segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7044: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (4): Olhar fatal

1. Mensagem José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 23 de Setembro de 2010:

Caros Camaradas
Para inserir na série "Outras memórias da minha guerra", junto a história
"Olhar Fatal".

Com um abraço do
Silva da Cart 1689



Outras memórias da minha guerra (4)

Olhar fatal

Foi na tarde do dia 10 de Junho de 1967, a norte de Banjara, na região do OIO, uma das zonas da Guiné mais controladas pelo o PAIGC. Ainda mal recompostos do baptismo de fogo, do qual se extraiu a maior lição de todos os ensinamentos militares, estávamos em progressão lenta e muito cuidada mais para norte, rumo ao objectivo definido, com nome operacional “Inquietar”.

Mesmo serpenteando, não chegámos a andar 1 quilómetro sem novo combate. O IN já nos esperava em Cambaju e tentou travar-nos com forte tiroteio. Felizmente, a nossa Cart 1689 havia feito uma curva para a direita, o que nos proporcionou uma boa frente de fogo contra o IN, que nos atacou do lado esquerdo. Desta forma, grande parte da nossa Companhia podia fazer fogo.

De repente, avistaram-se, a uns 40 metros de distância, entrecortados pelos pequenos arbustos, vários indivíduos a correr da direita para a esquerda, fugindo do núcleo mais intenso de fogo. Foi nesse momento que surgiu a oportunidade para os 3.º e 4.º Pelotões (por ordem de posição na coluna) participarem melhor no combate.

O Furriel Simões, que era um militar bem preparado, não disparava de rajada. Tinha um controlo eficiente sobre os disparos, por forma a rentabilizar bem as munições. Deitado, com o cotovelo esquerdo bem apoiado, apontava a arma para onde desejava. Viu uma cabeça que subia e descia repentinamente e repetidas vezes. Prontamente disparou com precisão. Talvez, porque coincidia o disparo com o movimento de descer da cabeça, o Simões não acertou à primeira nem à segunda. Pensou que, segundo o que havia aprendido sobre a trajectória da bala, esta tem tendência a subir em relação ao alvo apontado. O tempo passava, o fogo continuava e a máxima da guerra “quem não mata, morre” era uma pressão permanente. Então, respirou fundo, fez de novo pontaria e calculou o disparo um pouco mais para baixo. Pareceu ter sido bem sucedido.

Acabado o tiroteio, avançámos para ver os possíveis “troféus” e o Simões foi directamente para o local onde estava o indivíduo que o obrigara a tanta pontaria. Ao ver que, afinal, era uma cara feminina de traços finos e já idosa, fitou o seu olhar fixo e acusador, que já o esperava. Ainda mexia os lábios, mas o buraco da bala, no pescoço e o sangue que dele saia não lhe permitiam transmitir aquilo que seria a sua última mensagem. No entanto, o Simões ficou convencido de ter ouvido dizer:

- A mim pude ser mãe di bo.

Chocado, entrou em choro convulso, acompanhado de repetidos lamentos, ao mesmo tempo que interrogava:

- É para isto, que aqui estamos? – Foi para isto que nos prepararam? - É isto defender a Pátria?

E concluía:

- Ai querida mãe, que sou um assassino... um assassino de inocentes!

O Capitão, que esteve sempre próximo e acompanhara a cena, foi o primeiro a agarrar e a confortar o Simões.

Hoje, o Simões, numa apreciação simples ao mundo que nos rodeia, está convicto de que a guerra é o maior absurdo dos humanos; porque não tem lógica, não tem lei nem tem justificação. O mundo dos homens deveria ser um exemplo permanente para todos os seres vivos da Terra, porque está cheio de gente boa, sábia e poderosa capaz de o fazer. Porém, desgraçadamente, anda à mercê de uns tantos Chico-espertos sem escrúpulos, cujo comportamento abusivo se manifesta pela prática das maiores crueldades. E é na guerra que se sente mais a ausência da justiça e a confirmação evidente de que também não há justiça divina.

Sempre que reunimos no encontro anual da nossa Companhia (e não só), falamos das memórias boas e rimo-nos de muitas delas, sobrevalorizamos essa alegria a todas as outras memórias (as que lutamos para esquecer). Então, ninguém fala destas coisas tristes. Todavia, volvidos a casa, regressam as malditas imagens que nos atormentam, desde o sofrimento físico e moral extremo até à morte injusta dos nossos amigos e de outros, que não eram inimigos.

E sempre que o Simões acorda ou desperta de algum período mais descontraído, lá vem aquela imagem da senhora de traços finos, olhos cor de avelã, de pele escura e macia, com o olhar fixo e acusador :

- A mim pude ser mãe di bo.

Neste momento, ele quer adormecer. Já percorreu os canais de TV a fugir das muitas más notícias, já se inteirou das poucas que são boas, mas continua a ver aquela mulher no mesmo local, na mesma posição e com o mesmo olhar fixo que o tem perseguido. Passaram 43 anos, 3 meses e 13 dias.

Silva da Cart 1689
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7004: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (3): A grande lição do baptismo de fogo

5 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Ferreira da Silva

Impressionante este relato!

Impressionante mente bem descrito, de forma a valorizar o acontecimento e a fazê-lo sentir, por quem o ler.
Não tinha dúvidas de que os sentimentos dos jovens, que participaram naquele conflito, seriam esses, embora se mate para não morrer.
Obrigada pela sua descrição.
Continuem a juntar-se revivendo os bons momentos, embora fingindo, esquecer os maus.

