quarta-feira, 10 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14727: Tabanca Grande (467): José João Braga Domingos, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (Colibuia, Ilondé e Canquelifá, 1973/74), 691.º Grã-Tabanqueiro

1. Mensagem do nosso camarada e novo amigo tertuliano José João Braga Domingos, ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74), com data de 3 de Junho de 2015:

Caros Camaradas
Já há alguns anos que frequento o blogue para criar ainda mais saudades.
A sua existência é uma excelente ideia e agradeço reconhecidamente aos que cuidam da sua manutenção.
Reparei que existe pouca participação do pessoal que esteve na Guiné em 1973-1974 (talvez por acharem não ter cumprido o que esperavam deles). Por isso, puxei pela memória e mais de 40 anos depois fiz uma resenha da passagem da minha Companhia (e de mim próprio) pela Guiné.
Se lhe encontrarem algum mérito façam dela a utilização que entenderem.
Quase trinta anos depois do regresso esta Companhia reuniu-se pela primeira vez num convívio e foi formidável. Temos continuado a encontrar-nos e no próximo dia 6 de Junho lá estaremos na Quinta das Carrascas, Carrascas, Alcobaça.

Um abraço
José João Domingos
Ex-Fur Mil At Inf

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BCAÇ 4516 - 2.ª CCAÇ

Esta descrição tem com certeza alguns erros e omissões. As recordações são as de cada um e as versões do mesmo facto serão tantas e tão diversas quantos os seus narradores. Por isso mesmo, não consultei qualquer documentação ou camarada para validar o que escrevi que saiu apenas da minha memória ou da falta dela.

Após formação do Batalhão no RI 15 em Tomar, embarque em Alcântara, no navio “Niassa”, no dia 6 de Julho de 1973 com destino à Guiné. Despedida com a presença de uma multidão de familiares, namoradas e amigos dos militares que partiam.

No barco boas condições de alojamento, higiene e alimentação que, com o decorrer dos dias, se iam nitidamente degradando. Por outro lado, as diferentes condições de transporte dos militares das várias patentes não potenciavam o espírito de grupo indispensável a quem ia viver dois anos em circunstâncias muito duras.

Chegado ao porto de Bissau, após escala no Funchal para receber uma Companhia Independente, uma semana depois, sexta-feira 13 de julho de 1973.

Largas horas entre o fundear do navio (não acostou), em que se processou a distribuição de correio e à desinfestação do navio, e o desembarque para uma LDG com destino a Bolama.

O BCAÇ 4516 estava destinado a Teixeira Pinto mas tinha havido alteração na distribuição das tropas e ficaria como unidade de intervenção. A divisa do Batalhão era “Firmes e Constantes”.

Instalado na LDG, no meio de grande confusão de bagagem, indaguei junto de alguém da tripulação pelo local de satisfação das necessidades básicas e, obtida a resposta, conclui que tinha chegado à guerra.

A LDG de vez em quando andava uns metros mas, meia dúzia de horas depois, ainda víamos as luzes de Bissau. Já clareava quando, finalmente, se pôs a caminho tendo chegado a Bolama cerca do meio-dia.

O desembarque foi um quadro surrealista. Apareceram dezenas de crianças negras propondo-se transportar as bagagens dos militares até ao quartel, que era próximo, a troco de uns pesos. Era doloroso vê-los a arfar debaixo de malas maiores do que eles, sendo frequente os donos das malas pagar-lhes e fazerem eles o serviço. Entretanto, aqueles que não tinham arranjado cliente colocavam-se ao lado dum recém-chegado que transportasse um saco de plástico e, subrepticiamente, no meio da barafunda, com as unhas iam produzindo rasgões no saco até que o seu conteúdo caísse no chão após o que em bando disputavam os despojos.

À vista de uma cidade que tinha sido capital da Guiné Portuguesa fiquei dececionado e perguntei-me que civilização, após 500 anos de domínio, apenas consegue produzir uma cidade daquelas, com edifícios degradados (o hotel, residência dos oficiais, estava escorado) e as ruas sem asfalto. Salvava-se a piscina, junto ao mar, o quiosque perto da entrada onde se bebia um café manhoso e o restaurante do cabo-verdiano onde se comia leitão (já velhote) muito mal escanhoado.

