sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26077: Notas de leitura (1737): Notícia de um conflito interétnico sangrento na ilha de Bissau, em 1931 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Feitas as contas ao quadro de hostilidades que o Governador Soares Zilhão vai punir, temos uma guerra sangrenta na Península de Bissau que vitimou sobretudo Mancanhas, e das averiguações feitas apurara-se que os Grumetes tinham extravasado competências, procedimento inaceitável para a potência colonial soberana, e daí a dureza dos castigos, para serem exemplares. Estávamos em 1931, a pacificação de Canhabaque chegará em 1936, tudo leva a crer que há uma mudança radical de atitudes e já com a governação de Ricardo Vaz Monteiro e fundamentalmente com a política do desenvolvimento aplicada pelo comandante Sarmento Rodrigues, tirando a ilha de Bissau do seu isolamento.

Um abraço do
Mário



Notícia de um conflito interétnico sangrento na ilha de Bissau, em 1931

Mário Beja Santos


Continua ativa uma certa historiografia que responsabiliza integralmente a potência colonial pelo acirramento dos conflitos interétnicos, fazendo tábua rasa de que antes da chegada dos portugueses toda a região tinha os seus reinos com as suas permanentes hostilidades, agressões, rapinas e arrebanhamento de escravos; simultâneo à chegada da presença portuguesa nessa difusa região a que se chamou Senegâmbia, assistia-se à desagregação do Império do Cabo, que foi acelerada por esses mercadores portugueses (mais tarde vieram concorrentes espanhóis, holandeses, franceses e britânicos); as regras do mercado foram completamente alteradas, os mercadores evitavam envolver-se em conflitos interétnicos. Há também outra acusação de que, com a consolidação da ocupação e pacificação, os portugueses dividiam para reinar, estavam do lado dos Fulas e antagonizavam os Balantas, por exemplo.

Nada disto em termos históricos pode ser visto a preto ou branco. E nada como pegar num acontecimento, tirar a prova dos nove de que os conflitos interétnicos existiram ao arrepio da estratégia colonial.

No suplemento ao Boletim Oficial n.º 39, de 1931, o Governador João José Soares Zilhão, com a data de 20 de outubro faz publicar a seguinte portaria:

“É do conhecimento público que esta colónia foi sobressaltada pelo desencadear em Bissau de uma desordem gravíssima entre as tribos Papel e Mancanha, cujas povoações se aglomeram nos subúrbios da cidade de Bissau e seus arredores até ao sítio de Bissauzinho, cobrindo assim aproximadamente a metade Este da ilha de Bissau, que agricultam em conjuntos com algumas povoações Balantas, que não intervieram diretamente nos acontecimentos.

É igualmente sabido que parte da ilha de Bissau a Oeste do Bissauzinho, incluindo esta povoação, se conservou perfeitamente submissa e ordeira, respeitando deste modo, como devia, as autoridades. Do domínio público é também que, a seguir às desordens sangrentas de 27, 28 e 29 de setembro, os estado de sítio da ilha de Bissau organizou no mesmo dia uma repressão sistemática da grave perturbação da desordem que rebentou em 27, atingiu o ponto agudo em 29 que, apesar das medidas de coação tomadas pelo corpo de Polícia de Bissau, causou a morte a numerosos indígenas, sobretudo da tribo Mancanha, entre os quais inocentes mulheres e inocentíssimas crianças, que foram vítimas de única circunstância de pertencerem a uma tribo, com a qual andava, havia muito tempo, de rixa a tribo dos Papéis.

Não pode ignorar-se nem desconhecer-se a perturbação política e económica, que tal alteração de ordem veio causar, fazendo gastar os serviços das colunas de polícias e auxiliares Fulas, dinheiros deveriam ser aplicados a fins úteis do fomento da colónia e à assistência do indigenato, assistência que este Governo sempre manteve cuidadosamente, pelo organismo de curadoria, que é chefiado pelo Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas.

Do conhecimento público é ainda que nos motins e assassínios de setembro intervieram vários indígenas assimilados, conhecidos pela designação de Grumetes, já instigando direta ou indiretamente os Papéis já agindo pessoalmente nos ataques à arma branca contra os Mancanhas.

Ora, o facto de indígenas há muito sujeitos ao domínio português resolverem dirimir entre eles estas questões para cuja resolução existem os Tribunais Indígenas de 1.ª Instância, presididos pelos administradores e o Tribunal Superior funciona na direção dos Serviços e Negócios Indígenas, representa um desrespeito gravíssimo das leis nacionais e um atentado contra a ordem interna da colónia. E os indígenas sabem-nos muito bem porque à administração soberana recorrem – e têm recorrido sempre, para a resolução de casos graves e até de outros fúteis.

