terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15639: Inquérito 'on line' (31): "A tropa fez de mim um homem" ?... Lembrando o caso dos meus conterrâneos que, tendo emigrado antes, vieram do estrangeiro propositadamente para fazer a tropa (Francisco Baptista, Brunhoso, Mogadouro)

Vista geral de Brunhoso.
Cortesia da página Brunhoso, Mogadouro


1. Comentário de Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72):

Brunhoso, a minha aldeia distava cinco quilómetros de Mogadouro, sede do concelho, por esse motivo os mancebos da terra chamados à inspecção, deslocavam-se a pé, pois estavam habituados a calcorrear muitos quilómetros no dia a dia de trabalhadores agrícolas. Arranjar transportes também não seria fácil. Bicicletas ninguém tinha, muito menos motorizadas. Os burros ou mulas, já que cavalos praticamente não havia, ninguém se atrevia a pedir aos pais, que iam considerar pouco másculo, para um rapaz de 20 anos fazer uma distância tão pequena.

No meu ano, fomos quatro, porque outros quatro do mesmo ano, já tinham emigrado para longes terras, Brasil e Angola.

Nesse tempo, em que os praças do meu ano e outros de anos anteriores, se dispersavam já pelo mundo europeu, americano ou africano à procura de melhores condições de sobrevivência, a velha máxima " de que a tropa vai fazer de ti um homem" estava a perder actualidade, já que eles,  pelas andanças pelo mundo, iam adquirindo os mesmos conhecimentos e experiências que a tropa lhes poderia dar. Experiência da vida e do mundo, que de certeza terá dado, a alguns dos seus antepassados, que na vida inteira só por essa causa, saíram para lá dos limites onde os levavam as pernas deles ou as dos animais de carga.

Por outro lado a tropa não os iria fazer homens mais obedientes e disciplinados do que já eram, a eles filhos de uma sociedade rural antiga e afastada de tudo, onde não tinham entrado ideias libertárias da revolução liberal do século dezanove, nem da revolução republicana dos inícios do século vinte e continuavam debaixo do poder absoluto das várias autoridades, a começar na Igreja e a acabar nos pais, que Salazar abençoou quando tomou o poder. 

O livro "Das Trincheiras com Saudade" sobre a participação do Corpo Expedicionário Português,
numa passagem fala sobre a coragem e disciplina do batalhão dos transmontanos. As duras condições de trabalho que tinham de suportar e as imposições seculares que lhes condicionavam a personalidade terão provavelmente contribuído para isso. 

Não quero deixar de salientar a atitude, destes meus "praças" que na nossa velha escola primária tinham aprendido a História de Portugal, à custa de muitos gritos, reguadas e vergastadas da professora, que patriotas, como poucos, vieram de França, para "dar a tropa" na linguagem deles. Seria patriotismo ou medo da Pátria, essa avó rabujenta´, que nunca lhes tinha dado algum amor, mas que se podia vingar deles e condená-los ao ostracismo?

Há dias ouvi,  na apresentação de um livro sobre a guerra, que mais do que desertores houve muitos que vieram do estrangeiro propositadamente para fazer a tropa. Estes meus conterrâneos devem fazer parte dessa contabilidade desse nosso camarada.

O ilustre intelectual e camarada que fez essas afirmações parece-me que não conhecia muito bem as motivações e a realidade dos nossos jovens emigrantes, na sua maioria futuros soldados, que durante três anos, para começo de vida e estando já alguns casados, iriam receber um vencimento miserável. Os futuros oficiais e sargentos milicianos, apesar da interrupção das suas carreiras profissionais ou escolares, iriam receber um vencimento bastante compensatório, o que não era o caso dos enumeros batalhões formados sobretudo por soldados. Concluindo os três camaradas que vieram de França, para ir às sortes comigo, e dar a tropa, vieram por amor à sua sua terra, terra dos seus pais e antepassados, porque sabiam que se não viessem ficavam condenados, não sabiam até quando, a não poder regressar.

A mim pessoalmente a vida militar, depois da crise mais ontológica da adolescência , relacionada com as razões, causas e justificações das nossas origens e destinos, provocou-me uma crise de consciência política sobre as razões ou sem razões dessa guerra. Um combatente com dúvidas não pode ser um bom combatente, embora um dia tenha sentido subir muito por mim a adrenalina e o desejo de vingança por causa da morte de um camarada.

Francisco Baptista
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Nota do editor:

Vd. postes de 16 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15622: Inquérito 'on line' (28): "A tropa fez de mim um homem"?... Nem sim nem não, metade da malta (12 em 24) responde "nim", "nem verdadeiro nem falso"... Inquérito em curso até 5ª feira...