O patriotismo que levava na bagagem: o meu respeito pela nossa bandeira, o arrepio que sempre me causava a audição do hino nacional e o meu orgulho de ser português, contra tudo e contra todos, levou um forte abanão.

Um mês em Bolama a tirar a IAO deu-nos mais preparação do que toda a instrução na Metrópole, em particular para adaptação ao clima na época das chuvas. A experiência com a época seca viria mais tarde e foi bem mais dolorosa pois as noites no mato faziam abanar o corpo todo e as consequências estão hoje bem presentes.

No dia 3 de Agosto de 1973, dia de festa do PAIGC, fomos brindados com cerca de uma dezena de disparos de morteiro 120mm que causaram sete ou oito vítimas mortais, entre militares e população. Só por sorte não aconteceu uma tragédia ainda maior pois o pessoal estava preparado para o jantar e algumas das granadas explodiram bem perto do aquartelamento. O obus do CIM retaliou passada mais de meia hora sendo provável que os autores já estivessem bem longe. Por precaução, fomos dormir para a mata nos arredores da cidade.

Durante a instrução o general Spínola deslocou-se a Bolama para receber o BCAÇ 4516, na presença dos representantes das forças vivas locais, com uma parada de tempo exagerado e alguns desfalecimentos. Na reunião com oficiais e sargentos, realizada no tal hotel, lembro-me bem do general Spínola dizer, entre outras coisas que não fixei, que “a guerra em África não se mantinha devido aos grandes rasgos de visão da retaguarda”.
De facto, era claro que aquela guerra não tinha saída para o nosso lado. A conquista de populações tão diversas teria que ter sido feita muitas décadas atrás se o País tivesse gente com visão no seu comando. Por outro lado, a concessão da independência traria consequências para os territórios mais apetecíveis sob o nosso domínio. Também o final da guerra do Vietname iria com certeza trazer problemas acrescidos para as nossas tropas por maior disponibilidade dos fornecedores de armamento.

Na segunda quinzena de Agosto lá fomos de LDG para Buba, com destino ao setor de Aldeia Formosa (Quebo). O caminho entre Buba e Aldeia, com paragem em Nhala e Mampatá, demorou uma eternidade para um periquito mas perfeitamente normal para o resto do pessoal, atendendo à época das chuvas.

Chegados a Aldeia pôs-se a questão do aboletamento tendo o pessoal ficado muito mal instalado nos primeiros dias, em sobreposição com o BCAÇ 4513.

Passados dias fomos integrados numa força militar conjunta para efetuar uma operação, creio que o nome era “Operação Pertinente”, cujo objetivo era chegar ao Unal. Para além do BAÇ 4516 entraram na força uma CCAV e outra do BCAÇ 4513.
Foram 4 dias de operação a partir de Buba, com chuvadas intensas, cujo objetivo não foi alcançado tendo apenas servido para treino operacional do BCAÇ 4516.
No regresso o primeiro paludismo e, em poucos dias, 10 kg a menos.

E lá fomos todos distribuídos pelo setor de Aldeia: 1.ª CCAÇ: Cumbijã; 2.ª CCAÇ: Colibuia e 3.ª CCAÇ: Nhacobá. A CCS ficou em Aldeia.

Ficou, portanto, a minha companhia estacionada em Colibuia, tendo adstrito um pelotão de milícia e dispondo de um morteiro de 81mm. Fazíamos o patrulhamento diário da zona e, periodicamente, estacionávamos uma noite no mato. Os confrontos mais frequentes foram com as abelhas. Diariamente procedíamos ao abastecimento de água numa fonte entre Colibuia e Aldeia, cuja estrada era de alcatrão, num local particularmente exposto a ataques o que obrigava a medidas de segurança rigorosas.

O aquartelamento não teria maior área que um campo de futebol sem bancadas e o telhado das casernas era em chapa de zinco tornando-as um forno a energia solar. A segurança do perímetro era feita com duas fiadas de arame farpado e, no meio, alguns fornilhos. Mas, finalmente, tínhamos a nossa casa.

