quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12774: Estórias avulsas (75): Quando, em 18/12/1976, na fronteira de Valença, ia eu comprar à vizinha Espanha o bacalhau p'ro Natal e os caramelos da ordem, e me exigem a famigerada Licença Militar... Dois anos depois de eu passar à disponibilidade... (Henrique Cerqueira, ex-fur mil, 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74)



Licença militar, passada pelo comandante militar de Viana do Castelo, em 18 de dezembro de 1976, autorizando o fur mil Henrique Jorge Cerqueira da Silva, do RI 16, na situação de disponibilidade, a passar a fronteira, em Valença, "por espaço de tempo não superior a 10 dias"...


Imagem digitalizada: © Henrique Cerqueira (2014). Todos os direitos reservados.~~



Um "santo antoninho", uma nota de 20 escudos... Foi quanto custo o "passaporte militar", para o Henrique poder ir a Espanhar comprar bacalhau e caramelos para o seu Natal de 76...Na fronteira, em Valença, as autoridades do lado de cá não foram em cantigas: imaginem se ele fosse um perigoso desertor da guerra colonial..."Vais à Viana, trazes um papel da tropa, pagas lá um santantoninho e a gente deixa-te passar para ires comprar caramelos... Tens 10 dias para vadiar"... Era assim, não há muito tempo, em finais de 1976, já a guerra da Guiné tinha acabado há dois anos... Os "regimes" passam, a "burocracia" fica... (LG)

Fonte: Notas da República Portuguesa (com a devida vénia...).


 1. Menasagem do Henrique Cerqueira [ex-fur mil, 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74]:

Data: 25 de Fevereiro de 2014 às 19:45

Assunto: Licença Militar


Olá,  Camarada e amigo Luís Graça.

Andava eu numas arrumações de gavetas e porque não tinha nada mais que fazer (isto já começa a ser hábito),  encontrei este documento que achei muita graça para os tempos que correm.

Pois é,  estava eu em 1976,  já quase dois anos passados após a minha desmobilização e em plena disponibilidade . Ora, pensava eu que nessa altura, e para mais já em período pós-revolução,  que estava livre da tropa. Ou seja, eu já nem sequer pensava na tropa, quando próximo do Natal de 1976 e, como qualquer Português da altura, toca a pensar em ir comprar o Bacalhau a Espanha e claro fazer um passeio até á estranja.

Para minha surpresa,  quando ia todo lampeiro para atravessar a Fronteira em Valença, foi-me negada a passagem por falta de Licença Militar. Atenção,  que estou a falar do ano de 1976. É claro que eu é que fui um "nabo",  porque quando na fronteira me perguntaram se era ou fui militar eu poderia ter aldrabado. Mas não,  quando questionado,  eu todo orgulhoso disse que tinha servido a Pátria na Guiné e já tinha sido desmobilizado em 1974.

Vai daí as autoridades (Portuguesas) me disseram :
- Não senhor, não pode passar a fronteira sem a "Licença Militar" e nós sabemos lá se não é um desertor ou coisa parecida.

Ora,  eu aí comecei a ver a vidinha a andar para trás, é que tínhamos o farnel no carrito (era um Morris Mini, que saudades do meu primeiro carro!), com ideias de o comer em Espanha e depois então ir comprar o bacalhau e talvez uns caramelos para a família. 

Então um oficial aduaneiro,  ao ver o meu desgosto,  é que me disse:
- O senhor pode ir a Viana do Castelo, que é aqui bem perto, e arranja lá a Licença.

Bom, lá virámos as "roditas" do Mini e viemos a Viana,  ao comando militar da localidade, e lá me passaram a famosa Licença ,mas tive que pagar 20$00 (, era uma nota Santo António, parecendo que não,  ainda dava para comprar uns saquitos de caramelos e claro também para pagar a Licença).

E,  prontos,  munidos do precioso documento lá rumámos até á fronteira novamente, e para grande desgosto meu,  nem sequer quiseram ver o documento que atestava que eu nem era militar nem desertor. Mas pelo menos lá comprei o bacalhau e até os caramelos, mais uma garrafita de brandy que também era de bom tom comprar em Espanha.

Olha, camarada Luís, hoje achei piada a este documento que encontrei e como tal resolvi partilhar com a tertúlia. Se achares alguma piada,  publica, senão já sabes,  "arquiva".

Um abraço

Henrique Cerqueira

___________________

Nota do editor:

Último poste da série > 20 de fevereiro de  2014 > Guiné 63/74 - P12746: Estórias avulsas (74): Balas de raiva: uma emboscada que deixou marcas (José Saúde)

12 comentários:

Anónimo disse...