7 comentários:

Luís Graça disse...

Francisco, esses casos de rapazes da tua região que vieram da emigração para fazer a tropa não devem ter sido assim tão raros como se julga… Já aqui contámos a história (trágica) do Francesinho, alcunha do soldado atirador António de Sousa Oliveira. Era natural de Celorico de Basto. e emigrante em França. Voltou para cumprir o seu dever e… morrer no "corredor da morte", em Guileje, em 28/12/1967.

Vd. poste de 1 DE NOVEMBRO DE 2013
Guiné 63/74 - P12234: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (20): Memórias de Guileje ao tempo da CART 1613 (1967/68), por José Neto (1929-2007) - Parte VII: Homenagem sentida ao Francesinho, o sold at António de Sousa Oliveira, natural de Lamelas, Ribas, Celorico de Basto, e emigrante em França, que morreu heroicamente em combate em 28/12/1967

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2013/11/guine-6374-p12234-9-aniversario-do.html

zé manel cancela disse...

Olá amigo Baptista.Mais uma vez li com toda a atenção
o teu texto,e posso testemunhar que no meu tempo de tropa
também conheci dois rapazes que vieram de outros países onde estavam
imigrados,um do Canadá,outro da Africa do Sul para "dar a tropa".
Em contra partida houveram outros, muitos mais,que atravessaram os Alpes a fugir da guerra......

Um abraço e até um dia destes em Matosinhos......

Anónimo disse...

Importante esta tua participação, amigo Baptista, até porque vai dar azo a muitos comentários, tendo em vista o interesse do tema. Efectivamente a questão dos "regressados" permite duas leituras pois bem se sabe que uns retornavam por receio de ficarem, para sempre, impedidos de reverem a sua família, os seus amigos e vizinhos e as suas aldeias; outros, além desta motivação, acrescia-lhes a vontade do cumprimento de um dever para com a Pátria. A prevalência era dos primeiros ou dos segundos ? Não sei. O que sei é que o Mata de Pinhel, tendo emigrado para França, regressou a Portugal aconselhado/pressionado pelo seu pai, para cumprir o serviço militar porque, segundo este, depois iria ter problemas com a justiça se quisesse regressar... e ele regressou, casou-se, fez uma filha que havia de nascer depois de ele ter morrido ao fim de treze dias de comissão, na ilha de Bolama.
Um abraço
Carvalho de Mampatá

Luís Graça disse...

Muitos jovens do nosso tempo eram refratários (e não desertores): calcula-se que tenham chegado aos 200 mil... Emigrar, nessa época, para mais clandestinamente, "a salto", era uma espécie de autodegredo... Muitos terão ido ainda adolescentes, com os pais ou irmãos mais mais velhos, sem a intenção expressa de fugir à tropa (e à mais que certa mobilização para o ultramar)... Quando chegava a hora às sortes, soava o gongo: voltar ou não voltar, não era uma decisão fácil... Voltaram, alguns, não sabemos quantos, se calhar não por "patriotismo", por amor aos pais, por apego à família, por saudade da terra...

Eu fiz a tropa (e a guerra) para poder continuar a garantir o direito de viver na minha pátria!... Não escondo que, antes dos 18 anos, também pensei ir para Paris... estudar!...

A atração por Paris, em meados da década de 1960, já era fortíssima. Por outro aldo, eu falava, escrevia e lia fluentemente o francês nessa época... "Ir a salto" para a França tornou-se uma verdadeira pandemia... era contagiante, seguia-se os passos dos mais velhos, dos pais, dos parentes, dos amigos, dos vizinhos... A vida nas pequenas cidades, vilas e aldeias era asfixiante, sob todos os pontos de vista!... Dois milhões de portuguesas sairam rapidamente das suas terras, para dentro (Lisboa, Porto) ou para fora (emigração, guerra colonial)... Será que isto é cíclico ? 500 mil só nos últimos 4 a 5 anos, dá que pensar!

Anónimo disse...