A comida era péssima e escassa, não existindo alternativa no aquartelamento. Nestas condições, não faltavam clientes para o posto médico de Aldeia.
Contudo, se houve tempo em que senti grande liberdade em relação ao espartilho militar foram esses dois meses. Ninguém se preocupava com o tamanho do cabelo e da barba, com o ataviamento e com a ordem unida. Tomar banho era uma necessidade diária cuja concretização tinha alguma coisa de épico pois, devido à escassez de água, o caudal saído do buraco do depósito da água (que não chuveiro porque gastava mais) era pouco superior à baba de um menino o que permitia que se fumasse durante o banho, entre o acto de molhar e o de ensaboar, quando se dava a vez a outro.

Em Outubro, substituídos pela 3.ª CCAÇ, deslocámo-nos para Bissau (Adidos), durante alguns dias, tendo sido depois colocados no Ilondé, entre Bissalanca e Quinhamel, em tendas de campanha, sem latrinas, tendo sido aberta uma vala para onde as tropas defecavam directamente, e sem refeitório, sendo a comida feita e distribuída ao ar livre. O tempo passado até serem construídas as latrinas e os chuveiros dava para uma longa metragem de situações caricatas.

Passámos a fazer segurança às colunas de Bissau para Farim, às quintas-feiras, com paragem em Mansoa, Cutia, Mansabá e K3, tendo substituído uma companhia de açorianos que, já com a comissão cumprida, estava a ser bastante castigada. Uma das colunas estendeu-se a Guidaje e vimos bem as sequelas dos ataques de Maio de 1973 quer materiais quer psicológicos com destaque para as campas de algumas vítimas daquela acção que, creio, repousam hoje nas suas terras de origem, graças ao trabalho de camaradas que não os esqueceram e a quem presto homenagem.
Participámos ainda em várias operações no terreno e fizemos segurança entre Bissau e Mansoa ao Ministro do Ultramar.

Entretanto, a 1.ª CCAÇ foi para Binta fazer segurança à construção da estrada Binta-Guidage e a 3.ª CCAÇ foi para o Ilondé em trânsito para Canquelifá. A CCS ficou no Ilondé.

Em Fevereiro/Março de 1974 estive de férias na Metrópole. Estava em Lisboa quando se deu o levantamento das Caldas da Rainha em 16 de Março e, embora sem êxito, deu para perceber que alguma coisa estava finalmente a mudar. No regresso de férias trouxe na mala um exemplar do livro “Portugal e o Futuro” de autoria do general Spínola.

No final de Março nova mudança, agora para Canquelifá, a substituir a 3.ª CCAÇ que passou lá um mau bocado. Outro buraco, sem comida e sem água potável.

O segundo paludismo, em poucos dias menos 10kg e, na recuperação, uma peritonite que me mandou evacuado para o HM 241 de Bissau, e cujo tratamento correu muito mal. Esta evacuação, a 20 de Abril de 1974, dava também um filme pois evacuado de helicóptero em Canquelifá pelas 12h00 cheguei ao HM pelas 20h00 horas, após paragens em Nova Lamego (para um salto de pára-quedas) e Bambadinca (para receber correio e lanche). Com um peso de 80kg à chegada trouxe 53kg à partida.

No Hospital, ainda nos cuidados intensivos, tomei conhecimento do 25 de Abril. Foi uma alegria enorme plena de esperança em dias melhores para nós e para o nosso País.
Seguiram-se dias de grande expectativa cheios de bocas e palpites que confundiam os que não estavam por dentro da revolução.

Por mero acaso, estava nos Adidos, assisti a uma reunião feita na parada de Brá, com o pessoal dos Comandos africanos, na altura da sua desmobilização, onde lhes foram prometidos benefícios e protecção que, foi depois voz corrente, teriam sido esquecidos.

A minha Companhia regressa de Canquelifá e passa a fazer segurança a Bissau até à independência da Guiné-Bissau em Setembro de 1974.

Em linhas gerais está aqui um pouco da minha história e da 2.ª CCAÇ do BCAÇ 4516.

