domingo, 31 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P25021: Bombolom XXX (Paulo Salgado): Como a Guerra é (re)contada

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África""Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier", com data de 29 de Dezembro de 2023:

Meus Caros Camaradas,
Desejo a todos os editores do nosso Blogue, e a todos os que nele participam, Bom Ano de 2024.
Uma saudação de camaradagem e o pedido de bombolarem o meu bombolom.
Paulo Salgado



O meu Bombolom

Como a Guerra é (re)contada

Olossato, 1970 - O Alf Mil Op Esp Paulo Salgado - Foto: © Paulo Salgado


N
um dos encontros que a Companhia de Cavalaria 2721 tem realizado, pela mão de um grande camarada, para lembrar a camaradagem e a solidariedade que se construíram em tempo de guerra, dizia-me um ex-militar, graduado, face às histórias que cada um ia narrando:
- Eh pá, pelo que ouço nestes nossos encontros, dá-me a impressão que não estivemos na mesma guerra, no mesmo local, que percorremos os mesmos caminhos, que sofremos as mesmas emboscadas, que estivemos sujeitos aos mesmo bombardeamentos, sofrendo as mesmas vicissitudes!

Perante o meu espanto, prosseguiu:
- Não te admires, camarada. Participei, como te lembras, numa grande operação, houve barafunda, tiroteio forte, confusão, no meio da mata, feridos, alguns graves, evacuações. Pois bem, chegados ao aquartelamento, ouvi diferentes versões, inclusive sobre o que decidi, sobre as ordens que dei, sobre a minha intervenção. E aqui, nestes encontros, dezenas de anos depois, ouço versões diferentes, por vezes contraditórias. Isto é do caraças…!

Calado fiquei por breves instantes. Porém adiantei:
- Claro que me aconteceu uma situação similar, alguns meses despois, ao episódio que focaste. Um camarada lembrava que teria havido uma manobra mal feita pelo grupo (a que eu pertencia) que fazia a segurança ao grupo que retirava do golpe de mão, e que teria deixado passar o IN. E falava com uma certeza impressionante. Foi contraditado na altura, mas ainda hoje, mantém a mesma versão… Até posso afirmar que os camaradas que habitualmente seguiam à frente comigo nos patrulhamentos contarão os factos diferentemente uns dos outros, e de mim, naturalmente... sempre que o perigo era pressentido ou quando havia contactos…

Ouvindo a conversa nesta amena cavaqueira, logo um outro veio afirmar:
- Não foi assim que se passaram as coisas. É preciso lembrar que o IN sabia muito bem contornar as situações… o grupo que fazia a segurança (os “aguentas”), procedeu da forma correcta. Obviamente, ambos não chegaram a acordo, e cada qual ficou com a sua.

Não liguei muito ao caso sobre o foco de cada um. Nem ligo, hoje. Por duas razões.

Primeira: vivi intensa e criticamente o tempo em que estive na guerra, esforcei-me por dar o meu melhor em contribuir para todos regressarmos, o que infelizmente não sucedeu: dois mortos e alguns feridos. Escrevi notas, escrevi cartas, poetei alguma coisa, li alguns livros, comandei a companhia durante alguns meses, bem ou mal, construímos um jornal, jogámos futebol, passámos fome e sede, até fizemos operações helitransportados, fiz exames da quarta classe aos jovens, contactei e respeitei a população dentro da filosofia que o capitão imprimiu... Colaborei na feitura da História da Companhia. Fui louvado.

Segunda: por convite e convicção, fui cooperante na República da Guiné-Bissau vinte anos depois do 25 de Abril. Ao revisitar o “local” (por diversas vezes, uma delas com o cabo Moura Marques (grande soldado, meu convidado no Bairro da Cooperação, cerca de 35 anos depois), fui reconhecido pelos soldados feitos milícias. Calcorreei grande parte daquele País, acompanhado pela minha mulher, namorada na altura da guerra. Vi homens e mulheres, alguns eram crianças…! – agora libertos do jugo colonial e da força das armas. Pelo serviço prestado, foi-me concedido um diploma de honra ao mérito pelo poder instituído no País. Poucos haverá que tenham sido louvados pelos dois lados – já agora.

Para trás, os detalhes, as histórias narradas que me deram lastro para escrever (narrativa histórica ficcional) sobre alguns momentos e episódios. Sem falar da guerra, propriamente. As cartas, as abundantes cartas, que a minha mulher guardou, raramente falavam de episódios de guerra… Estão conservadas para a memória dos meus descendentes, se tal lhes aprouver.

A História é assim: cada um rememora-a como a sentiu e viu e viveu. Desta guisa, fizeram Cadamosto, Tristão da Cunha, Nola, Diogo Cão, Bartolomeu Dias… E, em especial, os cronistas, que vale a pena ler: Zurara, Rui de Pina, o grande Damião de Góis... Também Albuquerque, Duarte Menezes, entre outros, no Oriente. Em pleno século XIX, Livingstone, Serpa Pinto, Silva Porto (que foi espezinhado pelo inglês…) e outros exploradores narraram as suas andanças pelo continente africano. De forma diversa. Basta compulsar os livros. Até hoje. Repare-se: se perguntarmos aos soldados que estiveram em cima das chaimites, comandados por Salgueiro Maia, cada um conta à sua maneira o que viu no Largo do Carmo… Cada um conta a história à sua maneira, ou, se quisermos, como a viveu, e de acordo com a sua perspectiva. É a força da emoção e da percepção havida no momento, camaradas.

Nos meus livros, as crónicas são ditadas de acordo com o que e como eu vivenciei ou me contaram… mas sempre baseado em factos e personagens verídicos.