Caso não tivessem vindo os meus camaradas de França, tirar as sortes comigo, imagino o dia caricato e aborrecido, para mim, para a aldeia, que se revia nos seus jovens que atingiam a maioridade e para as raparigas que gostavam de os avaliar, mais uma vez, nesse dia tão importante com melhores roupas, pois eles faziam parte também das suas possíveis promessas de casamento com que elas já andavam a sonhar e a fazer os enxovais com o melhor linho e com a melhor lã que conseguiam obter. Pensando bem eles não terão querido faltar também a esse dia de festa para toda a aldeia em que nós erámos os protagonistas, era um rito de passagem da vida em que apostávamos a sorte e a mudança para a idade adulta. Como em muitas sociedades esses ritos de passagem provocam nos visados um aumento da adrenalina e uma mudança de personalidade. Na verdade poderiam vir à inspecção e dar novamente o salto para a França, o que não fizeram.
No caso de não terem regressado, eis-me só, depois da inspecção, sem saber se havia de comprar foguetes para lançar no meu regresso na colina fronteira à aldeia e rebuçados para dar às raparigas, na volta que tinha que fazer por todas as ruas da terra. Provavelmente, mesmo sozinho, teria que cumprir todas as tradições pois seria quase uma exigência dos meus conterrâneos.
Francisco Baptista

Antº Rosinha disse...

"Será que isto é cíclico ? 500 mil só nos últimos 4 a 5 anos, dá que pensar!"

Luís, cada um de nós teve a sua experiência, e pelas minhas experiências de emigrante individual e em grupo e regresso e retorno, penso que não foi tão cíclico assim.

Houve apenas uma pequena diminuição de emigrados com o boom das obras públicas cavaquistas/guterristas/jardinistas, isso foi evidente e lógico.

Hojr a grande diferença está no tipo de emigrantes, que agora é de enfermeiros, médicos, dentistas e gente com muitos estudos, enquanto anteriormente iamos os dedicados às obras de construção civil e certos ofícios.

Houve uma emigração que passou desapercebida a seguir ao 25 de Abril até ao tal boom nacional entre 1986 e os campos de futebol, 2002.

Essa emigração desapercebida só para quem não era do ramo da construção civil, foi muito intensa.

Eram dezenas de empresas a levar milhares para a Líbia, Marrocos, Síria, Iraque, Irão, Iemen, Emiratos A. Unidos, Kwait, tudo o que nadava em petróleo.

Muitos colegas meus não optaram ir para as ex-colónias como eu fiz, porque os dólares e a adrenalina naqueles países era maior.

As empresas eram desde as tradicionais Soares da Costa e Teixeira Duarte até muitas pequenas e outras brasileiras.

Essa emigração, que foi um tanto sazonal, trouxe muitos dólares para Portugal.

A emigração dificilmente vai parar para e a tradição vai manter-se

Hoje sabemos que é tão fácil fazer doutores como era antes fazer especialistas da construção civil.

Vimos essa realidade aqui, na Guiné em Angola e no Brasil, que grande número de doutores também leva à emigração como antigamente os pedreiros e carpinteiros.

Mas existe muita adrenalina na cabeça de quem emigra, isso também conta.

Havia espírito de aventura em muitos que foram para a guerra para o ultramar e para aqueles que foram para o bidonville de Paris.

Mas mais adrenalina ainda dos que iam com «bolsas dos papás» para Genebra ou Londres, lutar contra o fascismo dos mesmos papás.

Esses ainda daria mais gozo, conheci alguns na minha vida profissional.

Uma máxima dos emigrantes "piriquitos" é: Vou ficar 3 ou 4 anos e regresso à minha terra logo, logo.

Os emigrantes calejados dizem: Aquele rectângulo é bom para apanhar sol e praia, só regresso na reforma.

Luís, pode-se estranhar a quantidade de emigração actual, mas só vai diminuir se nos extinguirmos como portugueses o que não pode acontecer.

Com internet é mais fácil emigrar porque se está mais perto.

Com correio via marítima era mais complicado e doloroso.

Cumprimentos

Anónimo disse...



Amigo António Rosinha:

Nos tempos da nossa juventude, pelo menos na zona geográfica onde nasci e que melhor conheci, bastava a explosão demográfica que nem Deus nem os homens conseguiam controlar, e transformava um lar familiar de duas pessoas, em dez , em poucos anos, para provocar um excesso de bocas famintas que os recursos alimentares que a agricultura fornecia regularmente e na mesma medida há muitas décadas, não podia satisfazer. Tu que gostas de ser muito conciso e matemático, aí tens uma contabilidade simples que revela alguma verdade.
Falas de outros tipos de emigração, que poderiam ser evitados se os fundos da CEE fossem mais bem aplicados pelos políticos medíocres que os esbanjaram em vias rápidas e auto-estradas para os portugueses ilusoriamente ricos com tanto dinheiro a entrar no país, se divertirem a acelerar os carros médios e de gama alta, comprados a prestações.
A nossa miséria nacional que ao longo da História tem tido muitas causas originou que houvesse sempre milhares de portugueses de abalada por esse mundo fora.
Um abraço. Francisco Baptista