Mas, se a ignorância de indígenas num estado ainda bárbaro pode perceber-se, a intromissão numa rixa gravíssima (como foi a que se produziu em setembro) de elementos assimilados, os Grumetes, que tudo devem à nação dominadora, desde o vestuário europeu que aprenderam a usar, até à instrução que recebem das várias escolas desta colónia, representa a mais formidável deslealdade e a mais descaroável ingratidão possíveis para com a Mãe Pátria.

E tais Grumetes administravam justiças em indígenas em suas propriedades ou concessões, intrometiam-se em questões indígenas, exercitando atos de procuradoria e advocacia, que só competem naturalmente, ao diretor dos Serviços e Negócios Indígenas e respetivos agentes. Assim, pois, cometiam atos de clara indisciplina contra a leis e regulamentos nacionais, como se prova das averiguações agora levadas a efeito.”

E postos um conjunto de considerandos o Governador expulsa da Guiné e deporta para a colónia de S. Tomé e Príncipe por uma certa quantidade de anos régulos e chefes de povoação e assimilados, de acordo com a listagem que aqui se publica.

Escusam de me perguntar se tão dura sentença foi por diante, ou até se houve comutação das penas; o que prova esta decisão do Governador Zilhão é que diferentes tribos na ilha de Bissau pretendiam um claro espaço de autodeterminação que a potência colonial jamais podia tolerar E escusado é lembrar que a Península de Bissau tem um longo histórico de hostilidades a quem vivia dentro da fortaleza e das muralhas da vila. O que nos leva a perguntar o que foi efetivamente a pacificação da Península de Bissau feita pelo capitão João Teixeira Pinto, em 1915.


Uma imagem muito antiga
Outra imagem muito antiga de Bissau
Aviação do antigamente na Guiné, imagem restaurada, Casa Comum/Fundação Mário Soares
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Nota do editor

Último post da série de 21 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26065: Notas de leitura (1736): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (3) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Os "grumetes" aparecem como os "maus da fita", mas a gente não conhece a "narrativa" deles, a versão dos acontecimentos é apenas a de um lado (a do governador da colónia)... E no processo deste oficial do exército e administrador colonial, estes graves acontecimentos parecem ter ido parar à "cesta secção"...

Faltam investigadores para "pegar" nestes arquivos...(que contemplam a Guiné)

AHM > Archeevo > Fundo Particular Soares Zilhão

História administrativa/biográfica/familiar

João José Soares Zilhão nasceu a 28 de setembro de 1887. Alferes para a arma de Artilharia em 1910. Em 1913, já tenente, passou ao serviço do Ministério das Colónias, como ajudante de campo do Governador Geral Interino de Moçambique e esteve depois ao serviço da Direção de Agrimensura onde executou serviços de triangulação e cadastro na região de Goba. Em 1914 colaborou com o diretor de Agrimensura na memória sobre o cadastro predial em Moçambique. Nomeado, em 1915, chefe da Brigada de Cadastro Geométrico dos terrenos da cidade de Lourenço Marques, foi também comandante da Bateria Mista de Artilharia de Montanha e Guarnição de Moçambique. Em maio de 1916 partiu para o norte da província fazendo parte das forças da província que operaram, com a expedição a Moçambique, em Cabo Delgado e antiga África Oriental Alemã. No ano seguinte foi nomeado comandante da Bateria Europeia de Artilharia de Montanha e Guarnição de Macau. Em 1918 foi chefe da Brigada de Triangulação e Topografia para a visão dos azimutes da base da cidade de Macau e determinação dos pontos trignométricos das ilhas da Taipa e Coloane; estudou ainda o projeto de Artilharia e defesa do porto de Macau. Em 1925 foi comandante do 1.º Grupo do 1.º Batalhão de Artilharia. Em 1927 foi nomeado comandante da Escola de Defesa Contra Aeronaves.

Em 1928 assumiu a chefia da Missão de Retificação de Fronteiras da colónia da Guiné com o Senegal.

Em 1931 foi nomeado governador interino da colónia da Guiné e em 1932, diretor dos Serviços de Agrimensura da colónia de Moçambique.

Em 1936 foi encarregado do governo geral da colónia de Moçambique e também do governo interino da província do Sul do Save (1936). Em 1937 foi nomeado comandante do Regimento de Artilharia Ligeira n.º 3 e em 1942 assumiu o comando da Escola Prática de Artilharia. Foi ainda inspetor interino da 2.ª Inspeção de Artilharia e diretor dos cursos para a promoção a major e coronel das diversas armas e serviços. Em 1946 foi nomeado comandante militar de Moçambique, passando à reserva em 1949. Nos anos 50 foi diretor da Companhia do Açúcar de Angola. Faleceu a 25 de fevereiro de 1979.