Foram tempos difíceis mas ficaram recordações para toda a vida, boas e más, tristes e alegres. Talvez um dia me disponha a contar alguns episódios a que assisti e que representam bem a forma como os portugueses são desenrascados ou, antes, como encontram soluções para resolver problemas em contextos complicados.

Gostaria de destacar ainda alguns factos que considero muito importantes na estadia desta Companhia na Guiné:

1 – O seu comandante, capitão miliciano, foi muito competente na defesa dos seus homens e no trabalho operacional.

2 – Todos comiam do rancho, sendo que os soldados comiam primeiro e o que restava era para oficiais e sargentos.

3 – Estando definido o custo unitário de cada refeição, nunca percebi porque comíamos tão mal (estivemos quase sempre dependentes de outros em matéria de alimentação) e outros que fomos conhecendo comiam bem melhor.

Pessoalmente, adorei o povo da Guiné que considero puro e justo apesar de notar aqui e ali a influência perniciosa oriunda da Metrópole. Acho, também, que aquela terra se entranha em nós (ou nós nela) e, apesar das condições difíceis, sinto que ainda hoje a tenho em mim.




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2. Comentário do editor

Caro camarada Domingos
Desde já, bem aparecido na Tabanca Grande, escolhe um lugar sob o nosso poilão e dispõe-te a cumprir a promessa que fazes: Talvez um dia me disponha a contar alguns episódios a que assisti e que representam bem a forma como os portugueses são desenrascados ou, antes, como encontram soluções para resolver problemas em contextos complicados.

Como referes, há algum défice de memórias da nossa presença na Guiné depois do 25 de Abril até à nossa retirada, talvez porque da parte de quem viveu esses tempos haja uma espécie de conflito de interesses, por um lado os momentos difíceis vividos antes da revolução e por outro a euforia do fim da guerra que contrastará com um sentimento de missão não cumprida. Não sei se pensas assim.
No vosso tempo havia já muita malta com convicções e ideais contra a guerra colonial, que ficaram contentes com o desenrolar da situação, e outros camaradas que por formação ideológica ou suposto dever patriótico talvez ficassem frustrados com aquela retirada sem glória.
Acredito que em muitas Unidades a indisciplina imperasse, pois já ninguém teria mão nos militares que queriam regressar depressa a casa e esquecer aquele pesadelo.

Como vês há aqui muita matéria da qual te podes valer para desenvolver a tua colaboração.

Aqui fica um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia e dos editores Luís Graça, Eduardo Magalhães e eu próprio.

O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14705: Tabanca Grande (466): Joaquim Fernando Monteiro Martins, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4142 (Ganjauará, 1972/74) - 690.º Grã-Tabanqueiro

3 comentários:

Luís Graça disse...

Sê bem vindo, camarada. Li, embora por alto, o teu relato da partida para a Guiné, bem como a chegada. Prometo comentar com mais tempo e vagar. Para já, vão as minhas boas vindas pessoais. Agora vou até Belém, há sempre camaradas da Tabanca Grande por lá, no 10 de junho. E as nossas amigas e camaradas enfermeiras paraquedistas vão ser homenageadas. Ab. Luis

Unknown disse...

Boa Tarde
Vi o comentário do Fur José Domingos sobre o tempo de 73/74, e julgo que esteve no meu pelotão da 2ª Companhia do Batalhão 4516. Lembro-me muito bem de vários episódios relatados bem como outros que não estão, como a permanência em Pirada e Canquelifá, enfim, algumas boas memórias outras menos boas, mas se recuasse 44 anos voltava a fazer o mesmo.
Abraços
Paulo Sequeira Nunes

José João Domingos disse...

Caro Paulo Nunes, ex-Alferes Miliciano da 2ª CCAÇ do BCAÇ 4516.
Mais de três anos depois li o teu comentário que agradeço.
O meu pelotão era o 1º, comandado pelo Alferes Martins, o teu era o 2º e tinhas como furriéis, se bem me lembro, o Cibrão e o P.Costa. A nossa Companhia após 30 anos começou a comemorar a nossa passagem pela Guiné tendo sido o 1º encontro em 2003 e o último no ano passado. Por razões conhecidas este ano não vai haver. Gostaríamos de ter a tua presença.
Um abraço
José João Domingos