1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Fevereiro de 2024:
Queridos amigos,
Creio que a chamada Questão do Casamansa tem vindo a ser tratada aqui no blogue com uma certa pertinência. É uma trágica sequela de um período de indiscutível abandono da nossa presença nesta região de África, houvera a formal abolição da escravatura, a França não escondia o seu apetite de estar presente e comerciar em exclusivo no território que corresponde ao Senegal, a Inglaterra também reivindicou a sua presença, forjou a Gâmbia, assentou arraiais na Serra Leoa, a Senegâmbia Portuguesa foi ficando cada vez mais espalmada e sempre disputada, os franceses pretenderam mesmo dominar Bissau, os régulos locais repudiaram-nos, quiseram também o Ilhéu do Rei, deu trabalho a afastá-los; os ingleses tudo fizeram para colonizar Bolama. Em termos de negociações diplomáticas, Paris teve a ousadia de argumentar com a presença dos normandos na região, em meados do século XIV. Vivendo em Paris, onde deixou um legado científico de incalculável valor, o 2.º Visconde de Santarém elaborou uma Memória que deitou por terra a falaciosa justificação francesa para se apoderar do Casamansa. É uma síntese dessa Memória que aqui se faz referência, tenho para mim que é peça fundamental para o estudo da presença portuguesa na Guiné.
Um abraço do
Mário
O 2.º Visconde de Santarém refuta os falsos argumentos da França sobre a Guiné
Mário Beja Santos
O 2.º Visconde de Santarém é uma das mais notáveis figuras da cultura portuguesa da primeira metade do século XIX, investigador distintíssimo na cartografia e nas análises feitas ao período dos Descobrimentos portugueses, mormente na África Ocidental. A sua "Memória - Sobre a Prioridade dos Descobrimentos Portugueses na Costa da África Ocidental, para servir de ilustração à Crónica da Conquista da Guiné de Zurara", publicada em Paris, na Livraria Portuguesa de J. -P. Aillaud, em 1841, é sem margem para dúvidas o documento mais incisivo que serviu para refutar os alegados fundamentos de diplomacia francesa de que este país fora o primeiro a chegar a esta região da costa africana. O Visconde de Santarém, devido à sua fidelidade ao ideário miguelista, exilou-se em Paris depois da Convenção de Évora Monte, não mais voltou a Portugal, recusou o convite que D. Pedro IV lhe fez para regressar. Estudioso emérito, dedicou-se à cartografia, deve-se-lhe a descoberta na Biblioteca Nacional de Paris da Crónica de Zurara onde supostamente se retém a imagem do Infante D. Henrique, e conhecedor da falaciosa argumentação francesa sobre a sua presença anterior à dos portugueses na costa africana, atirou-se ao trabalho, o resultado é esta Memória, peça fundamental para o estudo da presença portuguesa na região.
Veja-se sumariamente a argumentação do investigador, o rigor da sua fundamentação, e como ela pôs cobro às falsidades e devaneios de pretensos historiadores franceses.
Até aos fins do século XVI nenhum escritor estrangeiro nos disputou a prioridade dos nossos Descobrimentos na Costa Ocidental de África, somente no meado do século XVII apresentou um certo Villant de Bellefond, viajante francês, reclamando, sem prova alguma, a prioridade daqueles Descobrimentos a favor dos marítimos de Dieppe, que, segundo ele, tinham fundado estabelecimentos na Guiné, em 1364. Vários escritores o copiaram depois, e posto que os mais sábios geógrafos de todas as nações que escreveram depois de Villant, e mesmo alguns dos franceses, não admitiram aquela suposta prioridade; contudo, três obras importantes, publicadas nestes últimos anos em França, vieram de novo ressuscitar a pretensão da dita suposta prioridade dos Descobrimentos dos marítimos de Dieppe, fundando-se principalmente na relação daquele viajante do meado do século XVII.
Restabelecer, pois, os factos, e mostrar com documentos de indubitável fé que a tal pretendida prioridade dos Descobrimentos dos marítimos de Dieppe do século XIV é insustentável, tal é o objeto da presente Memória.
Fala o autor francês dos navios destes portos de Dieppe que devastaram todos os países desde o Elba ao estreito de Gibraltar, e que estes normandos terão limitado as suas navegações aos confins da Mauritânia.
É um facto histórico de indubitável fé que os peninsulares ibéricos sujeitos aos árabes e cristãos passaram frequentes vezes a África. Não se pode sustentar à vista destes factos que os normandos desde a sua aparição no século IX, onde só apareceram como piratas, pudessem ter estabelecido relações comerciais com África; os portugueses instruíram-se na geografia de África nas escolas árabes que existiam na Península, principalmente durante a dinastia Omíada.
A data publicada pelos autores que referem a presença normanda é de 1365 e o Visconde de Santarém responde:
“Recorremos a documentos autênticos que provam que já antes de 1336 tínhamos começado as nossas navegações além do Cabo Não. Se acaso aqueles supostos estabelecimentos franceses tivessem ali sido fundados em 1385, como eles dizem, teriam sido indicados nas minuciosas cartas feitas imediatamente depois, e pelo menos a parte hidrográfica daquelas costas ali se acharia marcada, mas, pelo contrário, na carta de Piziani de 1367 não se encontra o menor vestígio do conhecimento daquele país.
As reações comerciais de um povo europeu, no estado em que se achava a Europa no século XIV não se podiam ocultar das outras nações, e muito menos a dos marítimos da Normandia se podiam ocultar aos portugueses que naquele século ali comerciavam.”
O Visconde de Santarém vem seguidamente argumentar com o texto da Crónica da Guiné de Zurara e enfatiza a sua argumentação anterior.