Caro Cerqueira,

Se tivesses mentido a respeito do teu serviço militar terias tido a mesma resposta. Não passavas a fronteira sem o devido documento.

Em 1973, quando emigrei para os EUA, não se obtinha a licença com essa facilidade e muito menos por esse preço.

Sem a caderneta militar ou a autorização directa da Repartição de Sargentos e Praças não conseguias o papelinho que, já agora, no meu caso era bem diferente desse que nos apresentas.

Cumprimentos,
José Câmara

Henrique Cerqueira disse...

Caro José Câmara.
Bom Dia.
Estás a falar no teu caso do ano de 1973 que ainda era na época das deserções e outras situações.
Agora vê bem que em 1976 era a época do "falecido tempo revolucionário".
Abraço.
Henrique Cerqueira

Luís Graça disse...

Henrique, os portugueses, a seguir ao 25 de abril, ganharam o gosto e o hábito de "ir ao estrangeiro"... E mais concretamente "dar o salto" (legal) até à vizinha Espanha... Foi uma lufada de ar fresco...

Mas a "burocracia" (de Estado) não morreu, em 25 de abril de 1974... Já não me recordo como era, quando eu ía ao estrangeiro... Sei que no final dos anos 70 e princípios de 1980, com o FMI cá em casa, havia muitas restrições cambiais...

Sei que nessa época, tínhamos que ir Banco de Portugal, com o passaporte, para se averbar (e autenticar com carimbo) o montante limitado de divisas que levávamos... Poça, ainda fiz umas férias estupendas, em finais de 1970 ou princípio de 1980, de 3 semanas no norte de Itália, de Fiat 127 (!), com um milhão de liras, por casal (. Éramos dois casais...). E não havia telemóvel!

E para teres passaporte precisavas do registo criminal e militar...
Mas no caso de Espanha já não me recordo desde quando foi abolida a exigência de passaporte para ir visitar os "nuestros hermanos"!...

Por outro lado, é bom não esquecer éramos, ainda em 1976, uma "democracia tutelada"... Havia a figura (e a presença) do Conselho da Revolução, criado em março de 1975, pelo MFA, figura essa só extinta em 1982...

A nossa memória é... curta!...

Já agora consulta aqui:

Conselho da Revolução. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014.

http://www.infopedia.pt/$conselho-da-revolucao

PS - A solução "ad hoc" que foi encontrada para o teu caso, é tipica dda cultura portuguesa do "desenrascanço" (que é uma forma, muita nossa, de contornmar os obstáculos)... Mas, com 10 dias de "soltura" por vinte mil réis, podias fugir para muito sítio, desde a América Latina até aos confins doa Urais se tu fosses um "perigoso foragido"...

Espero ao menos que o bacalhau espanhol te tenha sabido bem, nesse natal de 76. Nessa época, éramos jovens e tínhamos boa boca...

MANUEL MAIA disse...

OLÁ HENRIQUE CERQUEIRA,


O PROXENETISMO ABRILISTA NA SUA EXPRESSÃO MAIS
SIMPLES...
E VOU FICAR-ME POR AQUI...

ABRAÇO

Fernando Gouveia disse...

Henrique:
Sobre as tais licenças militares:
Como todos já devem saber, estive os dois anos em Bafata. Não tendo tido problemas, antes pelo contrário, não deixei de perder três anos da minha vida. Nessa altura havia a possibilidade de tornar a ser chamado para o curso de capitães milicianos. Quando fui para a tropa e para a guerra como que me deixei ir. Nessa altura, em 1967, o Salazar ainda não tinha caído da cadeira e preferia ir à guerra a ter que ir para o estrangeiro talvez para o resto da minha vida.
Quando fui desmobilizado, em 1970, e porque as licenças militares que acompanhavam o passaporte tinham uma validade de, suponho, três meses, nunca mais deixei caducar uma dessas licenças sem ter já outra na minha posse. Desta vez tinha jurado a mim próprio que se fosse novamente chamado iria, sim, para o estrangeiro.
Um abraço.
Fernando Gouveia

manuel amaro disse...

Caro Henrique Cerqueira

Era mesmo assim. Em Fevereiro de 1976 fui fazer umas curtas férias nas Ilhas Canárias, e passei uma manhã numa Rep Militar, Av de Berna, em Lisboa, para conseguir esse maldito "passaporte".

Pois, a burocracia continuava, em grande, porque em Agosto de 1976 fui fazer um estágio em Londres e ainda tive que levar notas do Banco de Portugal, dentro dos sapatos... esses, os que iam calçados...

O 25 de Abril resolveu muita coisa, mas a mentalidade burocrata, essa sobreviveu, pelo menos até hoje.

