A preparação do livro "Nós, Enfermeiras Paraquedistas" iniciou-se há já cerca de dois anos (!) e para o efeito todas nós fomos solicitadas a dar o nosso contributo, fornecendo à equipa coordenadora textos que focassem aspectos que considerássemos importantes da nossa passagem pelo Corpo de Enfermeiras Paraquedistas.
Assim fiz, enviando alguns textos revistos cuja versão original já tinha sido publicada em blogues (caso da Tabanca Grande, Tabanca do Centro e Especialistas da BA12), outros originais, escritos de propósito para o referido livro.
Naturalmente, como podem compreender, evitei utilizar até agora este material, não sabendo o que iria ser integrado definitivamente no nosso livro. Publicado este (o que sucedeu no final de Novembro), estou à vontade para avançar com a publicação de dois ou três textos que não chegaram a ser incluídos na obra. Este é um deles, um texto original escrito há dois anos, que só agora é publicado.
Giselda
A MORTE DE UMA CAMARADA
Tive
um relacionamento próximo com a Enfermeira Celeste em dois períodos diferentes.
Frequentámos ambas o mesmo curso de pára-quedismo e partilhávamos os nossos
momentos de folia, misturados com algumas pequenas “patifarias” inocentes
próprias da nossa juventude.
Separámo-nos
momentaneamente após o curso – ela foi para Angola, depois para os Açores, eu
segui para Moçambique e mais tarde para a Guiné. Foi aí que em 1972 a Celeste
me foi encontrar novamente.
Guardo
dela a imagem de uma boa profissional, brincalhona nos momentos certos e sempre
boa camarada.
A
sua morte ocorre no mesmo dia em que embarco para Lisboa acompanhando um grupo
de evacuados.
O pedido de evacuação surge à hora de almoço e a Celeste avança
para o DO-27. Embora não fosse procedimento aprovado o avião já tinha o motor a
trabalhar – o que aliás era usual, para diminuir o tempo até à descolagem.
Nunca se poderá explicar o sucedido, mas o facto é que, depois de ter colocado
o material de evacuação na parte traseira do avião, pela porta traseira do lado
esquerdo, a Celeste decide passar por baixo do avião – entre o trem dianteiro e
o motor (a rodar) – para ocupar o banco da frente (do lado direito) ao lado do
piloto.
Pensa-se que poderá ter tido uma desconcentração ou uma falta de
equilíbrio, tendo sido atingida pela hélice do DO, o que lhe provocou morte
imediata.
Sem
saber do sucedido na Guiné eu tinha entretanto efectuado a minha ida para
Lisboa acompanhando os evacuados e como era norma fui apresentar-me na Direcção
do Serviço de Saúde, na Avenida da Liberdade. Estranhamente o Director não me quis
receber, tendo a sua secretária sugerido que eu fosse falar com a minha colega
que estava ali colocada. Quando ela me viu, não conseguiu dizer nada, apenas se
rindo com um riso esquisito. Quando eu lhe perguntava o que é que se passava
continuava a rir-se, não conseguindo falar. Acabou por ser a secretária a
informar-me da morte da Celeste. Saí dali meio em choque e apenas me lembro de
ter chegado à beira do Tejo, bem longe do AT1 (Portela), onde pretendia
dirigir-me para marcar a viagem de regresso à Guiné.
Novamente
na Guiné, por mais que uma vez fui interpelada por pessoal que estava
plenamente convencido de que eu é que tinha morrido naquele acidente. Isso terá
sido devido também ao facto de eu ter arrancado para Lisboa nesse mesmo dia e
deixar de ser vista na Base e nos locais onde normalmente me deslocava.
Deu-se
o caso de, passados já uns meses, quando num Boeing da FAP regressava à Guiné
após uma deslocação a Lisboa, ter sido solicitada para dar apoio a um dos
militares assistentes de cabine que repentinamente se tinha sentido mal.
Recuperado este, ainda pálido da emoção sentida, disse-me que pensava que o
acidente tinha sido comigo e que ao longo de todos aqueles meses tinha ficado
convencido (pelas conversas com outros) que eu tinha morrido naquele dia.