Cordiais saudações da

Felismina Costa

Hélder Valério disse...

Caro camarada Ferreira da Silva

Revelaste uma história rica de sentimentos, plena e intensa.

Na verdade, excepto para os que fizeram das suas acções 'guerreiras' a sublimação dos seus sentimentos, para o jovem 'comum' o contacto com a morte foi sempre traumático, até porque nessa época, apesar de tudo, os valores da honra e da 'defesa do mais fraco' tinham uma enorme força formadora.

Deixáste aqui um bom assunto para reflexão, ao mesmo tempo que prestas uma homenagem ao antigo militar e ainda hoje atormentado nos seus sonos...

Um abraço
Hélder S.

Tiago Duarte disse...

Ao ler este artigo dei por mim a viajar no tempo e no espaço, como se fosse um espectador passivo mas atento destes acontecimentos. Penso que a realidade e o drama dos factos vem trazer um toque de especial emoção e mesmo uma certa moralidade a tirar de toda a situação.
Até parece uma cena de um filme de guerra americano, sim porque é o contacto mais próximo que eu alguma vez tive (felizmente) com a guerra.

Tiago

Anónimo disse...

Camarigos
Também estou na mesma situação do camarada referenciado.
Faz 39 anos no dia 6/11, que o meu GC sofreu uma emboscada na Estrada Pitche-N.Lamego, que na altura ainda andava a ser alcatroada. A missão do meu GC era assegurar a segurança aos trabalhos da TECNIL. Pois às 5,50 h fomos emboscados com forte e violento fogachal. A seguir aos 6 elementos das milícias que iam a picar, eu era o primeiro branco à frente do GC, caímos na "zona de morte", levámos com um fogo intenso, e o IN veio à estrada ao confronto físico. Abati um guerrilheiro com 3 tiros. Pelas inscrições na bainha da faca de mato (que era portuguesa das nossas FA), sei o nome,(era o Chefe do bigrupo, segundo vim a saber mais tarde), o seu nº dentro do PAIGC e ainda a frase "Liberdade a Lutar". Fiquei-lhe com a faca, o ronco e o carregador da Kalash (a arma o IN levou-a).Desde esse dia não consigo coabitar com a ideia de ter feito viúva(s) e orfãos. Quando regressei fui falar com o Prior da minha Paróquia (eu era catequista), que me disse que a guerra era assim e não podia estar com estes problemas.
A verdade Camarigos é que eu não consigo esquecer...e vai-me perseguir até à morte...
Abraço
Luís Borrega

Unknown disse...

Olha, Simões, e tu também, José, e todos os que por similares situações passaram, não tirando uma virgula de que toda a guerra é incoerente, porque sempre fruto de cobiças e orgulhos. Todavia, se quisermos analisar estas questões da guerra e o empenhamento pessoal disponível por cada um, haveremos de constatar que, uma vez postos nessa situação, os que se amam só a si mesmos, só por si mesmos são capazes de se sacrificar até ao limite. Muitos são e sempre foram estes. Os que estendem o seu amor até à família, depois amigos e grupos, estes têm dilatado um pouco mais o seu espírito de sacrifício. Os que amam uma família Pátria, unidos unicamente por laços de história, civilização e valores, esses já são cada vez mais raros.São os generosos e heróis, tal como todos aqueles que foram mobilizados e não fugiram (Já nem se fala nos traidores.Quanto à razão que leva cada um a tomar posições, depende dos valores pelos quais a sua comum Pátria considera dever bater-se, o que no nosso caso, creio, lhe dava alguma legitimidade porquanto nos encontrávamos completamente em paz. Deste modo, embora sempre incoerente no que respeita aos sublimes e fraternais valores humanos, todavia ela poderá, em função das suas razões, considerar-se relativamente justa. É isto que, num contexto humano alterado, a poderá tornar mais legítima. Assim também, após um combate, se a posição do vencedor passar de bélica a respeitosa e misericordiosa, como fazia o nosso D. Nuno em relação aos nossos vencidos inimigos de então, aqui existe um sentimento humano que, mau grado a situação, consegue repôr alguma relativa humanidade perdida. No teu caso, Simões, como em outros, infelizmente, isso foi o que aconteceu, embora agudizado por uma situação em que uma senhora de idade se encontrava no lado do inimigo. Aliás coisa não rara nesse tipo canalha e desleal de guerra, como é tão comum hoje acontecer, e o médio oriente é um exemplo patente disso(Em Angola chegaram a fazer emboscadas com crianças para nos apanharem desprevenidos no nosso sentimento espontâneo e descuidado de carinho paternal). Claro, Simões, que lutar pela Pátria não tinha tal por objectivo, mas é situação inerente a este tipo de guerras modernas, subtilmente desleais, traiçoeiras, selvagens, e inumanas. Não o fizeste intencionalmente e é isso que valoriza a tua alma como humana. Por isso fica em paz porque o teu coração não está nisso, mas nos sentimentos de amor revelados pela tua humana consciência. Um grande abraço para ti e fica em paz. Não sei se és crente ou não, mas te aconselho a que, para que completamente a paz volte a ti,que vás a um sacerdote e te confesses. E, depois, reza, ou manda rezar, por essa alma que te pesa na consciência. Verás com te sentirás feliz e já sem esse peso. Que o Senhor te abençoe.