Nenhum escritor estrangeiro do século XV e ainda de quase todo o XVI disputou aos portugueses a prioridade dos seus Descobrimentos além do Cabo Bojador e da fundação dos estabelecimentos na Costa da África Ocidental.
Só depois do meado do século XVII, um certo Villant de Bellefond, que fez viagem à Costa da Guiné em 1666 e 1667, cuja relação dedicou a Colbert, julgou propósito, sem citar documento nem prova alguma das que exige a verdade histórica, indicar que os marítimos de Dieppe tinham sido os primeiros descobridores da Guiné, onde haviam fundado estabelecimentos em 1365.
É a parte capital e a mais demolidora da refutação que o aristocrata faz às teses sem pés nem cabeça de quem pretendia uma argumentação a favor da presença francesa, isto para demonstrar como eram legítimas as reivindicações da França para dominar o comércio no Casamansa. Não querendo cansar o leitor, avanço com exemplos dados pelo eminente cartógrafo.
Na carta de África do Atlas inédito feito por João Rotz, natural de Dieppe, e que este cosmógrafo desenhara para o rei de França, como diz na dedicatória, mas que ofereceu depois a Henrique VIII de Inglaterra, Atlas que é datado de 1542, e que é pintado em 18 grandes peles de pergaminho, toda a nomenclatura hidrográfica que se lê na costa de África Ocidental é portuguesa, e não faz menção entre ela do Petit Dieppe ou Lestro de Paris. Em um outro Atlas hidrográfico desenhado em Dieppe em 1547, composto de 15 cartas, por Nicolau Vallard, de Dieppe, o qual pertenceu ao príncipe de Tallyrand, toda a nomenclatura geográfica é portuguesa.
Prosseguindo toda a sua argumentação, o Visconde de Santarém refuta as teses inventadas e que a diplomacia francesa brandia nas conversações com o Governo de Lisboa. Argumentação manhosa em toda a linha, começa-se por dizer que é inquestionável a presença portuguesa em Ziguinchor, funda-se um tanto à sorrelfa uma feitoria, ergue-se Carabane, foi um nunca mais parar de posse do Casamansa, onde lamentavelmente se ia apagando a presença portuguesa. E tudo se consumou com a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, a questão do Casamansa voltava-se definitivamente contra nós. E tudo começara com expedientes e mentiras que o Visconde de Santarém denunciou neste seu fabuloso documento editado em 1841, mas que não teve o condão de abrandar a ganância dos franceses.
Gomes Eanes de Zurara, tal como aparece idealizado na estátua de Luís de Camões, no Chiado
Carta hidrográfica da Guiné Portuguesa, 1844
Retrato do 2.º Visconde de Santarém, Manuel Francisco de Barros e Sousa da Mesquita de Macedo de Leitão e Carvalhosa, 1791-1856, na Sociedade de Geografia de Lisboa_____________
Nota do editor
Último post da série de 24 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25774: Historiografia da presença portuguesa em África (433): Fortunato de Almeida e a Guiné antes de 1920 (Mário Beja Santos)
5 comentários:
Manuel Francisco de Barros e Sousa da Mesquita de Macedo de Leitão e Carvalhosa, 1791-1856, 2º. Visconde de Santarém.
Bem nos podiam ter obrigado a decorar este nome, cantando como na tabuado, para termos aprendido este acontecimento histórico.
Valdemar Queiroz
Gente fina é outra loiça. O rei D. Pedro IV chamava-se Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Serafim de Bragança e Bourbon, enquanto o seu irmão D. Miguel se chamava Miguel Maria do Patrocínio João Carlos Francisco de Assis Xavier de Paula Pedro de Alcântara António Rafael Gabriel Joaquim José Gonzaga Evaristo. Acho que nem os próprios conseguiam saber os seus nomes de cor.
https://www.arqnet.pt/portal/portugal/temashistoria/pedro4.html
https://www.arqnet.pt/portal/portugal/temashistoria/miguel.html
No caso dos Reis, julgo que Pedro de Alcântara, Xavier de Paula, Francisco de Assis, Maria do Patrocínio são santos patronos e Miguel, Rafael e Gabriel arcanjos bíblicos.
Valdemar Queiroz
É isso mesmo, prezado Valdemar. É curioso verificar que o nome Pedro, dado a D. Pedro IV, não se refere ao apóstolo S. Pedro, como se poderia supor, mas a S. Pedro de Alcântara (https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_de_Alc%C3%A2ntara).
Também é curioso verificar que no fim de todo o "comboio" de nomes próprios dados a D. Pedro IV, lá vêm dois apelidos, só dois e nada mais do que dois: Bragança e Bourbon. Bragança por parte do pai (D. João VI) e Bourbon por parte da mãe (D. Carlota Joaquina). Aqui, sim, o nome dele contrasta flagrantemente com o dos pretensos brasonados da nossa praça, que trazem uma lista de apelidos supostamente correspondentes a outros tantos títulos de nobreza. A D. Pedro IV bastavam dois apelidos, que por si sós valiam mais do que todos os apelidos somados do visconde de Santarém, que nem conde era.
Agora reparo que no nome de D. Miguel não constam os apelidos: nem Bragança, nem Bourbon, nem nada. Acho muito estranho. Seria mesmo assim, ou foi lapso dos historiadores?
Pois, caro Fernando Ribeiro, essa do D. Miguel é muito antiga e as más línguas diziam que ele seria filho do jardineiro do Palácio de Queluz, das ligações adúlteras de Carlota Joaquina de Bourbon.
Parece que o D. João VI começou a fazer umas contas, enquanto se deliciava com uma perna de frango, e chegou à conclusão de que há mais de dois anos não visitava o quarto da rainha.
E com a guerra civil e o exílio nunca foi considerado herdeiro do trono Bragança e Bourbon.
Valdemar Queiroz
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