Como se deve calcular, o
piloto envolvido neste acidente ficou bastante abalado com a ocorrência, tendo
eu sentido a necessidade de, no dia-a-dia na Base e nos transportes para casa,
lhe dar o apoio que sentia ser-lhe necessário, até porque percebemos que ele
considerava haver da nossa parte um comportamento mais distanciado após o
sucedido. Compreendíamos todas que uma situação como esta apenas sucede a quem
lá anda e que era necessário ajudar o piloto a ultrapassar este trauma. Penso
que tal foi conseguido pois o piloto em causa acabou por continuar a voar,
cumprindo a sua comissão de serviço até ao fim.
Giselda Pessoa
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de dezembro de 2012 > Guiné 63774 - P10791: As nossas queridas enfermeiras paraquedistas (31): "É a Céu!", diz a Rosa Serra... Quanto ao resto, "tudo foi possível naquelas terras de África"...
3 comentários:
"Compreendíamos todas que uma situação como esta apenas sucede a quem lá anda...". Nem mais!
Excelente relato que nos traz para uma realidade que muitos de nós desconhecemos. O mundo das enfermeiras, que tantas vidas salvaram, que tanta vidas viram extinguir-sde sem nada poderem fazer.
Cumprimentos.
José Câmara
Giselda, antes de mais parabéns pela feitura e publicação do vosso livro, trabalho a muitas mãos, num exemplo, para todos nós, do que é o trabalho em equipa.
Vocês eram poucas e, infelizmente, hoje são ainda menos. O vosso testemunho, escrito, era fundamental para as gerações seguintes, e em especial para as mulheres a quem vocês acabaram por "abrir portas", em termos de mercado de trabalho... E não só: ser enfermeira e para mais paraquedista não era fácil, há 50 anos atrás, no início dos anos 60 do século passado...
A nossa sociedade portuguesa era conservadora e as mulheres eram vítimas de vários tipos de discriminação, e náo só no código civil, na família. na escola, no trabalho... Os estereótipos, os preconceitos, eram muitos e fortes...
Vocês, meia dúzia de catraias (!), venceram essa difícil batalha. E os homens deste país que pegaram em armas nessa época têm para connvosco uma dívida de gratidão. Mas também as mulheres que ficaram na retaguarda...
Ainda li o vosso livro. de qualquer modo fica aqui, mais uma vez, o meu apreço pelo testemunho e pela passagem de testemunho. As mulheres, mais do que os homens, sabem quão importante é a transmissões de memórias (e valores) para as gerações seguintes...
Quanto ao brutal acidente que vitimou a Celeste, estou-te grato pelo teu relato assertivo, em primeira mão, mas que também revela muito do teu carater e formação... Soubeste ajudar o teu camarada, o piloto, a superar o sentimento de culpa e de impotência, sem o que muito provavelmente ele nunca mais conseguiria voltar aos comandos de uma D0 27. A camaradagem manifesta-se e reforça-nestas situações-limite.
Quanto à Celeste, pois que ela seja sempre lembrada por ti e pelas demais camaradas enfermeiras paraquedistas, bem como por todos nós, que nos sentamos aqui à sombra do poilão da Tabanca Grande. Sinto que ela passa agora a estar mais perto de nós, e que continuará a velar por todos nós, seus camaradas da Guiné.
Luís Graça
Caros camaradas
Já tive oportunidade de também comentar este artigo na publicação que foi deita na "Tabanca do Centro" mas nunca é demais realçar a forma como a nossa amiga e camarada Giselda faz estes relatos impressionantes.
Consegue transmitir o assunto com um aparente "distanciamento" que nos comove. Até parece que foi fácil!
Esta geração de jovens mulheres estava de facto, à época, muito avançada em relação ao conjunto da sociedade donde provinham. Mas é assim em todo o pioneirismo. Alguém tem que ir à frente!
E nunca é demais, também, agradecer o esforço, o empenhamento e a dedicação e também o profissionalismo com que desempenharam as suas funções.
Numa época em que ainda não havia preparação para o 'acompanhamento psicológico' elas praticaram-no.
Abraços
Hélder S.
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