Ora, envolvermo-nos em histórias orais da natureza que introduz este desabafo é sinal de pouca clarividência, de pouca lucidez: não foi assim, dirão uns; não, estás enganado, responderão outros… Em História, podemos afirmar o seguinte: os historiadores baseiam-se em fontes, que podem ser de natureza diversa: escritas, orais, materiais… O narrador é a voz que narra os acontecimentos, faça ou não parte, como personagem, da trama.

Nós, que participámos no “teatro” (designação tão interessante esta!) da Guerra Colonial, somos narradores personagens, em primeira pessoa, portanto, relatamos os factos como participantes dos acontecimentos. E descrevemo-los segundo perspectivas que são diferentes, muitas vezes enviesadas, distorcidas, não adrede, claro.

Mas é bom que fiquem as memórias – a chamada Literatura Memorialista.

Saudações, camaradas. Bom ano. Com calor humano. Calor humano, tal como o recebi do povo nas minhas andanças em tempo de liberdade. E, também, em tempo de guerra, quando, sabem Deus e Alá a razão, as mulheres e as crianças sofriam tanto, quando o grande Suleiman me livrou de ter pisado duas minas antipessoal e me protegeu tantas vezes! A minha paga foram as vezes que o visitei no Olossato e quando o procurei ajudar no Hospital Nacional Simão Mendes, onde assisti à sua morte, serena morte, a morte de um soldado que lutou por uma Pátria (?!) que não o soube tratar como devia, a ele e a tantos…

Paulo Salgado
28.12. 23

____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 DE NOVEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21591: Bombolom XXIX (Paulo Salgado): "Dezasseis anos depois", um poema meu, que li em Santarém, no encontro anual da CCAV 2721, em Abril de 1986, onde esteve presente no final do almoço o Salgueiro Maia (1944-1992)

4 comentários:

Valdemar Silva disse...

Passa palavra, o nosso capitão mandou parar.
Parar, mas aconteceu alguma coisa?
Passa palavra, o nosso capitão mandou parar por lhe ter acontecido alguma coisa.
Alguma coisa, mas teria sido numa perna?
Passa palavra para parar, o nosso capitão foi ferido.
Ferido, mas seria um ferimento grave?
Passa palavra para parar, o nosso capitão está muito ferido.
Muito ferido, mas será que ainda aguenta?
Passa palavra para parar, o nosso capitão já não aguenta.
Já não aguenta, mas será que o nosso capitão morreu.
Passa palavra para parar, porque o nosso capitão morreu.

Bom Ano 2024, com saúde como deve ser
Valdemar Queiroz

Hélder Valério disse...

Um bom "post" para reflexão.
Nele estão contidos vários aspetos que vale a pena apreciar e agir em conformidade.
E, para votos de "bom ano novo" está muito bem!

Abraços

Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Meu caro Paulo:

Cada um conta à sua maneira o que viu, escutou, sentiu, viveu... Falta a acrescentar: e não conta o que esqueceu, o que não quis (ou não podia) ver, ouvir, sentir, viver...

Tu, que toda a vida trabalhaste em grande organizações como os hospitais, sabes bem que no "teatro de operações da vida" (na escola, na fábrica, no exército, no hospital, e por aí fora) há "atores" com mais poder formal do que outros...

E quem, como o ministro, o general, o reitor, o presidente do conselho de administração, o "chief executive officer" (CEO), está no "7º andar ou último piso", isto é, no topo da pirâmide organizacional, tem uma outra visão do todo e das partes, seguramente mais panorâmica e integrada, do que aquela que será própria do operário, do soldado, do auxiliar, etc., que trabalha na cave, na "trincheira", nos pisos inferiores... (Esta será uma visão mais terra a terra, a daqueles que veem a árvore mas não a floresta)...

Ainda bem que não temos a mesma versão dos acontrecimentos, dos ataques, das emboscadas, da explosão das minas, dos mortos e dos feridos, dos atos de coragem e de cobardoa, das porradas e dos louvores, etc.

No blogue contamos as "nossas histórias", cada um ao seu jeito, ao seu estilo, com as limitações cognitivas e emocionais que advêm das circunstáncias, o tempo e o espaço de uma guerra que ocorreu há mais de meio século, a 4,5 mil quilómetros de casa... E depois, há uns mais felizardos do que outros, que tên acesso a "auxiliares de memória", como fotos, relatórios, diários, mapas, livros, vídeos, etc.

Aqui contamos "histórias": a única coisa que temos de prevenir e evitar é a mentira descarada, a deturpação deliberada da verdade factual, a utilização da memória como arma de arremesso e de ajuste de contas, etc.

Admito que o enviesamento político-ideológico da nossa leitura da guerra (origem, processo, condução, consequências, resultados, etc.) é inevitável entre nós que a fizemos e a sofremos... Mas temos que fazer um esforço sério para não contaminar as nossas narrativas com as nossas habituais "grelhas de leitura" ...

Todos temos "óculos" para ver a realidade (micro, maezzo, macro...). A realidade fala por si... Na tropa fomos formatados para ler a realidade da Guiné e de Portugal de uma dada maneira... Ainda há aqui camaradas que aceitam pia e candidamente que o povo português era "predestinado" (por um qualquer desígnio superior...) para colonizar, civilizar, cristianizar os outros...

Enfim, este comentário já vai longo e chato e sobretudo é inoportuno a escassas horas para "encerrarmos o ano de 2023 para balanço"... Desejemos um Melhor Ano Novo de 2024 para todos os homens e mulheres de paz e boa-vontade... E saúde para podermos continuar aqui a blogar ou a tocar o bombolom...

Mantenhas. Luís

Eduardo Estrela disse...

É isso Luís!!!
" Ainda há aqui camaradas que aceitam pia e candidamente..... "

Um abraço fraterno para todos, com votos de muita saúde
Eduardo Estrela