Olá Carlos, boa noite,
Ainda agora vivemos o Natal, e já deixo escapar a baba pelo canto da boca, só de pensar no magnífico almoço de aniversário que tive em Bajocunda. Envio-te uma presunção de relato desse evento, com liberdade para decidires sobre o destino a dar-lhe.
Anexo duas fotografias tiradas no Silva. Uma delas tem quatro personagens, a saber da esquerda para a direita: Zé Tito, Pedro Dinis e Marino. A outra é da frontaria.
Desejo-te, e ao Tabancal, que o ano de 2012 possa surpreender-nos pela positiva.
Abraços fraternos
JD
HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (45)
UM ANIVERSÁRIO NA GUINÉ
Decorria o mês de Dezembro do ano da graça de 1970. Os dias sucediam-se com o caracteristico calor húmido, o capim ainda alto, e as tarefas normalmente atribuídas ao Foxtrot, o Pelotão a que honrosamente pertenci, tudo numa rotina sobre a qual pairava o perigo e a impertinência militar que nos tolhia o apetite turístico. A população procurava abrigo nas sombras dos alpendres das três lojas de Bajocunda, onde também se exercita o múnus dos alfaiates. Situavam-se as lojas num cotovelo do que poderemos chamar a rua principal (resultando da fusão dos acessos que para sul se dirigiam ao Gabú, e na direcção oeste ligava a Pirada), que marginava a parada, e em frente à messe virava para a pista, na direcção de Copá, conservando nesse local algumas mangueiras de bom porte. A última loja do lado direito, era também a residência do casal Silva, que ali exercia a actividade comercial.
Aquela loja era a melhor apetrechada para as vertentes do comércio que ali se praticava. Nas traseiras, o Senhor Silva possuía um espaço de quintal, onde também provocavam frescas sombras duas ou três copas frondosas de outras árvores, e proporcionavam um ambiente ameno para três ou quatro mesas, onde se podia abancar. Era, por isso, um lugar apetecível para tomar uma cerveja, quiçá acompanhar a beberagem com um petisco. Na cozinha triunfava um cozinheiro africano que teria aprendido com arte a movimentar-se entre sertãs, tachos e panelas. O interior dividia-se entre a residência do casal e a loja, onde havia um colorido de produtos e materiais que se amontoavam, ou pareciam cair do tecto, e uma quantidade de gente falava e reclamava nos seus vagares sobre as virtudes dos artigos em venda, ou sobre o quotidiano da aldeia enquanto aguardavam atendimento.
Em Dezembro conjugaram-se os astros para que eu tivesse nascido no Monte Estoril, mesmo em frente à residência do Comandante Rosales. Para alegria dos meus pais, e do Sr. Salazar que, assim, passaria a contar com mais um jovem para as necessidades militares da nação. Essas necessidades já contavam quase vinte e dois anos, e o mancebo parecia dar-se bem em África, e andar com aquela estrelinha que lhe garantia a sorte nas voltas que a guerra impunha. Vinte e dois anos era uma linda idade, e estava mesmo a merecer uma celebração. Face às circunstâncias teria que pagar umas "piquininas" a quantos me surpreendessem naquele evento. Mas o que eu queria mesmo, era comer, banquetear-me com algum petisco de truz.
Havia, porém, uma possibilidade para frustração deste projecto: a normal actividade operacional que poderia obrigar-me a uma deslocação fora do arame, que não fosse uma coluna ao Gabú, um lugar onde era possível apreciar uma refeição diferente, como no restaurante que frequentava à saída para Sónaco/Pirada, onde costumava alambazar-me com um guisado de coelho (ou de gato, tendo em conta a insalubridade do clima e as dificuldades de distribuição logística, dedução coroada pelo facto de aquele ser o único restaurante a disponibilizar o petisco). Mas fui cauteloso, de tal modo me revelava determinado a comemorar a data, e com o capitão fiquei a saber que, naquele dia, o meu Pelotão não sairia do aquartelamento. Fantástico! Ora, nesses dias dedicava-me à preguiça, e só uma aparição do IN poderia perturbar o "dolce fare niente".
Na véspera do dia D, com a cautela e discrição que se exige para as mais importantes operações, fui falar ao Sr. Silva no sentido de garantir a minha bela refeição, uma auto-prenda com que congeminava regalar-me. Que sim, poderia contar com ele, e combinámos um galo de fricassé (que poderiam ser dois, se houvesse necessidade), especialidade de que o cozinheiro se safava com mérito. Imaginem só o requinte: um galo de capoeira, alimentado com os restos da cozinha, mais umas folhas e algum milho, com carne fibrosa... à antiga!
No entanto, ainda que fosse bastante glutão, a comemoração só o seria se devidamente testemunhada. Ora, o resto da furrielada estaria ausente de Bajocunda no desempenho das tarefas de que eu me sentia liberto. No entanto, os meus amigos e conterrâneos; o Zé Tito e o Pedro, o primeiro que engenheirava reordenamentos, e o segundo que assistia à lenta morte das viaturas e costumava apresentar-se com borrões de óleo no corpo e na roupa, esses estavam garantidamente na localidade. Que boa circunstância, poderíamos partilhar duas pernas, duas asas, dois peitos, e dois... perdão, não cabe aqui fazer referências aos finalmentes, e um vinhinho do Dão que naqueles trópicos nos fez sentir deuses.
E foi assim que festejei o meu aniversário, em data que não vale a pena precisar porque já passou (se bem me lembro), e não descortino leitores com vontade para me oferecerem prendas retardadas. Não tenho qualquer dúvida em referir aquela como a melhor e mais saborosa refeição que tive na Guiné, de tal modo que dela me recordo algumas vezes. E dou os parabéns ao cozinheiro, onde quer que ele esteja, porque fricassé daquele apuro não voltou a passar-me pela gorge.
Na foto, da esquerda para a direita: Zé Tito, Pedro, Dinis e Marino
Frontaria da casa do senhor Silva
____________Notas de CV:
(*) Vd. poste de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9259: Notas de leitura (315): De Campo em Campo, por Norberto Tavares de Carvalho (José Manuel Matos Dinis)
Vd. último poste da série de 11 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9026: História da CCAÇ 2679 (44): Uma coluna reforçada a Copá (José Manuel Matos Dinis)
1 comentário:
Caríssimo Zé Dinis
Nesse Dezembro do ano da graça de 1970 já eu estava em Piche, portanto dentro da tua 'zona de acção'. Não me lembro de nos termos cruzado mas pode ter acontecido.
Entretanto outros aspectos deste teu relato me chamaram a atenção. O teu aniversário é um deles. Ser em Dezembro já não era para mim qualquer mistério. Também já tinha 'descartado' a primeira quinzena. Mas, garanto-te, ainda vou descobrir o dia. Aliás, ainda não o fiz por manifesta falta de empenhamento mas já que lanças o desafio...
Agora a refeição. Com que então, galo! E dizes que foi a melhor refeição que já tiveste. Não me custa a acreditar que possas ter essa ideia. Passa-se isso muitas vezes. Em função das circunstâncias, mesmo uma coisa muito simples acaba por nos saber 'pela vida'.
Abraço, amigo
Hélder S.
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