo a que a consciência não te perturbe no resto da tua vida. Vão ser dezoito longos meses de espera, mas a minha fé diz-me que voltarás são e salvo.

Os dois grandes pedidos que a minha mãe me fez, estão gravados a letra de ouro no meu coração e na minha mente. Por educação, quase desde o berço, em que o hábito de se rezar o Terço antes de deitar é uma cerimónia sagrada, seguida de um pedido de bênção aos avós e pais, a oração diária, por mais pequenina que fosse, era para mim um princípio, posto de lado quando aos dez anos abandonei a terra natal para ir trabalhar. Aliado à oração, está o conceito de que matar um ser humano é um pecado grave, conceito esse enriquecido em cada dia, nos caminhos que procurei trilhar e por último, pelo facto de por sorte minha, ter sido escolhido para enfermeiro militar.

- Que Deus te acompanhe, meu filho e sempre te proteja. Disse-me ela pondo fim à nossa conversa.

Virou as costas e foi esconder-se no seu quarto, talvez para deixar as lágrimas correrem à vontade, enquanto eu saía porta fora, abraçado no meu irmão mais novo. Acompanhou-me ao comboio a namorada e lá segui a caminho de Abrantes. Dois dias depois parti rumo à Guiné. Tinha conseguido demover a família a não ir despedir-se de mim a Lisboa e não dizer à minha mãe a data da partida.

O coração de mãe adivinhou e eu não pude escapar a este cena que, passados tantos anos, revivo.

Que sábia é a minha mãe, analfabeta!
Felizmente, eu posso gritar, passados quarenta e um anos:

- Mãe, eu estou aqui!

Zé Teixeira
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5333: As nossas mulheres (10): Poema dedicado às mães de todos os que não voltaram (José Teixeira)

Vd. último poste da série de 28 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5363: As nossas mulheres (11): Voltaste-nos as costas, nem uma lágrima choraste (Joaquim Mexia Alves)

2 comentários:

Anónimo disse...

Vasco A.R.da Gama disse...

Camarada Zé Teixeira, seguidor habitual dos teus lindos escritos, eis-me a colocar um comentário para te agradecer o belo poema com que fizeste o favor de enriquecer o meu texto de ontem, ao mesmo tempo que acrescentaria uma pequena frase ao teu post de hoje:
Que analfabetos nós somos ao lado da sabedoria das nossas mães...
Um abraço sentido e amigo do,
Vasco

Hélder Valério disse...

Caro Zé Teixeira

Sábios conselhos te foram dados pela tua Mãe!
E, pelos vistos, os votos subjacentes aos conselhos foram cumpridos. Foste e voltaste. E não tiveste que matar...
E ainda ganhaste créditos 'entre gente remota' que te adora e não te esquece, como tivemos oportunidade de tomar conhecimento.
Um abraço
Hélder S.