Um abraço

Luís Graça disse...

O "santantoninho", antes do 25 de abril, antes da crise petrolífera de 1973 (quando passámos a ter e a conhecer esse bicho que corroi as nossas pobres economias, chamado "inflação"...) era uma espécie de gazua que abri as portas das repartições públicas...

Das finanças às conservatórias, era a "nota" que o pobre usava para ser atendido, "depressa e bem"...

Uma nota dessas, antes da inflação de 1973 (e anos seguintes), era a jorna de um trabalhador no campo, no norte do país... Ganhar 20 escudos por dia, noss anos 60, já era muito bom...

O "santantoninho" (ou "folha de alface") é um verdadeiro símbolo nacional...

Luís Graça disse...

... Sobre os "emolumentos" militares: o meu cunhado mais velho, hoje com 75 anos, para grande desgosto do pai sonhou um dia em ir para o Brasil...

Já aqui contei a sua triste sina... Em 1957, com 18 anos, o António obteve dispensa do serviço militar para se fixar, a título definitivo, no Brasil, como emigrante.... Pagou, em Viseu, no RI 14, duzentos escudos de emolumentos, em selos, pela sua dispensa militar.

200 escudos, naquela época, era um dinheirame... Mas a tropa cobrava-ser bem, para dar a "carta de alforria" a um mancebo que não quisesse servir a Pátria...

Possivelmente roído pelas saudades, caiu na asneira de voltar à casa paterna....Acabou, por acompanhar, em 1963, um tio materno, emigrado, de regresso à terra. No aeroporto, em Lisboa, o seu passaporte leva logo com o carimbo da PIDE. E é notificado de que deverá regularizar de imediato a sua situação militar. Faz a recruta, aos 24 anos, e é de seguida mobilizado para Moçambique. Viaja no T/T Niassa. Chega a Tete, em janeiro de 1964, integrado numa subunidade de intendência. A sua experiência profissional (era magarefe no Brasil) é devidamente aproveitada pela tropa.

Seis ou sete meses depois de chegar a Tete, sofreu em julho de 1964 um grave acidente com uma pistola-metralhadora ligeira, uma UZI, disparada acidentalmente por um camarada que acabava de fazer o seu serviço de sentinela...

Hoje, na parte dianteira do corpo "um fecho éclair" de alto abaixo, do peito ao baixo ventre: a bala, de 9 mm, atingiu-lhe 7 órgãos... É DFA...

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2013/12/guine-6374-p12519-em-busca-de-233.html

Jorge Narciso disse...

Complementando (!) o Manuel Maia, após este ultimo relato do Luis:
Talvez dizer proxenetismo PRÉ Abril na sua expressão mais complexa.
A memória é de facto, às vezes, extraordinariamente curta

Ab

Henrique Cerqueira disse...

É mesmo do melhor este nosso blogue.
Então não é que a minha simples busca nas gavetas dá origem a tantos e tão bons comentários ???
Na verdade verdadinha eu estou mesmo nas tintas para toda a cambada de tecnocratas de antes e de agora...Mas hoje em dia estou mesmo feliz é por ter um espaço como este nosso blogue em que nos une tantas e tantas experiências que até acho bom que tenha-mos passado por elas.
Camadas e amigos é mesmo bom ser vosso companheiro neste espaço de nome « Luís Graça & Camaradas da Guiné».
Um abraço para todos e vá lá um especial para o meu camarada de batalhão MANUEL MAIA.
Henrique Cerqueira

António Tavares disse...

Camarigos,
Em 05 de Agosto de 1982 neste tipo de Título de Licença era colocada uma estampilha fiscal de 50$00 - cincoenta escudos. O documento foi passado pelo Comandante Militar da Póvoa de Varzim. Passados mais de dez anos de estar na disponibilidade ainda paguei ao Estado para ir a Espanha.

António Tavares
Galomaro 1970/72

Anónimo disse...

Meus caros amigos,

...Os números não enganam. A minha licença militar, com data de 13 de Abril de 1973 e assinada pelo Cap. Artª. Francisco Ribeiro Henriques, foi estampada com selos fiscais no valor de 1060$00 (mil e sessenta escudos).

Esse documento era apenas um dos muitos que necessitei para obter o passaporte português e a saber:
Bilhete de Identidade,
Certidão de Narrativa Completa de Nascimento,
Registo Criminal,
Análises de sangue,
Raios X aos pulmões,
Inspeção médica (físico).

Para obter o Visto Americano necessitei dos mesmos documentos. Porque eu não tinha residência em São Miguel, tive que repetir toda a parte de médica e ainda ser vacinado contra a tuberculose.

Um abraço,
José Câmara