Segundo episódio da nova série "Atlanticando-me" do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66).
Nunca é tarde - 2
Nesta viajem que fizemos à Califórnia não pudemos
ouvir o nosso interlocutor, mas prosseguimos com a
história, não sei se estão lembrados, o Nico regressa da
segunda safra, lá na Terra Nova, cá vai a continuação.
Depois de mais esta “safra”, regressa de novo, a Dina e
os pais esperam-no na entrada da barra, mais beijos,
lágrimas e risos de contentamento, em terra continua
aprendendo inglês no liceu da cidade de Aveiro,
namorando com a Dina e exercendo funções no seu
trabalho temporário. Embarca para a terceira “safra”, o
mesmo se segue, abraços à Dina, com beijos e
promessas de fidelidade até à morte, a bordo, todos o
conhecem, qualquer coisa que não funcione bem, é ao
Nico que se dirigem, às vezes ignorando o capitão.
Vêm de novo a terra, ao porto de St. John’s, no mar da
Terra Nova, abastecerem-se, entre outras coisas, de água
fresca e isca, o Nico já fala inglês com alguma facilidade,
conhece outros mecânicos, pessoal de outros barcos, de
outras nacionalidades. Há um capitão de um barco, de
nacionalidade americana, que falando com ele, tomando
conhecimento da sua especialidade a bordo, vendo nele
um homem robusto e novo, oferece-lhe um contrato para
trabalhar num barco de pesca nos Estados Unidos, no sul
da Califórnia. O Nico, não lhe diz que sim, nem que não,
mas ficam com o contacto um do outro. Regressa a
bordo, é quase meia noite, mas no lugar do globo onde se
encontra, ainda é dia, cá fora, no convés, escreve mais
uma carta apaixonada à Dina, com promessas de amor
que, quem sabe, talvez nunca virá a cumprir. Põe essa
carta no correio, no porto de St. John’s, no mar da Terra
Nova.
Quando veio pôr a carta no correio para a Dina, vai de
novo ao local onde se encontrava o tal capitão que lhe
tinha feito a oferta, falam de novo, vão ao barco desse tal
capitão, acertam tudo, quanto iria ganhar, quais as
condições, como ia decorrer o processo, assina algumas
folhas que eram só futuras promessas. Regressa a
bordo, não sabe porquê, está confiante, sente-se um
homem, apesar de ser um jovem ainda, pensa só para si: Há um ditado que diz que o comboio não passa duas
vezes, portanto vou apanhar este, pode ser que seja o
meu.
Regressou de mais uma “safra”, lá estava a Dina e os
pais a espera na entrada da barra, mais beijos,
abraços e lágrimas, no regresso a casa, o pai diz-lhe:
- Ó Nico, chegou há dias uma carta dos Estados
Unidos para ti, está lá em casa para tu veres.
O Nico, fazendo-se despercebido, disse:
- Deve de ser algum amigo que eu conheci no porto
de St. John’s, lá no mar da Terra Nova.
Depois disto chegaram mais
cinco cartas, o Nico, abriu-as, algumas continham
documentos para preencher e assinar, outras eram
pedidos de diversos certificados. Deu aviamento a tudo,
sempre com desculpas de que eram amigos a
escreverem-lhe, como ninguém compreendia inglês, a
não ser ele, foi fácil enganar os pais e a Dina. A sua vida
continuou a correr normalmente em terra, os beijos à
Dina, o liceu, continuando a aprender inglês e o trabalho
temporário na cidade de Aveiro.
Embarca para uma quarta safra, tudo normal, a bordo continua a ser uma pessoa popular, mesmo o capitão
João o chama muitas vezes para que lhe traduza algumas
cartas em inglês ou para ouvir e responder às pessoas
que avisam naquela zona do globo como está o tempo. Pouco a pouco vai-se inteirando de todas as tarefas a
bordo, ganha experiência, vai resolvendo muitos
problemas. Quando vêm meter isca a terra, fala e convive
com pessoas de outras nacionalidades, em inglês, quase
sem dificuldade, escreve cartas à luz do dia, embora seja
meia-noite, com juras de amor eterno à Dina que, mais
uma vez, não sabe se vai cumprir.
Regressa, lá está a Dina e os pais, acenando-lhe na
entrada da barra, mais beijos, lágrimas e risos de alegria,
no regresso a casa, o pai diz-lhe:
Ó Nico, estão lá, mais umas tantas cartas para ti.
E o Nico, fazendo-se despercebido, disse:
- Deve de ser de algum amigo que eu conheci, no
porto de St. John’s, lá no mar da Terra Nova.
Uma dessas cartas era do consulado dos Estados
Unidos, para tratar de uns tantos documentos e
apresentar-se para receber um visto e ir trabalhar para
uma empresa marítima na Califórnia. Arranjou todos os
documentos, o governo de Portugal, nesses tempos,
depois de cumprir quatro anos na safra do bacalhau, não
lhe pôs qualquer dificuldade.
Vai ao consulado, é entrevistado, recebe um visto para
emigrar para os Estados Unidos, regressando a casa,
com alguma coragem, diz ao pai e à mãe:
- Vou emigrar para os Estados Unidos.
Contando-lhes toda a história desde o princípio, agora
tinha que dizer à Dina. Foi vê-la,
olhando-a nos olhos, explicou-lhe:
- Dina, meu amor, não podemos perder esta
oportunidade...
Explicou-lhe tudo desde o princípio, com a promessa de
que iria na frente para ver como as coisas iriam correr, logo
viria casar, levando-a para junto de si. Outra promessa,
que não sabia se iria cumprir. O Nico, mais uma vez se
despede com beijos, abraços e algumas lágrimas e
embarca num navio de origem italiana, rumo aos Estados
Unidos, desembarcando em Nova Iorque. Recebe nova
documentação, toma o comboio, ao fim de uns dias sai
na estação de caminhos de ferro “Santa Fé”, na cidade de
São Diego, no estado da Califórnia, dirigindo-se à
empresa marítima que lhe ofereceu emprego, que
imediatamente lhe proporcionou alojamento, sendo uns
dias depois, colocado em determinado barco de pesca,
começando o seu trabalho.
Sabendo o idioma inglês, conhecendo todo o sistema das
máquinas da embarcação melhor do que ninguém, novo e
sempre disponível para ajudar, em pouco tempo
começou a ganhar a confiança dos colegas, que o
convidavam para frequentes festas, que se realizavam
nas redondezas. Numa dessas festas conhece uma
rapariga que falava algumas palavras em português, pois
os avós eram oriundos dos Açores, mas tanto ela como os
pais já tinham nascido na Califórnia, chamava-se Diane,
já era a segunda vez que se cruzava com ela, pois a
primeira foi no parque de estacionamento da empresa
marítima, viu-a chegar de carro, ele ia entrando para o
barco, pois iriam sair para o mar dentro de minutos, viu-a,
despertou-lhe a atenção, pois ela fechou a porta do carro,
com o pé, quase com um pontapé.
E pensou para si, na altura: Porra, mulher duma figa. Só na América.
Este foi tema de começarem a conversar, entendiam-se,
ela queria falar português, ele não se importava da
companhia dela, tinha cabelo preto, um pouco
acastanhado, era da altura dele, usava saia curta, um
pouco abaixo dos joelhos, quando ela se movimentava,
podia mesmo ver-lhe os joelhos, para ele, ela parecia-lhe
bonita, falava com alguma desenvoltura, como já se
conhecessem há anos. Ao Nico, dava-lhe a impressão que
a Diane não tinha preconceitos, tratava-o por tu, tocava-lhe
nos braços ao falar com ele, pedia-lhe para falar em
português e, quando o Nico falava, ela ouvia-o com
atenção, não sabendo se era para aprender português ou
porque estava interessada nele, enfim, deixava-o confuso
e, ao mesmo tempo, ficava a pensar nela.
Quando ficava a pensar na Diane, pegava na caneta e
escrevia cartas apaixonadas à Dina. Ao fim de algum
tempo, já não sabia se escrevia à Dina pensando na
Diane, ou se pensava na Dina e queria ver a Diane. O
certo é que já não sentia tanto a necessidade de
escrever à Dina.
Primeiro, começaram por encontrar-se por acaso no
bar que havia junto à empresa marítima, onde em geral,
todos os trabalhadores do mar se encontravam, depois já
marcavam encontro, dizendo um ao outro:
- Amanhã, à mesma hora.
(continua)
Tony Borie, Julho de 2015
____________
Nota do editor
Primeiro poste da série de 10 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15602: Atlanticando-me (Tony Borié) (1): Nunca é tarde (1)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Olá Tony!
Estive uns tempos sem poder dar muita atenção ao 'nosso Blogue', pelo que também não comentei os dois ou três últimos episódio, um deles precisamente o primeiro desta série...
Mas isso não impede que, ao ler este, me aperceba da evolução que o nosso herói da 'safra' do bacalhau tem vindo a sofrer..
E tudo por causa das cartas de "algum amigo que eu conheci no porto de St. John’s, lá no mar da Terra Nova"... o que nos diz que isso de ter amigos no porto de St. John's pode ser 'promissor' ou 'desviante'...
Vamos ver como vão então evoluir as relações com a Dina e a Diane, sendo certo que é de esperar que se cumpra um velho ditado português (não sei se exclusivo) de que "longe da vista, longe do coração"... para mais com tanta desenvoltura por parte da Diane...
Abraço
Hélder S.
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